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O nosso carro é um abrigo








  Os carros da polícia estão cada vez mais próximos. O barulho das sirenes me faz doer os ouvidos e as luzes me cegam os olhos. Até dou um salto, de tão assustada que estou.

   — Não se mexe, Zettie — avisa a minha mãe. — Não podemos dar na vista.

   Enfiamo-nos por entre as roupas que estão no assento traseiro do carro.

   — Mãe, é um bocado assustador dormir no carro — sussurro.

   A minha mãe concorda:

   — Eu sei. Estão sempre a acontecer coisas e os carros da polícia andam sempre em perseguições.

   E abraça-me com força, enquanto dura o barulho das sirenes.

   Quando fica tudo em silêncio, a minha mãe conduz pela Chandler Avenue e estaciona diante do pátio de um bloco de apartamentos, cujo jardim está cheio de flores: buganvílias, rosas, hibiscos. À luz dos candeeiros da rua, as cores são tão alegres como as das flores do pátio que deixámos em Port Antonio. Adoramos estacionar neste sítio.

   Durante semanas, um letreiro a dizer "Aluga-se" esteve pendurado numa das janelas. Na semana passada, quando perguntamos pelo andar, o dono disse-nos que só o alugava a pessoas com um emprego fixo. E queria dois meses de renda adiantados, dinheiro que a minha mãe não tem.

   Fecho os olhos e vejo-me na terra dos meus sonhos, com o meu pai e a avó Mullins. Estamos na Jamaica, a fazer um piquenique na praia. As ondas rebentam de encontro às rochas e acordo com o barulho. Afinal, não estou na Jamaica. Estou na América. E não foi o barulho das ondas que me acordou, mas alguém a bater na janela do nosso carro.

   A luz de uma lanterna ofusca-nos os olhos.

   — O que está a fazer aqui, minha senhora? — pergunta um polícia, num tom de voz duro.

   — A minha filha e eu só estamos aqui a passar a noite, senhor.

   — Aqui não é permitido estacionar à noite — informa o agente. — Tem de procurar outro lugar.

   — Eu procuro, senhor, mas não estamos a fazer nada de mal — diz a minha mãe.

   Depois, senta-se ao volante e saímos dali. As lágrimas deslizam-lhe pela face, como quando o meu pai morreu.

   Chego-me à frente e acaricio-lhe os caracóis.

   — Ó mãe, porque não vamos para a Magnolia Avenue? Lá, os polícias nem sequer incomodam o Senhor Williams, quando ele dorme no banco do parque.

   — Boa ideia, filha! Tinha me esquecido desse lugar.

   A minha mãe estaciona o carro na Magnolia Avenue e aconchegamo-nos. Em breve adormeço nos seus braços.

   Na manhã seguinte, bem cedo, a minha mãe acorda-me e diz:

   — Vamos utilizar a casa de banho do parque antes que fique cheia de gente.

   Está muito frio lá dentro e tremo enquanto visto o meu uniforme escolar. Depois, salpico a cara com a água da torneira.

   — Esta água é fria como gelo, mãe.

   — Tem de ser corajosa! — murmura ela.

   Saímos e sentamo-nos num banco. A minha mãe faz-me quatro tranças, como eu gosto, embora puxe o meu cabelo com força para que fiquem bonitas. Começo a cantar uma canção que inventei, para me distrair dos puxões.

   A minha mãe canta comigo, durante algum tempo, mas, quando canto mais alto, põe um dedo nos lábios e diz:

   — Canta mais baixo, Zettie. Ainda acordas o Senhor Williams.

   Depois, abre a nossa pequena geleira e faz sanduíches com manteiga de amendoim e geleia. Bebemos o resto de um refresco de laranja. É doce, mas, como já tem três dias, não sabe muito bem.

   — Quem me dera um chocolate quente — digo. — Como aquele que fazias com os grãos de cacau que apanhávamos perto de casa.

   — Sinto-me triste por não poderes beber um — diz a minha mãe, olhando-me nos olhos.

   Em seguida, pergunta-me:

   — Lembra-se do sol da Jamaica? De como brilhava depois de uma chuvada?

   Claro que me lembro.

   Sobretudo em dias frios e enevoados como o de hoje. Por que razão morreu o meu pai? Os empregos temporários da minha mãe e o curso profissional que frequenta com tanto esforço fazem com que todos os dias sejam escuros e úmidos.

   — Quando arranjar um trabalho fixo, o sol vai brilhar de novo — diz a minha mãe, como se conseguisse ler os meus pensamentos.

   Fico calada. Já a ouvi dizer isto muitas vezes, mas sei que as coisas agora estão mais difíceis. A caminho da escola, pergunto:

   — Mamã, será que podia…

   — Podia o quê, Zettie?

   — Deixar-me ficar na esquina por detrás da escola?

   — Porquê? — pergunta.

   — Por causa de uns rapazes maus que dizem que o nosso carro é um pedaço de sucata velha. E também fazem troça da bandeira no vidro. Não podemos tirá-la, mãe? — pergunto.

   A minha mãe para o carro e dá-me um abraço.

   — Não lhe preste atenção, filha. Estuda, como o teu pai fazia, e anda de cabeça erguida. Eu tiro a bandeira.

   Apresso-me a sair.

   — Espero por você no recreio depois das aulas — digo à minha mãe, virando-me para trás.

   Quando ela me vai buscar depois das aulas, enfio a cabeça no casaco para não ser reconhecida ao esgueirar-me para dentro do carro.

   — Hoje, não havia empregos de escritório na agência — diz.

   — Isso significa que vamos comer manteiga de amendoim e geleia à noite, outra vez? — pergunto.

   — Não, porque fiz outra coisa. Adivinha o que foi.

   — Nunca mais teremos um apartamento se você não tiver um emprego fixo.

   — Distribuí panfletos numa Feira de Saúde. Não fiz muito dinheiro, mas tenho o suficiente para comprar o jantar e meter gasolina no carro.

   Fico com a cara a arder e sinto um aperto no peito. Porque não pode a minha mãe ter outro tipo de trabalho? A fome faz-me esquecer a tristeza.

   — Podemos partilhar cachorros quentes e queques com a Ana Mae e o Benjie?

   Quando chegamos ao parque, o Benjie corre ao meu encontro. Tem oito anos, como eu, mas é pequeno e franzino. A minha mãe faz jantar para todos. Os olhos do Benjie brilham e pergunto-me se terá comido alguma coisa hoje. Depois da refeição, pergunta-me:

   — Quer vir comigo procurar latas e garrafas vazias para vender?

   — Não sei… — hesito.

   A minha mãe é muito atenta e não gosta que eu ande a remexer em coisas. O Benjie está a poupar o dinheiro das latas e das garrafas que apanha para ajudar a mãe. Já tem 1 dólar e 50 cêntimos.

   — Fiquem por perto e sejam cuidadosos — pede a minha mãe.

   O Benjie corre por entre as árvores à procura de garrafas e latas. Mas, quando começa a procurar no lixo, digo-lhe que é perigoso e ele pára. O montão de latas que arranjou deixa-nos satisfeitos. É capaz de lhe render outro dólar.

   — É a minha melhor amiga — diz, enquanto se despede com um aceno.

   — Também  é o meu melhor amigo — replico.

   Nessa noite, a minha mãe e eu aconchegamo-nos no banco traseiro do carro e ela lê-me um livro que requisitamos na biblioteca.

   — Dormir no carro é melhor do que no albergue da igreja — digo. — Detestava aquele lugar barulhento e cheio de gente! Havia um bebê que chorava constantemente, lembra-se?

   — Por isso, prefiro usar o nosso carro como abrigo — responde a minha mãe.

   Aninho-me contra ela, enquanto estuda para um dos seus exames.

   No dia seguinte, depois das aulas, leio o meu livro, enquanto espero pela minha mãe no recreio. Mal viro a página, o Alex, que é um rufia, põe-me atrás de mim e puxa pelas minhas tranças.

   — Olha a Zettie da chocolateira! — troça. — Vejam só a Zettie da chocolateira! — diz para os amigos.

   Todos se riem e gritam "Zettie da chocolateira!"

   — Palermas! — respondo.

   Ficam furiosos e o Alex volta a puxar-me as tranças com força.

   Sinto-me assustada. Não vejo nenhum professor. O que hei-de fazer? Acabo por desatar a correr o mais depressa que posso. Saio do recreio, desço a rua e paro numa esquina onde já não me podem ver. Estou sem fôlego quando vejo a minha mãe junto do portão da escola. Sai do carro à minha procura.

   — Mãe, mãe! — chamo e aceno.

   Contudo, ela não me vê. Volta a entrar no carro e dá meia-volta. Grito mais alto e corro, mas tropeço e vejo-a afastar-se. O meu joelho ficou esfolado e a sangrar. Coxeio até à esquina. Depois, sento-me e choro. As nossas vidas mudaram tanto depois da morte do meu pai…

   Espero mais um pouco, sem tirar os olhos do recreio, mas a minha mãe não regressa. Para onde terá ido? Saber que anda à minha procura ainda me faz chorar mais. Abro os olhos quando ouço o ruído de uma moto a parar junto de mim. É um polícia! Será que me meti em sarilhos?

   O polícia pergunta:

   — Está perdida?

   — Não, senhor. A minha mãe atrasou-se em vir me buscar.

   — Não posso te deixar sozinha — diz, num tom de voz amável.

   Fica junto de mim, mas não demasiado próximo. Não sabia que um polícia podia ser tão gentil. Pensava que eram todos maus.

   A espera parece-me eterna e dou-me conta de que, num mundo cheio de pessoas, só tenho a minha mãe. Onde se terá ela metido? O que será de mim se algo lhe acontecer? Será que o polícia vai pôr-me numa família de acolhimento? Viver num carro não é a melhor situação, mas, pelo menos, tenho a minha mãe para me amar e cuidar de mim.

   Ouço um carro a buzinar. É a minha mãe. Pergunta-me, a chorar:

   — Porque saiu do recreio, Zettie?

   Entre soluços, conto-lhe o que aconteceu.

   — Tive medo, mãe. Por isso fugi para aqui.

   — Pensei que tinha ido para o parque. O Benjie e a Ana Mae ajudaram-me a procurar-te. Ficámos tão preocupados. Graças a Deus que está bem.

   A minha mãe acena para o polícia, para lhe dizer que está tudo bem, e eu forço um sorriso, por entre as minhas lágrimas. Vejo que deve ter chorado muito por minha causa, porque ainda tem os olhos vermelhos.

   Abraça-me e diz:

   — Esta noite, precisamos de relaxar as duas. Trabalhei o dia todo na Feira de Saúde e pagaram-me mais horas. Vamos festejar!

   Comemos esparguete e gelado na cafetaria. Depois do jantar, a minha mãe pisca o olho.

   — Hoje vamos dormir numa cama a sério!

   — Num motel? Naquele super-confortável onde dormimos na última vez? — exclamo.

   Mal entramos no quarto, precipito-me para a casa de banho e abro o chuveiro. A água faz-me cócegas nas costas.

   — Ó mãe, a água quente sabe tão bem! Quem me dera tomar uma ducha todos os dias!

   Quando entro na cama, estico-me, sacudo os dedos dos pés e puxo o lençol limpo até ao nariz. A minha mãe abraça-me, chama-me Botão-de-Ouro e sinto todo o seu amor inundar-me.

   — Gostava de dormir numa cama este Verão em vez de no carro? — pergunta-me. — É que uma senhora ofereceu-me um emprego na Feira de Saúde. Vou ajudar a criar um programa para pessoas como nós, com dificuldade em arranjar casa. Vamos poder alugar um quarto — diz a minha mãe.

   — Ó mãe, será que vai conseguir poupar para aquele apartamento com jardim enquanto lá trabalhas? E continuar a estudar?

   — Espero que sim! — diz ela, abraçando-me com mais força.

   Aninho-me nos seus braços e digo:

   — Desculpa se, às vezes, me porto mal.

   Depois, aninho-me ainda mais e adormeço, sabendo que, com ou sem apartamento, tenho a minha mãe e que ela tem-me a mim.

Monica Gunning
A shelter in our car
San Francisco, Children’s Book Press, 2004
(Tradução e adaptação)


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