Quando o pai de Pedro Malasartes entregou a alma a Deus, fez-se a
partilha dos bens, uma casinha velha, entre os filhos, e tocou a Pedro uma
das bandeiras da porta da casa, com o que ele ficou muito contente.
Pôs a porta no ombro e saiu pelo mundo. Em caminho, viu um bando de urubus sobre um burro morto. Atirou a porta sobre eles e caçou um urubu que ficou com a perna quebrada. Apanhou-o, pôs a porta às costas e continuou viagem. Obra de uma légua ou mais, avistou uma casa de onde saía fumaça, o que queria dizer que se estava preparando o jantar. Pedro Malasartes, que sentia fome, bateu à porta e pediu de comer. Veio atendê-lo uma preta lambisgóia que foi logo dizer à patroa que ali estava um vagabundo, com um urubu e uma porta, a pedir de jantar. A mulher mandou que o despachasse – que a sua casa não era coito de malandros. O marido estava de viagem e a mulher no seu bem bom a preparar um banquete para quem ela muito bem o destinava. Neste mundo há coisas! Pedro Malasartes, tão mal recebido que foi, resolveu subir para o telhado, valendo-se da porta que trazia e lhe serviria de escada. Subiu e ficou espreitando o que se passava naquela casa, tanto mais que sentia o cheiro dos bons petiscos. Espiando pelos vãos das telhas viu os preparativos e tomou nota das iguarias, e ouviu as conversas e confidências da patroa e da negra. Justamente na hora do jantar chegou o dono da casa que resolveu voltar de inesperado da viagem que fazia. Quando a mulher percebeu que ele se aproximava mandou esconder os pratos do banquete e veio recebê-lo e abraçá-lo, muito fingida, muito risonha, mas por dentro queimando de raiva. Vai daí mandou pôr na mesa a janta que constava de feijão aguado, paçoca de carne seca e angu, dizendo: - Por que não avisou, marido? Sempre se havia de aprontar mais alguma coisa… Sentaram-se à mesa. Pedro Malasartes desceu de seu posto e bateu na porta, trazendo o urubu. O dono da casa levantou-se e foi ver quem era. O rapaz pediu-lhe um prato de comida e ele chamou-o para a mesa a servir-se do pouco que havia. A mulher estava desesperada, desconfiando com a volta de Malasartes. Pedro tomou assento, puxou o urubu para debaixo da mesa, preso pelo pé num pedaço de corda de pita. Estavam os dois homens conversando, quando de repente o Malasartes pisou no pé quebrado do bicho e este se pôs a gritar: uh! uh! uh! O dono da casa levou um susto e perguntou que diabo teria o bicho. Pedro respondeu muito sério: - Nada! São coisas. Está falando comigo. – Falando! Pois o seu bicho fala?! - Sim, senhor, nós nos entendemos. Não vê como o trago sempre comigo? É um bicho mágico, mas muito intrometido. – Como assim? - Agora, por exemplo, está dizendo que a patroa teve um aviso oculto da volta do senhor e por isso lhe preparou uma boa surpresa. – Uma surpresa! Conte lá isso como é. – É deveras! Uma excelente leitoa assada que está ali naquele armário… - Pois é possível! Ó mulher, é verdade o que diz o urubu desse moço? Ela com receio de ser apanhada com todo o banquete e certa de que Pedro sabia da marosca, apressou-se em responder: - Pois então? Pura verdade. O bicho adivinhou. Queria fazer-te a surpresa no fim do jantar. E gritou pela preta: - Maria, traz a leitoa. A negra veio logo correndo, mas de má cara, com a leitoa assada na travessa. Daí a pouco, Pedro Malasartes pisou outra vez no pé do urubu que soltou novo grito. – O que é que ele está dizendo? - Bicho intrometido! Está candongando outra vez. Cala a boca, bicho! - O que é? - Outras supresas. – Outras?! - Sim, senhor: um peru recheado… - É verdade, mulher? - Uma surpresa, maridinho do coração. Maria, traz o peru recheado que preparei para o teu amo. Veio o peru. E pelo mesmo expediente conseguiu Pedro Malasartes que viessem para a mesa todas as iguarias, doces e bebidas que havia em casa. Ao fim do jantar, o dono da casa, encantado com as proezas do urubu, propôs comprá-lo a Pedro Malasartes, que o vendeu muito bem vendido, enquanto a mulher e a preta bufavam de raiva, crentes também, no poder mágico do bicho que, assim, seria um constante espião de tudo quanto fizessem. Fechado o negócio, Pedro Malasartes partiu satisfeito e vingado. (Lindolfo Gomes. Contos populares. São Paulo, Companhia Melhoramentos, v. 1. In APOCALYPSE, Mary (org.). Estórias e lendas de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro) |
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