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O dia em que a história morreu...






Se lhe perguntassem o ofício não tinha dúvidas, contava histórias e ponto. E por encomenda.
Queriam histórias de bichos, de fadas, de bruxas malvadas, de saci pulando na floresta, de estrelas fazendo tiaras de luz e enfeitando cabelos de princesas, de príncipes beijadores, de sapos encantados? Era só pedir!
Queriam modernismo, carros, homens cheirando a lavanda, mulheres abusadas que fugiam de casa pra ganhar seu sustento vendendo o que tinham, bandidos que roubavam corações de meninas donzelas ou nem tanto, pancadaria, sangue? Também era só pedir.
Estava nesta vida desde que se conhecia por gente. Começou, lá quando era um palmo de gente, inventando lendas para escapar dos cascudos e beliscões de Cotinha, que afiados assim pra doer danado nunca ninguém vira antes!
E se encorpou, se perdeu na vida com um mancebo bonito de olhos de lua que nem era daquelas bandas. Ele se foi. Seguiu no encalço como quem espreita onça nos riachos bebedouros. Achou, grudou, embarrigou, teve seus meninos, que não era boba de parir fêmea pra viver solta na vida.
Entre uma parida e outra sentava na soleira e esperava. Logo aparecia um, outro, mais outro, e ela calada, pitando e cismando, preparando na sua cabeça de enredos o repertório da tarde. E quando achava que a platéia já estava no exato tamanho do seu merecimento, despejava falação em cima do povo.
Puxava, lá dum tempo perdido, as histórias que escutara de Cotinha. Nunca iguais. A cada contada um detalhezinho novo, um tempero ardido, um molho acolá...
Depois entrava nas que, sua própria cabeça de nuvens, inventava.
E era aí que a sessão começava mesmo. Se transformava. Era a artista no palco maior e mais iluminado, sorria, gargalhava, fungava, chorava e interpretava cada personagem como se disso dependesse a sua reputação.
Num dia meio chuvoso, acordou lenta, olhou pra rede bem do seu lado esquerdo, vazia, sem função. Olhou as tralhas, conferiu o faltoso. Uma caneca, uma muda de calça, um par de chinelos gasto, a viola e os olhos de lua. Contou as crias, essas ficaram todas espalhadas pelo quintal numa algazarra de quem não entende.
Ela entendeu. Fechou pra sempre a porta por onde entravam as histórias, trancou a mente, jogou a chave fora. Sentou na soleira, silenciosa, olhar estranho, perscrutando perdido lá pelas bandas do fim do mundo.
O povo ainda insistiu por um bom tempo, ficava lá esperando, não sabia bem o que. Até que cansou de tentar entender porque raios a louca das histórias emudeceu assim, de uma hora pra outra, de vez, e ficou só aquele olhar vago olhando sem ver!
Eu sou eu, e só,
o mais é a verdade
que o resto vira pó
mais tarde

(Elza Fraga)

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