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A Bolsa Amarela - Capítulo VIII






HISTÓRIA DE UM GALO DE BRIGA E DE UM CARRETEL DE LINHA FORTE

Eu tinha dito que nunca mais na vida, até ser grande, eu escrevia outro romance. Mas aquele negócio que aconteceu com o Terrível me deixou tão — sei lá — tão diferente, que eu não parava mais de pensar nele, Quando eu vi, já estava escrevendo uma história contando tudo que eu acho que aconteceu no duro. Porque eu tenho certeza que a Guarda-Chuva não viu direito. Vou copiar aqui o que eu escrevi:
“Assim que ele nasceu, resolveram que ele ia ser um galo de briga tão brigão, tão ganhador de todo mundo, tão terrível, que o melhor era ele se chamar Terrível de uma vez e pronto.
Porque no galinheiro onde ele morava era assim mesmo: mal os pintinhos nasciam, os donos do galinheiro já resolviam o que é que cada um ia ser:
— Você vai botar ovo,
— Você vai ser tomador-de-conta-de-galinha.
— Você vai ser galo de briga.
— Você vai pra panela.
E não adiantava nada os pintinhos quererem ser outra coisa: os donos é que resolviam tudo, e quem não gostou que gostasse.
Terrível tinha um primo chamado Afonso. Os dois eram enturmados que só vendo, batiam cada papo bom mesmo. Quando os donos viram aquilo, pronto: separaram os dois. E disseram:
— Galo de briga não pode gostar de ninguém. Galo de briga só pode gostar de brigar.
Terrível foi crescendo, foi crescendo, ficou grande. E os donos todo dia treinando ele pra brigar. Mas quanto mais treinavam o Terrível, mais o Terrível ia ficando com uma vontade danada de se apaixonar. Porque ele era assim: gostava demais de curtir a vida. O problema é que botavam ele pra brigar, e todo mundo sabe que briga é o pó da coisa que não combina com curtição.
Até que um dia ele se apaixonou por uma franguinha que era uma graça. E aí aconteceu o seguinte: na hora de brigar, ele começava a pensar nela; em vez de atacar o inimigo, ele desenhava no chão um coração. Os donos ficaram furiosos e trancaram o Terrível num galinheiro de parede bem alta. Não dava mais pra ele ver a namorada, não dava pra ver mais ninguém. Depois trouxeram um outro galo que também estava treinando pra ser galo de briga e deixaram os dois juntos: era pra eles brigarem bastante.
Mas o Terrível foi logo achando que o outro galo era legal, e então deu um voo, roubou uma meia de mulher que tava pendurada no varal, rasgou um pedaço, encheu de folha de pena de tudo que encontrou, amarrou com o outro pedaço e fez uma bola. Em vez de brigar, os dois foram jogar futebol.
Foi aí que os donos disseram:
— O jeito é fazer o Terrível pensar do jeito que a gente quer que ele pense.
Mas, que jeito? Bolaram, bolaram e acabaram resolvendo que o jeito era costurar o pensamento do Terrível e só deixar de fora o pedacinho que pensava: ‘Eu tenho que brigar! Eu tenho que ganhar de todo mundo.’ O resto todo sumia dentro da costura. E resolveram:
— Vamos costurar com uma linha bem forte pra não rebentar.
A Loja das Linhas era uma loja que só tinha linha. De tudo quanto é jeito e cor. Na prateleira do fundo moravam dois carreteis, que há muito tempo estavam ali, um do lado do outro, esperando pra ser comprados. Um era carretel de linha de pesca; o outro, de linha forte. As duas linhas batiam papo até não poder mais:
— Puxa vida, ainda bem que eu nasci linha de pesca: vou viver no mar, no sol, pegando peixe, vai ser legal. Será que o meu comprador vai ter barco?
— Você queria barco à vela ou de motor?
— Motor. Vai mais depressa. Respinga água. Vejo mais mar.
A Linha Forte suspirava:
— Você que é feliz: sabe direitinho a vida que vai ter. Eu não. Passo o dia pensando no que que vão me usar.
— Você queria ser usada pra quê?
— Ah, pra costurar lona de barraca de acampamento! Já pensou? Viver sempre lá fora, acampando aqui, ali, viajando pra baixo e pra cima, conhecendo uma porção de lugares diferentes, que maravilha!
As duas queriam viver no mar, no mato, lá fora, sempre lá fora: a Loja das Linhas era tão apertada, abafada, tão sempre de luz acesa.
Quando fechavam a loja de noite, e elas viam que outro dia tinha acabado e nenhum comprador tinha aparecido, elas ficavam meio na fossa e diziam:
— Puxa, a gente vai acabar mofando de tanto ficar nessa prateleira.
Até que um dia os donos do Terrível entraram na loja e compraram a Linha Forte. Compraram sem dizer pra que que estavam comprando.
Quando a Linha de Pesca viu a amiga indo embora, quase morreu de tristeza. Só não morreu porque estava numa curiosidade danada pra saber como é que ela ia ser usada. E então foi atrás pra saber. Esperou eles entrarem em casa, e aí ficou espiando pelo buraco da fechadura. Viu direitinho quando fizeram um talho na cabeça do Terrível, tiraram o pensamento dele lá de dentro, costuraram ele todo com a Linha Forte, só deixaram descosturado o pedaço que pensava ‘tenho que brigar! tenho que ganhar de todo mundo!’ Depois viu quando eles enfiaram de novo o pensamento na cabeça e costuraram o talho com um restinho da Linha Forte que tinha sobrado. Nessa hora a Linha de Pesca sentiu uma pena horrível da Linha Forte: ‘Coitada! Ela queria tanto viver viajando, no sol, no vento, sempre acampando, e acaba desse jeito, fechada pra sempre no pensamento do galo.’ Voltou pra loja numa tristeza daquelas. Se ajeitou na prateleira e continuou esperando um comprador.
O tempo foi passando. Terrível só pensava o tal pedaço descosturado. E então começou a ganhar tudo quanto é briga. Todo mundo apostava nele. Os donos pegavam o dinheiro e, em vez de dar pro Terrível, eles diziam:
— Bobagem. Pra que que galo precisa de dinheiro? — E metiam o dinheiro no bolso.
Terrível não ligava a mínima porque o pedaço do pensamento dele que pensava “puxa vida, eu dou esse duro todo e eles é que ficam com o dinheiro” também estava costurado.
E foi assim que o Terrível ganhou cento e trinta lutas!
Durante esse tempo que passou, a vida da Linha Forte não foi mole: como ela morava no pensamento do Terrível, e como ele sempre pensava a mesma coisa, a vida dela era chatíssima, não variava nunca. Então ela dormia pra passar o tempo. Dormia até dizer chega. E às vezes pensava; eu preciso dar um jeito da minha vida melhorar. Mas acabava não dando: pra encontrar um jeito ela precisava largueza pra procurar, e lá dentro ela vivia muito apertada.
O corpo do Terrível foi cansando. Um dia ele lutou com um galo mais novo e mais forte chamado Crista de Ferro, e perdeu. Lutou outra vez. E perdeu de novo. Os donos do Terrível ficaram danados, mas não deixaram o Crista de Ferro acabar com o Terrível. Marcaram a terceira luta dos dois. Na praia. Bem escondida; ia ser uma luta feia. E disseram:
— Olha aqui, Terrível, o negócio é o seguinte: ou você ganha essa briga ou a gente deixa o Crista de Ferro abotoar teu paletó.
O Terrível ficou supernervoso, mas como o pensamento dele nunca variava, ele nem pensou em fugir nem nada. Foi aí que ele encontrou o Afonso, o tal primo que era enturmado com ele.
O Afonso tinha fugido do galinheiro porque queriam que ele fosse tomador-de-conta-de-galinha e ele tinha horror daquela vida. Andava escondido na bolsa de uma amiga dele chamada Raquel.
Quando o Afonso e a Raquel souberam da história toda, eles viram logo que o Crista de Ferro ia acabar com o Terrível. Então prenderam ele na bolsa. Mas na noite da briga o Terrível conseguiu sair da bolsa e correu pra praia. Aí a Linha Forte ficou na maior aflição: ela sabia muito bem que o Terrível ia morrer na briga; e ele morrendo, ela morria também. Ela era uma linha dorminhoca, adorava uma soneca, mas também não queria dormir sempre, pra toda a vida — assim que nem é a morte. Começou a fazer uma força danada pra ter uma ideia, pra dar um jeito de salvar a situação.
— Entra na roda! Entra na roda!
Era assim que todo mundo gritava quando o Terrível chegou na praia.
O pessoal que apostava estava sentado na areia fazendo roda, e o Crista de Ferro no meio da roda esperando.
Que força que a Linha Forte fazia pra encontrar uma ideia, pra dar um jeito!
Terrível pulou pro meio da roda. A briga começou.
Crista de Ferro lutava muito melhor e achava que lutar era legal (na certa o pensamento dele também tinha sido costurado).
Terrível começou a perder. Perdeu sangue, perdeu duas penas, foi ficando cansado.
A Linha Forte cada vez fazia mais força pra dar um jeito. Quanto mais o Terrível apanhava, mais força ela fazia. Mais força. Mais força. Até que de repente — plá!!! — de tanto fazer força, rebentou. E foi só ela rebentar que o pensamento do Terrível descosturou, abriu todinho, e ele desatou a pensar mil coisas, ficou até tonto de tanto pensamento junto. Num instante entendeu tudo que estava acontecendo, e é claro que não sendo bobo pensou logo; besteira eu morrer nessa praia só porque eles cismaram que eu tenho que brigar com o Crista de Ferro. E se mandou! Correu pro mar.
Saiu todo mundo atrás, o Crista de Ferro também. Quando o Terrível viu o pessoal chegando perto, entrou ainda mais pra dentro do mar. Foi aí que ele viu um barco parado na água. Dentro do barco tinha um homem pescando e curtindo tanto a pescaria que nem tinha visto ninguém: só olhava pro mar e mais nada.
Terrível foi indo pro barco. A Linha Forte se apavorou outra vez: Terrível não sabia nadar, na certa ia se afogar, e ele se afogando, ela se afogava junto com ele. Era azar demais! Mal se livrava de uma e caía noutra.
O pessoal já estava pertinho. Terrível desatou a engolir água, começou a afundar.
E foi nessa hora — justinho nessa hora — que a linha do anzol do homem do barco reconheceu o Terrível. Ela viu o que é que estava acontecendo, se lembrou da amiga dela costurando o pensamento do galo e — zuque! — deu uma guinada e jogou o anzol na crista do Terrível. O anzol fisgou a crista, e o dono do barco — crente que aquele peso era peixe — suspendeu o caniço e foi enrolando a Linha de Pesca. Enrolou, enrolou, o Terrível foi chegando perto do barco, chegando, chegou! Só aí é que o homem viu que não era peixe, era galo. Mas não ligou: ele estava mesmo querendo uma companhia. E então ligou o motor e o barco foi embora.
O barco andou mar à beça, e quem gostou mais foi a Linha Forte; ela adorava viajar, e era um tal de ver ilha, de ver porto, de ver peixe, de ver coisa que só vendo.
Aí, um dia, o barco chegou num lugar bem longe e o Terrível desembarcou. Era lá que ele ia viver. Sossegado. Sem ter que ganhar de todo mundo. Lá ele ia arranjar amigo e desenhar coração. E não ia mais ter dono nenhum costurando o pensamento dele.
Quem viu na praia as duas penas que o Terrível perdeu pensou até que ele tinha morrido. Bobagem. Ele agora tá curtindo a vida no tal lugar bem longe. Ele e a Linha Forte. Os dois.”

Continua...
 
Lygia Bojunga
A bolsa amarela
Rio de Janeiro, Casa Lygia Bojunga Lda., 2004

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