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A jarra partida









  Partiu-se a jarrinha, aquela jarrinha de flores pintadas à mão, tão elegante, tão graciosa que era o enlevo de todas as pessoas que passavam por nossa casa.

  — Está na nossa família há séculos. Dizem que foi oferecida por uma rainha de antigamente a uma antepassada nossa — explicava a minha mãe, enternecida, a olhar para a jarrinha de flores pintadas.

  Pois, mas partiu-se. Partiu-se em cacos inumeráveis que não há conserto nem cola que lhe valham. Quem foi o desastrado?

  — Eu não — safou-se o Tiago. — Quando eu cheguei a casa, já a mãe estava a chorar.

  O meu irmão Tiago ficou livre de qualquer suspeita.

  — Eu também não fui — apressou-se a dizer o meu pai. — Quando eu cheguei a casa, já a vossa mãe estava a ser consolada pelo Tiago.

  — Eu é que não fui — choramingou a minha mãe. — Tinha tanta estimação na jarrinha. Quando eu cheguei a casa, não havia cá ninguém e já a jarra estava partida em mil bocados. Por pouco que não desmaiava de desgosto.

  — Só se foi o Bolinhas... — lembrou o Tiago.

  O nosso gato Bolinhas desenrolou-se com muita dignidade e disse:

  — Eu não fui nem tenho nada a ver com o assunto.

  E voltou a enrolar-se e a adormecer. Ai, quem me dera ter podido fazer o mesmo!

  — Fui eu — balbuciei.

  Todos se viraram para mim.

  — Tu, Marcos? E estavas calado?

  Suspirei fundo e comecei a contar o que acontecera. À medida que contava, ia ficando mais tranquilo, sem aquela insuportável queimadura nem sei onde – no estômago? No coração? na barriga? – que me fizera correr de casa para a escada, da escada para a rua, como se tivesse lançado fogo ao prédio. Ou a mim próprio.

  Tinha sido um azar. É sempre um azar. Para meter a ficha do gravador de vídeo na tomada da parede, tive de arredar um bocadinho a estante. Não contava que fosse tão pesada. Com a inclinação da estante, os livros escorregaram. Precipitei-me sobre eles, para evitar o desmoronamento. Não medindo os gestos, dei um encontrão numa mesinha que abalou o expositor onde estava a jarrinha. Estremeceram as bonecas de Saxe e saltaram as chávenas de café nos respectivos pires... A jarrinha, como a casca de um ovo, partiu-se. Acho que ela estava, há muito tempo, à espera de partir-se. Qualquer estremecimento lhe daria o pretexto. Dei eu. A culpa foi minha.

  Disse isto com um ar tão enfiado, tão de lamentar, que o círculo acusador à minha volta se desanuviou e desfez por si. A minha mãe, suspirando, foi varrer os vidros da jarra para uma caixa, na ilusão de que talvez ainda pudesse ser restaurada, o Tiago lançou-me uma piscadela de olhos de “fixe, meu”, e o meu pai, antes de mergulhar no jornal, confidenciou-me:

  — Sabes: a jarra realmente já estava partida. Há tempos, na balbúrdia de uma brincadeira com o Bolinhas, que ainda era gatinho, a jarra rachou-se. Isto é, rachei-a... Como estava sozinho em casa, tive tempo de consertá-la o melhor que pude, para não dar um desgosto à tua mãe. Mas, de fato, a jarra já estava partida.

  Por aquela não esperava eu.

  — Tu tiveste muita coragem em confessar — continuou o meu pai. — De aqui a bocado, ao jantar, quando estivermos todos juntos, vou ser eu a precisar de coragem. E desculpa...

  O meu pai abriu à sua frente as longas páginas do jornal, não sei se para lê-las, se para esconder a cara do embaraço. Também é preciso coragem para pedir desculpa. 




António Torrado

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