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O Fiel Dom José





Era uma vez um príncipe que encontrou numa sapataria um rapaz tão vivo e simpático que desejou tê-lo como amigo e companheiro. O rei foi pedir ao sapateiro que desse seu filho para viver na casa real, e o sapateiro cedeu. O rapaz se chamava José e o rei lhe deu o 'dom'. Todo o mundo no reinado só o conhecia, daí em diante, por Dom José. 

O príncipe e Dom José eram inseparáveis nas festas, passeios e caçadas. O rei tinha uma filha muito bonita mas invejosa e de mau gênio. Vendo aquela amizade do irmão com Dom José, enciumou-se e planejou desfazer o afeto que ligava os dois moços. 

Uma manhã mandou dizer a Dom José que fosse conversar com ela no seu próprio quarto. Dom José procurou o príncipe, contou o convite e perguntou se devia ir. 

- Vá, Dom José!

Dom José foi e a princesa recebeu-o muito bem e ficou meia hora conversando sobre assuntos tolos, negócios da cidade, modas, etc. Meia hora depois Dom José saiu e foi narrar ao príncipe o que sucedera. No outro dia sucedeu o mesmo, mas a princesa prendeu o moço por uma hora no seu quarto. Apesar de sabedor de tudo, o príncipe começou a ficar desconfiado das conversas. Pela terceira vez a princesa mandou buscar Dom José e só o despediu hora e meia depois. Dom José repetiu toda a conversa ao príncipe, mas este não acreditou e, julgando que que ele tivesse tentado seduzir sua irmã, pediu ao rei para expulsar Dom José do reinado. O rei, mesmo a contragosto, mandou Dom José sair e ir morar numa ilha distante. 

Ficando sozinho, o príncipe não achava graça em coisa alguma, emagrecendo, definhando, não querendo caçar nem assistir às festas. Chegou mesmo a adoecer de cama e o remédio foi o rei mandar buscar Dom José. Com a notícia da vinda do amigo, o príncipe foi melhorando, melhorando, e saiu uma bela manhã para caçar. 

Andou, andou pelos campos, quando viu, distante, numa relva muito verde e brilhante, uma abóbora enorme, coberta de uma névoa faiscante que quase não deixava ver. O príncipe abaixou a aba do chapéu, aproximou-se da abóbora e viu que estava fechada e tinha um letreiro: 

'Para Dom José será
Quem daqui tirará.'

O príncipe quis tocar mas a abóbora desapareceu. Voltando para casa o príncipe encontrou Dom José e fez muito agrado, conversando e planejando caçadas e brincadeiras futuras. 

No outro dia, cedinho, lá foram caçar. O príncipe foi andando no caminho anterior, levando o companheiro para o lado onde vira a abóbora encantada. Sucedeu o que se esperava. Viram a campina verdejante e a névoa faiscante que não deixava enxergar. Foram para perto e leram o letreiro também. 

Dom José botou a mão em cima da abóbora e esta se abriu, mostrando a princesa mais linda do mundo. Dom José tirou-a de dentro da abóbora e disse ao príncipe, que ficara assombrado com a beleza da moça: 

- O que devo sou ao príncipe, meu senhor. Esta é a ocasião de começar a pagar pelos benefícios recebidos. Dou esta princesa pela mão ao príncipe meu senhor para sua legítima esposa!

O príncipe ficou radiante de contente e a princesa sorriu para ele, agradada e satisfeita com a decisão de Dom José. Ficaram muito animados, conversando, contando a moça que estivera encantada. Como o sol se tornasse quente por demais, os três resolveram passar a força-do-calor abrigados na sombra de umas árvores muito copadas. Deitaram-se e o príncipe e a princesa adormeceram logo. Dom José ficou acordado, vigiando. 

Lá para as tantas, três rolinhas passaram voando, fizeram umas voltas em três raminhos, bem em cima da cabeça de Dom José. Começaram as três rolinhas a falar, entretidas. 

Disse a primeira: 

- O príncipe está muito vaidoso por ter recebido a princesa mas não se aproveitará dela. Quando passarem o rio ela pedirá água correndo e bebendo morrerá. E quem isto ouvir e contar, em pedra mármore há de se virar!

A segunda continuou a profecia: 

- E se a princesa não morrer da água corrente, há de morrer quando beber da primeira colher de sopa no jantar dessa noite. E quem isto ouvir e contar, em pedra mármore há de se virar!

A terceira rolinha findou:

- Mesmo que a princesa escape da água e da colher envenenada, será devorada pela serpente de duas cabeças na madrugada. E quem isto ouvir e contar, em pedra mármore há de se virar!

Dom José tudo ouvira e logo que as rolinhas voaram, levantou-se, acordou os príncipes e seguiram viagem. Foram passando o rio e a princesa, quando viu águas claras, correntes e frias do rio, começou a ter sede e a pedir um copo para beber. 

- Vão seguindo, vão seguindo, que eu vou buscar água e levo - declarou Dom José. 

Os dois continuaram a jornada e Dom José, quando os alcançou, algum tempo depois, foi explicando  que caíra e derramara toda a água, mas estavam perto do palácio e lá haveria tudo do bom e do melhor. 

Chegando foram logo festejados e o rei e a rainha abençoaram a princesa, cobrindo-a de carinhos e anunciando logo o casamento. Dom José foi o padrinho, e a princesa solteira foi a madrinha. De noite houve o banquete, com todos os homens ricos do lugar, e Dom José pediu para não tomar parte na mesa e sim servir como criado. 

Os noivos ficaram surpreendidos com aquele pedido. Mas, insistindo Dom José, cederam, e ele serviu como mordomo. Logo que puseram a sopa nos pratos e a noiva segurou a colher de ouro, enchendo-a e levando-a à boca, Dom José correu, arrebatou-a e entregou uma colher de prata, dizendo:

- Coma com esta e não pergunte por quê...

O noivo fez um ar de zanga mas nada disse. Acabou-se o jantar e houve o baile. Dom José foi ao príncipe e pediu que, por um último favor, deixasse ele dormir no mesmo quarto do casamento. O príncipe espantou-se mesmo e mais ainda a noiva, mas sendo Dom José quem dera a mulher ao marido, entenderam que merecia tudo e consentiram no que pedira. 

Dom José foi buscar um alfange, amolou-o como a uma navalha e escondeu-o debaixo da sua cama, preparada no mesmo quarto dos noivos. 

Recolheram-se todos e Dom José ficou acordado, botando sentido nos rumores e nos passos. Pela madrugada, quando caiu a friagem, ouviu-se um arrastado e foi aparecendo pela janela um bicho mais horroroso da terra, uma serpente que não tinha fim, preta, grossa, com duas cabeças, capaz de engolir sem mastigar a uma junta de bois de carro. 

Dom José desembainhou o alfange e assim que a serpente passou o batente da janela descendo para o quarto do chão do quarto, sacudiu um golpe tão violento que decepou as duas cabeças de uma só vez. 

Um jorro de sangue esguichou e três pingos salpicaram a face da princesa, que dormia. Dom José limpou tudo, atirando o corpão da serpente para fora. Esta, assim que bateu na terra, sumiu-se. Dom José viu as três gotas de sangue na bochecha da princesa e foi tirá-las com todo o cuidado. Quando estava passando, muito de leve, a ponta dos dedos, a princesa acordou e gritou que Dom José estava querendo faltar-lhe com o respeito. O príncipe ficou furioso mas Dom José não se defendeu. 

Amanheceu e o príncipe foi queixar-se ao rei, e Dom José foi condenado a morrer degolado imediatamente. Juntou-se a gente toda para assistir a sua morte. Antes de subir para o tabuado, onde lhe seria cortado o pescoço, Dom José pediu para contar uma história. O rei consentiu e Dom José começou lembrando da sua vida. Contou as vozes das três rolinhas, e quando disse como livrara a princesa de beber a água fresca do rio, ficou transformado em mármore até o peito. Disse como trocara a colher de ouro envenenada por uma de prata. Ficou de mármore até o pescoço. Quando esmiuçou o caso da serpente de duas cabeças, virou-se em mármore, dos pés à cabeça, como uma estátua. 

O rei, a rainha, os noivos e a princesa solteira choraram demais, lastimando Dom José. Todo o povo chorou também. O príncipe mandou construir um pedestal no jardim, e aí colocou a estátua de mármore, e aí passava a maior parte do dia, chorando e recordando o fiel Dom José. 

Meses depois estava o príncipe nesse lugar quando vieram duas rolinhas voando e pousaram nos ombros da estátua, começando a falar. Disse uma:

- Agora é que o príncipe sabe quem era seu amigo e o que valia o fiel Dom José, encantado para livrar a princesa da morte...

Respondeu a outra: 

- É verdade, mas para tudo há remédio. Quando nascer o filhinho do príncipe, passe este alfange no pescocinho do menino e molhe toda a estátua nesse sangue inocente, que Dom José voltará a viver como dantes...

O príncipe ouviu essas palavras e ia se levantando quando duas amas vieram correndo do palácio, avisando que a princesa tivera um menino tão bonito como o dia. O príncipe não perdeu tempo. Correu até o quarto, beijou a mulher, segurou o filhinho nos braços e voltou para junto da estátua. Puxou a espada, cortou o pescoço da criança, molhando o mármore no sangue inocente. Assim que acabou, a estátua estremeceu e Dom José pulou do pedestal para baixo, como era dantes. 

Antes de abraçar o príncipe, pegou na cabeça e no corpo do menino, juntou as partes e a criança ficou sã e salva, apenas com uma listinha vermelha no pescoço. Abraçaram-se como irmãos, chorando de alegria, e Dom José entrou no quarto da princesa levando o menino nos braços, dormindo tranquilamente. 

As festas foram as mais bonitas e compridas deste mundo, e Dom José casou-se com a irmã do príncipe, vivendo até cem anos, na mais perfeita felicidade. 

(Conto narrado ao autor deste livro por Luíza Freire, de Ceará-Mirim, Rio Grande do Norte. Luíza Freire, branca, analfabeta, residiu em nossa casa de 9 de junho de 1915 até 23 de julho de 1953, quando faleceu. Nascera em junho de 1870. Foi colaboradora preciosa em literatura oral. Com maiores anotações, publiquei no Porto, Portugal, um volume inteiro contendo "Trinta Estórias de Bibi". Bibi era seu apelido, dado por mim quando menino, e conservado a vida inteira.)              

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