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Uma Estrela com Luz de Poesia
De repente, passou uma pequena nuvem de tristeza sobre os olhos de Francisca. A avó Josefa partira há dois anos para um sítio de onde ninguém costuma mandar notícias. Antes da partida ainda sofreu muito, e tão depressa a queria junto de si, para sentir o calor do seu carinho, como a queria longe, para não se aperceber dos rostos que o sofrimento pode ter.
Francisca ainda era pequena mas nunca mais esqueceu a dor daquela perda. Foi como se o mundo, naquele dia, tivesse decidido mostrar-lhe o seu lado negro e atemorizador, como se o sol se tivesse zangado com a claridade dos dias e como se até as lágrimas se recusassem a sair para não verem como dói ser infeliz.
Era Dezembro e, lá em casa, nesse ano, ninguém quis festejar o Natal, porque não havia vontade de dar nem de receber presentes e porque todas as conversas se encaminhavam no mesmo sentido, que era o da tristeza e do desconsolo.
Antes de partir, a avó Josefa dissera a Francisca:
— Uma noite, quando já estiver habituada à minha nova morada, hei-de dar-te sinal para que saibas que estou bem e que penso em ti.
Francisca lembrou-se sempre dessas palavras e encontrou, nos poemas que lia nos livros da escola palavras mágicas e belas que eram iguais às que a avó Josefa usava quando queria mostrar-lhe que, por vezes, a beleza de uma coisa pode estar na forma que usamos para a nomear.
— Pode dizer-se de uma coisa — explicava a avó Josefa — somente aquilo que os olhos vêem. Mas também se pode acrescentar qualquer coisa que a torne mais bonita e mais agradável de ver. Isso, minha filha, chama-se Poesia.
Quando Francisca lhe pediu para explicar melhor o que queria dizer, ela deu-lhe alguns exemplos:
— Podemos dizer: “isto é uma árvore”, mas também podemos dizer: “esta árvore está triste porque tem sede” ou “esta árvore é alta e elegante como uma girafa num dia de Primavera”.
Francisca percebeu sem esforço as palavras da avó Josefa e, a partir desse dia e desses exemplos, compreendeu que a Poesia havia de ajudá-la a estar sempre perto da avó, estivesse ela onde estivesse, por maior que fosse a distância que as separava.
Tinha passado um ano e a família preparava-se para festejar mais um Natal. Tinham-se distribuído tarefas e cada um dava o melhor que podia e sabia para realizar bem a que lhe coubera. Uns ajudavam a mãe a pôr a mesa, outros verificavam se os ornamentos da árvore de Natal estavam todos no lugar certo, outros ainda colocavam os presentes nos lugares certos para poderem ser localizados na hora de serem distribuídos, quando fosse meia-noite.
Francisca também cumpriu as suas tarefas, que não eram nem mais fáceis nem mais difíceis que as dos outros, mas nem mesmo estando ocupada conseguia disfarçar a tristeza que as saudades da avó Josefa lhe punham nos gestos e nos olhos.
Todos sabiam qual era a razão dessa tristeza, mas estava assente que, naquela noite, ninguém falaria no assunto. A avó Josefa, que não tinha rival na forma de organizar a festa de Natal, seria lembrada por todos em silêncio, pois as palavras mais belas tinham viajado com ela para muito longe.
Quando se ouviram, na torre da igreja, as doze badaladas da meia-noite, Francisca sentiu que uma lágrima lhe escorria pela face como se fosse uma pérola de um tesouro antigo e secreto.
Foi então que um dos irmãos, o Afonso, lhe disse, tentando animá-la e distraí-la:
— Francisca, há uma estrelinha no céu, lá muito alto, que parece estar a chamar por ti.
Francisca correu para a janela, limpou a lágrima, olhou para a estrela e conseguiu ver no seu brilho intenso o rosto da avó Josefa sorrindo para ela como nos tempos em que lhe contava histórias estranhas e belas para a convencer a comer a sopa.
Quando chegou o momento de se distribuírem os presentes, coube a Francisca, para além de muitas coisas que lhe deram grande satisfação, um belo livro de poemas sobre árvores, rios e animais, ilustrado com muita imaginação e cores muito vivas.
— Quem foi que me deu este livro? — quis saber Francisca. Mas ninguém lhe respondeu.
— Vá, digam lá, quem foi que me deu este livro tão bonito? — insistiu ela, mas continuou a não obter resposta.
Então Francisca pegou no livro, foi para junto da janela e recitou baixinho o mais belo poema que encontrou, como se estivesse a conversar com a avó. Ninguém comentou o seu gesto ou o achou estranho. Lá fora, a pequena estrela brilhava ainda com maior intensidade, como se quisesse encher de luz, de uma luz cintilante e rara, aquela festa de Natal.
E quando Pedro, o irmão mais novo de Francisca, na manhã seguinte lhe perguntou do que mais tinha gostado na festa de Natal, ela respondeu de uma forma breve e simples:
— Do que eu mais gostei foi da Poesia.
— E o que é a Poesia? — perguntou Pedro.
— É uma estrelinha perdida na noite a querer dizer-nos que está sempre alguém conosco quando nos sentimos tristes e temos saudades de quem já partiu.
Também Pedro nunca mais se esqueceu de como pode ser bela a palavra Poesia.
A Avó e o S. Nicolau
Vou contar uma história que se passou quando eu era criança. A história do S. Nicolau e da avó.
A minha avó era pequena e franzina e a mim parecia-me muito velhinha. Não por ter rugas ou cabelo branco, mas pela roupa que usava, sempre escura e de um corte antiquado. Também andava sempre com um avental preto, até mesmo ao Domingo. O avental dos domingos era de seda e fazia barulho ao andar.
Todos os anos, no princípio de Dezembro, a avó vinha para nossa casa. Passava o Inverno conosco na cidade. Assim que a avó chegava, começava para mim a época de Natal. Ao crepúsculo das tardes de Inverno, sentávamo-nos as duas diante do fogão de cerâmica. Era um fogão grande e verde e irradiava um calor muito confortável. Nos outros quartos, os fogões eram de ferro e raramente se acendiam.
O fogão tinha uma portinhola por detrás da qual havia uma placa de ferro onde se podia assar maçãs. Ao assar, o cheirinho espalhava-se pela sala, e a avó ia-me lendo histórias em voz alta. Também fazíamos prendas de Natal.
Mas a nossa melhor brincadeira era “Vamos a Belém”, que todos os anos repetíamos. Durava vários dias, talvez semanas até, e deixava a casa em pantanas.
Nada estava a salvo quando andávamos à procura do equipamento para a nossa viagem. Precisávamos de lençóis para a nossa tenda – em que outro sítio se poderia dormir durante a longa viagem para a Terra Santa? Precisávamos de caixas e caixotes para fazermos um barco – de que outra forma poderíamos nós atravessar o Mediterrâneo? Precisávamos de cadeiras e de cobertores para fazermos animais de carga que nos transportassem a nós e à nossa bagagem.
Nessa altura, o meu pai acabava sempre por sentir que lhe faltava qualquer coisa: o martelo, o alicate, os pregos ou o rolo da corda. Uma vez até disse que lhe tinha desaparecido a câmara-de-ar da bicicleta. E tinha razão. Tínhamos precisado dela à última hora para as nossas provisões de água. O caminho passava pelo deserto e já se sabe que os viajantes passam sede por lá, se não levarem água suficiente.
Era sempre uma longa viagem cheia de peripécias. Em terra, tínhamos de vencer lutas com bandidos e animais ferozes. No mar, passávamos por tempestades que quase afundavam o nosso barco. Uma vez, salvei a avó pela saia, mesmo no momento em que ia ser cuspida borda fora
Mas acabávamos sempre por chegar sãs e salvas a Belém. E, como por magia, sempre no dia 24 de Dezembro!
Quando a avó estava em nossa casa, também se passavam coisas misteriosas. Uma vez, ao meter-me na cama, encontrei um grão de ouro na minha almofada. Grãos de ouro! De onde é que vêm os grãos de ouro? Só podem vir das asas dos anjos! Algum anjo devia ter passado a voar sobre a minha cama!
Quando perguntei à avó, ela sorriu, mas não respondeu.
Certa manhã, apareceu uma estrela pendurada no teto por um fio transparente. Ninguém sabia quem a tinha lá posto. Também ninguém soube explicar como é que o minúsculo presépio feito numa casca de noz fora parar no meio dos meus lápis de cor.
O fato mais maravilhoso era a minha avó conhecer o S. Nicolau. Ela conhecia-o mesmo! Eu sei! Eu estava lá quando ele falou com ela, lá no parque.
Já disse que a avó era antiquada. Mas não era só antiquada na roupa. No resto também. Falava muitas vezes do tempo em que tudo escasseava e ela achava que as pessoas deviam ser mais poupadas no dinheiro e nas coisas.
A avó era-o. Por isso queria trazer o ramo seco que estava caído no caminho.
– Ainda serve para o fogão – disse ela. – Apanha-o, por favor.
Mas eu não queria.
– Não! – disse eu. E, quando ela tentou apanhá-lo, eu afastei-o.
– Nós não apanhamos lenha. Vão levá-la a casa.
Na altura, não sabia porque tinha sido tão impertinente com a avó, mas agora penso que foi por causa das pessoas que passavam. Não queria que pensassem que precisávamos de andar a apanhar a lenha da rua.
A avó hesitou. Reparei que não sabia o que fazer.
De repente, à nossa frente, apareceu um homem idoso. Estava ali como por magia. Alto e respeitável, com uma barba branca e olhos a brilhar.
– Faça favor, minha cara e honrada senhora – disse ele com uma leve vénia. A voz era grave e sonora.
Estremeci como se tivesse sido atingida por um raio. Aquela voz! Aqueles olhos! Aquela barba branca comprida! Só podia… era, de certeza… Nem me atrevia a continuar a pensar. “Minha cara e honrada senhora”, tinha ele dito à avó. Tinha-lhe feito uma vénia e a avó sorrira e agradecera-lhe.
Depois desapareceu. Tão repentinamente como aparecera.
No caminho para casa, não abri a boca. Tropeçava nas pedras do passeio e nas tampas do saneamento, e dentro de mim ia uma grande confusão.
Agora ele viu – pensava eu. – Agora ele já sabe como é que eu às vezes me porto.
A avó caminhava ao meu lado, em silêncio. O ramo meio seco ia a arrastar pelo chão. À porta de casa, não aguentei mais. Enterrei a cara nas pregas da gabardina da avó e desatei num pranto.
A avó deixou-me chorar. Não fez nada para me consolar, e eu pensava: “Agora vai ficar zangada comigo para sempre e aquele… aquele desconhecido do parque, também.”
Mas então reparei que ela se tinha debruçado sobre mim. Sentia a sua respiração quente nos meus cabelos e ouvia-a falar-me muito baixinho. O que dizia, não percebi, porque ainda soluçava com muita força. Não conseguia parar.
A avó então afastou-me um pouco dela e perguntou:
– Queres levá-lo para cima? Já é um pouco pesado para mim.
Claro que percebi imediatamente que se referia ao ramo e por um momento, sustive a respiração. Depois remexi no bolso, tirei um lenço e assoei as lágrimas que tinha no nariz.
– Dá cá! – disse. Peguei no ramo seco e subi ruidosamente as escadas.
Metemo-lo logo no fogão de cerâmica e ouvia-o a crepitar e a estalar.
“Será que ele sabe que fui eu que o carreguei para cima?”, pensava eu. A avó acenou-me com a cabeça e riu-se. Vi então que estava tudo bem outra vez e fiquei muito feliz com isso.
HOJE É NATAL
O avô Fernando chegou de longe com uma mala muito pesada. Ajudei-o a levá-la para o meu quarto e não o larguei mais, enquanto não a abriu. O que traria ele dentro daquela mala tão grande? Prendas de Natal? Surpresas? Brinquedos? Livros? – perguntava a mim próprio. Mortinho de curiosidade, andei à sua volta como uma mosca, a zumbir perguntas.
— Ó avô, o que é que trazes?
— Tem calma, tem paciência, que logo te mostro! – aconselhou, ainda com a voz ofegante por ter carregado comigo aquela mala.
— Anda lá, diz-me só a mim, que eu não digo a mais ninguém!
— As prendas e as surpresas só se mostram logo, depois da ceia. Não sejas chato!
— Diz-me, que eu prometo guardar segredo! – insisti.
Como tinha de entregar à minha mãe uns produtos para a ceia, que tinha trazido da sua terra, começou a abrir a mala devagarinho e eu fiquei à espera que de lá de dentro saísse qualquer coisa de mágico: um avião que voasse – vrrruuum, vrrruuummm – ou uma coisa assim... capaz de fazer pasmar os meus amigos.
Mas não. Apareceram, entre a escova de dentes, a gilete, o pincel da barba, uma toalha de rosto e o pijama do meu avô, vários embrulhinhos amarrados com fitas coloridas, uma garrafa de azeite, um queijo, uma broa de Avintes, um frasco de azeitonas e uma garrafa que parecia ter dentro água amarela.
— Avô, que prenda me vais oferecer?
— Que prenda me vais dar a mim?
Não lhe respondi. A um canto, estava um rolo envolvido em papel azul-marinho, prateado.
— E isso, o que é? É um telescópio? É um caleidoscópio?
— Olha que tu és muito pegajoso! Está bem, pronto! Eu digo-te, se não, nunca mais te calas. Isso é uma luz para o Natal!
— É de ligar à eletricidade? É de acender? É uma estrela para pôr no presépio? – perguntei, agitado.
— Não. Isto é o Espírito do Natal! – exclamou o meu avô, com mistério na voz.
— Espírito? Igual àquele da Lâmpada do Aladino? Se esfregar, sai um gênio que faz tudo o que a gente quer? Ó avô és mesmo finório! Mostra, avô, mostra!
Para não me aturar mais, ele ia a desembrulhar o rolo de papel prateado, quando foi salvo da minha curiosidade pelo chamamento da minha mãe:
— Venham para a mesa!
O meu avô, ainda a arfar da viagem, desceu devagar com a mão no corrimão, e eu acompanhei-lhe os passos.
O meu pai fechou-se na sala de jantar e, querendo fazer um bonito, não nos deixou entrar na sala, onde a mesa já estava posta para a ceia.
As luzes estavam apagadas e a porta fechada. Quando íamos para entrar, o meu pai, muito teatreiro e eufórico, fez:
— Te te te tzzéééé! ! ! – e abriu a porta e as luzes.
Senti uma baforada quente e fui abraçado por um cheirinho a rabanadas, a sonhos, a filhoses, a alegria com desenhos de canela e a bilharacos, que era um doce que o meu avô apreciava muito.
A iluminação da sala estava um espanto, a mesa um espetáculo, a lareira soltava línguas de fogo e a música ambiente eram as vozes de anjos de um CD que a minha mãe comprara de propósito para aquela noite.
Por cima da lareira, o meu pai pôs o presépio e ao canto construiu uma Árvore de Natal, apenas com ramos de pinheiro, porque pensava ele que as árvores não se deviam abater.
Disse-me uma vez:
— Se um dia tiveres de cortar uma árvore, deves pedir-lhe desculpa, ouviste? Uma árvore é um ser vivo!
O meu avô dirigiu-se ao presépio, mirou-o e remirou-o e, por fim, disse:
— Que engraçado! Nunca vi um presépio assim: o Menino Jesus está ao colo da mãe e a manjedoura vazia. Ó Castro, dou-te os meus parabéns, o presépio está muito bonito!
Os olhos do meu pai brilharam com o elogio.
E sabem porquê? É que o meu avô achava que o meu pai era um bocado azelhote para fazer coisas e habilidades com as mãos.
Era a primeira vez que ele vinha a nossa casa, depois do segundo casamento da minha mãe.
Para o impressionar, os meus pais receberam-no com mimos e atenções como se fosse um rei.
Por causa disso, eu comecei a ficar um bocado chateado. Até parecia que os meus pais, naquela noite, decidiram riscar-me do mapa das suas atenções.
Mas não, para mim, aquele Natal não foi só uma noite de paz, foi uma noite de pazes.
— Ah, já me esquecia... Olha, Mário, vai à minha mala buscar o Espírito do Natal, mas traz com cuidado, não lhe mexas, ouviste? – pediu-me o avô Fernando.
O meu pai e a minha mãe cruzaram os olhos de interrogação, ao saber que o meu avô tinha trazido para casa um espírito.
Subi a correr as escadas que davam para o meu quarto e senti que os bichos carpinteiros da curiosidade me atacavam com perguntas:
— O que estaria dentro daquele rolo de papel prateado? Seria mesmo um espírito? E os espíritos têm a forma de um charuto comprido? Seria uma brincadeira ou uma história do meu avô? Pelo sim e pelo não, passei os dedos, ao de leve, pelo rolo.
E se o tal espírito saísse do tubo e me falasse: “Diz-me, Mário, meu amo, que desejas? Diz-me, que a tua vontade será satisfeita!”
Se isso me acontecesse, o que é que eu desejaria? Sei lá, se não ficasse atrapalhado, era capaz de pedir:
— Ó alma boa, ó espírito da luz, quero que arranjes alguém que me faça os deveres de casa, quero um avião a sério que aterre no meu pátio e quero uma moto a motor!
Estava a minha imaginação com gás na tábua quando ouvi a voz do meu avô:
— Então, vens ou não?!
Desci as escadas a correr e entreguei-lhe o rolo de papel prateado. Fiquei à espera, para ver o que de lá saía.
Era agora, era agora que eu ia conhecer o tal Espírito do Natal. Como o avô desembrulhou o rolo com muito cuidadinho, eu comecei a acreditar que, se calhar, havia ali mesmo qualquer mistério.
Desenrolou, desenrolou, até que… apareceu uma simples vela de cera branca.
— Oooohhhh! Uma vela! – disse de mim para mim, muito desiludido.
Embora a sala estivesse inundada de luz, o avô Fernando riscou um fósforo, pediu à minha mãe um castiçal, acendeu a vela e colocou-a no centro da mesa. Depois, disse:
— Na chama desta vela mora o Espírito do Natal! Nesta noite, nesta mesa e nesta chama, para mim estarão presentes todos os nossos antepassados, todas as nossas recordações e todas as pessoas de quem gostamos. Está o meu pai e a minha mãe, está a tua... está a tua... avó que Deus tenha...
O meu avô parou de falar e, em vez de palavras, saíram apenas lágrimas grossas que escorreram pela cara abaixo.
O silêncio que se fez foi tão grande que ficámos todos muito encolhidos, sem saber o que dizer.
Quem nos salvou do peso do silêncio e das lágrimas foi a minha mãe:
— Então, então, pai, hoje é Natal! – falou baixinho a minha mãe, misturando a fala com um beijo.
— Vamos à ceia! – disse, por fim, o avô, ainda com a coragem engasgada.
Depois, comemos, rimos, jogámos ao rapa, ao tira, ao deixa e ao põe até que chegou a hora da distribuição das prendas.
O meu pai deu-me um livro, a minha mãe uma camisa aos quadrados e o meu avô umas grossas meias de lã.
Eu fiquei muito desconsolado porque esperava um brinquedo de espanto, daqueles que fizessem roer de inveja os colegas da rua. O meu avô andava sempre com os pés frios e trouxe meias de lã porque, se calhar, pensou que sofríamos todos do mesmo mal.
Estava tudo a correr bem. Até o meu pai, que andava quase sempre, “cabisbundo” e “meditabaixo”, ria-se, ria-se até mais não. A certa altura, o avô chamou-me para a sua beira e disse-me:
— Olha para a luz da vela. Fixa o Espírito do Natal! O que vês? Eu lá olhei, mas o que via era que a chama se inclinava, lenta mente, ora para um lado, ora para o outro.
— Vês alguma coisa?
— Não vejo nada. Só a chama a dizer não, devagarinho!
— Para mim, na Noite de Natal, esta chama significa tudo o que o ser humano tem de bom dentro de si: a saudade do amor, da amizade e da partilha das coisas. É por isso que lhe chamo o Espírito do Natal. Nesta noite, quando fixo a luz da vela, diante dos meus olhos passam, como se fosse em cinema, histórias e vidas das pessoas que amei e se cruzaram comigo ao longo dos anos.
Estou agora a olhar para ela e estou a lembrar-me do Natal mais lindo que eu tive em toda a minha vida. Queres que te conte?
— Conta, avô, conta!
— Mas olha que é uma história triste! Mas verdadeira!
— Não faz mal! Mesmo assim, conta!
A minha mãe e o meu pai aproximaram-se do sítio onde nós estávamos. O avô fixou os seus olhos de formiga na chama da vela e, com uma voz quente e pausada...
— No tempo em que o Natal custava a chegar, vivia eu numa casa pequenina. Eu era pobre e não tinha brinquedos, mas não me importava. Bastava o cheiro que andava pelas ruas e pelos caminhos a fazer miminhos de fraternidade no coração das pessoas.
Era por isso que, quando tinha a tua idade, na véspera de Natal, ao passar pelas outras pessoas, dizia, cheio de alegria:
— Hoje é Natal!
A pouca distância de minha casa, havia uma outra, que não era bem casa. As paredes eram de chapa velha e o chão de terra batida.
O vento entrava por tudo o que era frincha e o frio estava ali plantado.
Uma fogueira fazia de fogão e a única cama que havia era feita de paus de pinheiro, ainda por descascar.
E nessa casa que não era bem casa, tão pequenininha e tão pobre de tudo, morava a Ti Adelaide Tintureira e os seus filhos: a Rosa e o Domingos.
Esta mulher de pele enrugada, de olhos verdes e vida amargurada foi, um dia, transformada em pássaro negro. Por duas vezes se quis matar, atirando-se da ponte de D. Luís para o rio Douro.
Da primeira vez, as saias largas que usava amorteceram a queda e um barqueiro que por ali andava viu-a e, remando rapidamente, retirou-a do rio, ainda com vida.
Da segunda vez que se quis matar estava muito vento. Ao atirar-se da ponte, uma rajada empurrou-a contra os fios de eletricidade e neles ficou enrodilhada. Os bombeiros tiraram-na com vida, apenas ficando magoada no peito.
Disseram as velhas da aldeia que tudo isso aconteceu porque o Anjo da Guarda da Ti Adelaide Tintureira, cansado de a proteger durante uma vida cheia de aflições, adormeceu duas vezes.
E, nessas duas vezes, a Morte, ao ver aquela mulher de olhos tristes, transformada em ave negra, não a quis e devolveu-a, sã e salva, para viver o resto do seu destino.
Naquele tempo, a Ti Adelaide Tintureira e os filhos viviam da venda da lenha, apanhada nos pinhais, e de pequenos serviços que lhe encomendavam. Ela e os filhos vestiam do que algumas “almas caridosas” lhe davam.
Passavam muito mal e, quando se vive assim, nem é bom sentir o cheiro do Natal nem ouvir falar de prendas nem de rabanadas. Isso só serve para entristecer a vida de quem tem pouquinho.
— Natal é um dia como os outros! – dizia a Ti Adelaide Tintureira para tentar convencer os filhos a não olharem para as roupas novas que os outros meninos vestiriam no dia seguinte.
Na noite de Natal, em cima da nossa pequena mesa, já fumegava a travessa de bacalhau cozido com batatas e couves-galegas.
Nesse ano, para além das rabanadas, havia um bocadinho de queijo, uns pastéis comprados no Porto e uma garrafa de vinho fino, oferecida pelo Ti Zé Estureta, como consoada, por lhe gastarmos da mercearia.
Para operários de vida dura, aquela ceia de Natal era quase um banquete de rei.
Quando íamos iniciar a refeição da noite de Natal...
— E se fôssemos chamar a Ti Adelaide Tintureira e os seus filhos para cearem com a gente? – propôs o meu pai.
A minha mãe disse que sim e, momentos depois, eu batia à porta da barraca da Ti Adelaide Tintureira.
Lá dentro, a chama da candeia de azeite furava a escuridão e os olhos da Rosa e do Domingos enchiam de tristeza aquela noite, que não era bem igual às outras.
Sem saber o que dizer nem fazer, seguiram-me até à porta da minha cozinha.
Disseram boa noite com voz sumida e, quando se sentaram à volta da mesa daquela família de pobres operários, que era a minha, dei com uns olhos verdes, acesos de alegria.
Eram os da Ti Adelaide Tintureira que pagava aquele gesto bonito com um olhar que já não usava há muito tempo: um olhar de felicidade.
Quando acabámos de comer e de jogarmos o rapa a pinhões, vim cá fora e, pelo intervalo das folhas de uma laranjeira, vi, lá longe, o brilho de uma estrelinha que mais ninguém viu.
Agora, quando olho para o céu, lembro-me dos olhos acesos da Ti Adelaide Tintureira, que foram morar para as estrelas e que me aparecem, na noite de Natal, para me recordarem dos bons sentimentos que ainda não foram apagados do coração das pessoas.
Quando o avô Fernando se calou, olhei para a chama da vela e senti que o Espírito do Natal estava ali e me tinha visitado naquela noite.