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Célia e a água doce da infância







Há muito, muito tempo, viviam, numa pequena casa no campo, uma mulher chamada Mara, a sua filha Célia, e um cão grande, peludo e extremamente mal-humorado, chamado Brumble.
Tal como a maioria dos cães que vivem com famílias, Brumble falava sem cessar.
Às vezes, Mara e Célia prestavam atenção; outras vezes, não.
Ao contrário de Brumble, que era um lamuriento nato, Célia estava quase sempre feliz. Daí que ficasse surpreendida quando, às vezes, via lágrimas nos olhos belos de sua mãe.
Mara lembrava-se da guerra, que lhe roubara tanto a casa da sua infância como o marido. Nunca falava à filha desses tempos, nem de como tinha fugido com ela e com o cão para escapar ao conflito. Na cabana isolada que encontrara, há já dez anos, tinha-se sempre sentido segura e confortável.
Quando Célia a via chorar, Mara apressava-se a limpar as lágrimas e tocava uma melodia alegre na sua flauta de madeira, até se sentirem ambas felizes de novo.
Só que Célia não era nem uma criança mimada, nem uma filha inconsciente.
Amava muito a mãe e, quando um dia esta ficou doente, tratou de fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para a ajudar a recuperar. Fez chá de casca de árvore, esfregou os pés frios da mãe e tocou-lhe melodias na flauta de madeira.
Em vão.
Mara virava-se e revirava-se na cama com febre, e parecia já nem reconhecer a filha. Célia estava a ficar desesperada.
— Que hei de fazer?
— Eu digo-te o que deves fazer — resmungou Brumble. — Sossega e deixa este cão descansar.
A menina não lhe prestou atenção. Estava habituada ao seu mau gênio e aos seus ainda piores modos. Além disso, estava demasiado preocupada com a mãe para se preocupar com os resmungos de Brumble.
Foi então que ouviu a mãe. Falava durante o sono e dizia qualquer coisa como:
— Se pudesse voltar a beber a água doce da minha infância, ficaria de novo boa.
Célia sabia que a mãe tinha nascido a muitos quilômetros dali, numa aldeia que a filha nunca conhecera. No entanto, corajosa como era, estava disposta a encontrar esse lugar. Tinha de trazer à mãe a água milagrosa do poço.
Encontrou uma garrafa de vidro com uma rolha de cortiça e atou-a à cinta. Arranjou um pequeno cesto com pão e queijo, porque sabia que a viagem seria longa. Enrolou-se na capa de lã da mãe, por causa do ar fresco da primavera, e pôs a flauta à cinta, caso viesse a necessitar de música para a alegrar na viagem.
Debruçou-se sobre a mãe e sussurrou-lhe:
— Vou buscar a água doce da tua infância. Tens algo para comer e beber na mesinha de cabeceira. Voltarei em breve.
Brumble abriu um olho.
— O que estás a dizer? Na tua idade não se pode andar por aí sozinha, sem saber por onde ir.
— Não há outra hipótese — retorquiu Célia. — Se eu não for, a minha mãe morre.
Brumble pôs-se de pé, a resmungar:
— Bem, creio que tenho de ir contigo.
Célia ficou contente por ter companhia para a viagem, mesmo tratando-se de alguém tão rabugento como Brumble.
Puseram-se a caminho a meio da manhã.
O sol já ia alto, e o cheiro das folhas novas e das flores silvestres enchia o ar de abril.
— Que dia maravilhoso! — exclamou Célia.
— Espera para ver — aconselhou Brumble.
Tinha razão, porque em breve chegavam à orla de uma floresta. As árvores eram tão cerradas que, mesmo ao meio-dia, o sol mal penetrava por entre os ramos entrelaçados. Célia caminhou em frente, não fosse Brumble pensar que estava com medo.
De repente, ouviu um grito tão agudo que parecia cortar as folhas das árvores.
— O que foi aquilo? — perguntou, assustada, já esquecida de que queria parecer corajosa.
O canzarrão afilou as orelhas.
— Ou me engano muito, ou é a criança selvagem da floresta.
“Se for apenas uma criança”, pensou Célia, “não me importa que seja selvagem. De certeza que não há nada a temer.” Surgiu, então, uma criatura vinda das árvores.
Tinha o cabelo todo espetado e lançava gritos estridentes.
Célia engoliu em seco.
— Rapazinho — conseguiu dizer, num tom gentil — não sabes que é mal-educado não cumprimentar as visitas? O Brumble e eu gostávamos de ser teus amigos. Se parares de gritar e nos contares o teu problema, podemos tentar ajudar-te.
Mas o rapaz rosnou-lhe e continuou a coçar a cabeça com as unhas compridas e sujas.
— Vá lá — disse Célia, tentando falar meigamente, tal como a mãe faria. — Do que precisas é de um bom almoço. Acontece que o trouxe comigo, e que o partilharei contigo.
A criança selvagem ficou surpreendida.
Nunca ninguém lhe tinha falado de forma tão doce.
As outras pessoas que encontrava na floresta lançavam-lhe um olhar rápido e saíam dali ainda mais rapidamente. O rapaz sentou-se no chão e apontou o lugar à sua beira com a mão suja.
— Lá se vai o nosso almoço — resmungou Brumble.
E foi-se mesmo. Célia deu quase todo o pão e queijo ao rapaz, que os comeu avidamente e sem maneiras.
— Se voltarem a passar por aqui — disse a criança a Célia — não se esqueçam de parar para me saudarem.
Célia prometeu que o fariam.
— Porque haveríamos de o fazer? — interrogou-se Brumble. — Já não há mais nada para comer.
Quando chegaram ao outro lado da floresta, sentiam um pouco de fome. Mas Célia estava contente. Isto até ver um lago enorme e verde diante de si.
— Ora bolas, esqueci-me da água — resmungou Brumble.
— Escuta — instou Célia, que tinha ouvido um som estranho.
Alguém estava a chorar sem cessar, com se tivesse o coração despedaçado.
— Também me esqueci da mulher infeliz do lago — suspirou Brumble. — Devo estar a ficar velho.
Logo que Brumble se calou, Célia viu um barco no lago. Dentro dele, estava uma mulher a chorar tanto que nem se detinha para enxugar as lágrimas.
Célia era uma menina bondosa e condoeu-se da velha. Também era suficientemente esperta para perceber que o barco lhes seria útil.
— Minha senhora, o que a faz sentir tão infeliz? — perguntou Célia.
Os olhos da mulher abriram-se, surpresos. Ninguém lhe tinha perguntado isso antes. Habitualmente, as pessoas ficavam muito embaraçadas e iam-se embora.
— Tenho frio e estou só — lamentou-se. — Não tenho um único amigo no mundo.
— Tenho mesmo aquilo de que necessita. Uma capa quente e confortável e dois companheiros de viagem que atravessarão o lago consigo e lhe contarão histórias — disse Célia, olhando Brumble de soslaio.
Brumble suspirou, desagradado, mas ficou contente por não ter de molhar as patas. A mulher já não se sentia infeliz quando os deixou do outro lado do lago. Estava embrulhada na capa quente de Mara e sorria.
— Obrigada — disse. — Quando regressarem, não se esqueçam de me chamar para voltarmos a atravessar o lago juntos.
— Fá-lo-emos com prazer — disse Célia.
Brumble não resmungou, ao contrário do que costumava fazer.
Na praia coberta de seixos onde aportaram, depararam-se com uma montanha enorme.
O coração de Célia apertou-se perante este obstáculo.
— Com os diabos — resmungou Brumble. — Tinha-me esquecido da montanha.
— Quem se atreve a pisar a minha praia? — gritou uma voz furiosa.
Célia ergueu os olhos e viu o mais alto e mais irado homem de toda a sua vida. Brandia um machado enorme, como se tivesse a intenção de o atirar à cabeça da menina.
— Meu Deus, como está zangado! — exclamou Célia, com a voz a tremer ligeiramente.
— Também me tinha esquecido do louco da montanha — murmurou Brumble entre dentes.
— Sabe o que me acalma quando estou zangada? — perguntou Célia, sentindo-se mais corajosa a cada palavra que proferia. — Música. Quer que toque para si?
Sem esperar pela resposta, tirou a flauta da cintura e começou a tocar.
Junto à água, a música ainda soa melhor do que num quarto fechado. O homem pôs-se a escutar. Em breve pousava o machado e sentava-se nos rochedos, sem qualquer vestígio de fúria no rosto.
Quando Célia parou de tocar, o gigante ficou tão triste que Célia lhe deu a flauta para a mão.
— É para si. Para que possa tocar quando quiser.
— Podes ficar comigo e ensinar-me a tocar? — pediu o homem.
— Posso ficar um pouco. Mas estou com muita pressa. Tenho de ir à aldeia que fica por detrás desta montanha buscar água do poço para salvar a minha mãe.
— Eu levo-te e podes ir-me ensinando enquanto caminhamos.
Embora Brumble tivesse dificuldade em subir, o homem não fez qualquer menção de o carregar.
— Que vida de cão! — resmungou Brumble.
Ao subir a montanha, Célia tocou uma melodia tão alegre que o homem riu alto. Quando atingiram o cume, a menina mostrou-lhe como se colocavam os dedos e se soprava para extrair sons da flauta. Quando desceram a montanha, Célia agarrou-se aos cabelos do homem para ele poder praticar.
Depois de a colocar no chão com suavidade, o gigante tocou uma pequena melodia para demonstrar quão bom aluno era.
— Chama-me quando regressares, e atravesso a montanha contigo de novo.
Célia prometeu fazê-lo, embora Brumble rosnasse disfarçadamente.
Quando se deu conta de que a aldeia estava perto, Célia esqueceu a fome e o cansaço e correu.
— Lá está o poço, Brumble. O poço com a água doce da infância da minha mãe.
O seu grito ecoou na rua deserta. A erva crescera entre as pedras e, pelos telhados e paredes das casas, via-se que a aldeia estava há muito em ruínas.
— Não faz mal — disse Célia. — Só viemos buscar a água. Deve haver água no fundo do poço.
Debruçou-se sobre a borda, mas não conseguia ver nada. Brumble pegou num seixo com a boca e deixou-o cair. Imediatamente se ouviu o ruído da água a ser tocada.
— Hurra! Temos água! — exclamou Célia.
— Que frustração — queixou-se o cão. — Temos água mas não temos balde para a tirar.
Sem dizer palavra, a menina subiu para a borda do poço, enrolou o que restava da corda à cinta e pediu ao cão que a baixasse devagar.
— Quando te chamar, segura bem a manivela, de forma a eu poder encher a garrafa. Depois, iças-me novamente.
Brumble não parecia satisfeito com o plano. E se a manivela se soltasse? Mas, embora se sentisse receosa, Célia estava disposta a ir até ao fim. Nada a deteria agora. Desceu o poço de cabeça para baixo. Não conseguia ver a água, mas via o rosto da mãe e isso deu-lhe coragem. Sentiu, finalmente, a água fresca na sua mão.
— Para! — ordenou a Brumble, que segurava com firmeza a manivela, enquanto Célia enchia a garrafa. — Já podes içar-me! — pediu a menina.
Brumble assim fez e só respirou quando viu Célia sã e salva fora do poço.
— Não foi difícil, pois não? — perguntou a menina.
— Estou a ficar velho para aventuras — lamentou-se o cão, e lambeu a cara suja da menina com a sua língua vermelha e áspera.
A viagem de regresso a casa foi bem mais rápida do que a ida. O gigante, que já não estava irado, levou Célia aos ombros e tocou-lhe uma linda melodia, enquanto esperavam que o ofegante Brumble os apanhasse. A mulher, que já não se sentia infeliz, levou-os novamente à outra margem do lago e desejou-lhes boa sorte. A criança, que já não era tão selvagem, ia de árvore em árvore a cumprimentá-los, o que fazia Célia rir, os pássaros grasnar e Brumble resmungar.
Quando avistaram a sua querida casa, Célia desatou a correr.
— Chegámos — gritou, tirando a garrafa preciosa da cintura. — Coragem, mãe! Estou de volta e trago-te a água doce da tua infância!
— Cuidado e atenção — murmurou Brumble. — Uma viagem só está completa quando chega ao fim.
O cão tinha razão, porque Célia, com a pressa, tropeçou nas escadas, a garrafa voou-lhe da mão, indo partir-se contra a parede da cabana. A água preciosa escorreu para o chão. Célia nem conseguia olhar. Correu para dentro de casa e abraçou-se à mãe, cujo corpo estava hirto como a morte.
— Oh, mãe, como pude ser tão descuidada e estúpida? Não fui capaz de te ajudar.
Célia sentia-se tão selvagem como a criança, tão zangada como o homem, e muito mais infeliz do que a mulher. Chorou como se o seu coração se tivesse partido em mil bocados, e as suas lágrimas caíram sobre o rosto da mãe como se de uma nascente se tratasse.
Foi então que os lábios da mãe se entreabriram e que esta provou um pouco das lágrimas que escorriam da face da filha. Lentamente sorriu.
— Que água tão doce — murmurou, abrindo os olhos. — É tal e qual a água de que me lembro da minha infância. E foste tu, minha querida Célia, que a trouxeste até mim!
Durante todos os anos das suas ainda longas vidas, Mara e Célia conheceram uma alegria que muitos não chegam a conhecer. Uma alegria que nenhuma delas conhecera até então, e que consiste em dar-se conta de que só quando partilhamos as lágrimas de alguém é que partilhamos também a sua felicidade.


Katherine Paterson
Celia and the Sweet, Sweet Water
New York, Clarion Books, 1998
(Tradução e adaptação)

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