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Filhos do Coração





                                                       
Era uma noite como outra qualquer.
A Luena estava sentada no chão a folhear o álbum de família. Os irmãos brincavam na sala com o Rafa e o Manecas, o cão e o gato lá de casa que, sendo os melhores amigos, às vezes pareciam os piores inimigos.
De repente, o silêncio foi interrompido pela curiosidade de uma menina de cinco anos.
— Mãe... como é que eu nasci? Porque é que não há fotografias minhas em bebê aqui no álbum?
A mãe percebeu que aquela, afinal, ia ser uma noite muito especial. Levantou-se do sofá e foi sentar-se ao lado da filha.
— Vou contar-te a história mais bonita do mundo e a mais especial, porque é a tua história. Sabes como nascem os bebês?
— Nascem de repolhos grandes! — exclamou o Manuel.
— Não é nada... chegam no bico das cegonhas! — contrapôs o Jorge.
Maria desatou a rir e avançou com a sabedoria de quem acredita que domina o mundo do alto dos seus dez anos:
— Os bebês nascem das barrigas das mães! O pai põe uma sementinha num ovo que a mãe tem dentro da barriga e, depois, a barriga começa a crescer, a crescer, a crescer e, nove meses depois, nascem os bebês!
— Nem todos — interrompeu a mãe —, alguns filhos nascem nos corações!
Nesse momento até as certezas da Maria, a irmã mais velha, desapareceram.
Curiosos, os irmãos aproximaram-se da mãe, prontos para ouvir esta história que, como todas as histórias importantes, começa com um…
— Era uma vez... — disse o pai da Luena que acabara de entrar na sala.
— ...um coração que engravidou de amor — acrescentou a mãe.
— Os corações também engravidam? — interrompeu a Luena curiosa.
— Claro que sim! Esse coração, tal como as barrigas das mães, cresceu tanto, tanto, tanto, que se apaixonou por uma menina cor de canela e de trancinhas no cabelo que escolheu fazer parte desta família — respondeu o pai emocionado.
— Sabes Luena... há várias maneiras de criar uma família, mas o importante é o amor que une as pessoas dessa família, porque as famílias são para sempre — concluiu a mãe.
— Mesmo quando se zangam? — perguntou o Manuel.
— Claro... não vês que, apesar de se zangarem, o Rafa e o Manecas adoram-se e não conseguem viver um sem o outro? — lembrou a mãe.
A Luena ouvia em silêncio com muita atenção mas, quanto mais lhe explicavam, menos conseguia entender. Pegou na mão da mãe, obrigando-a a fixar o olhar no seu, que suplicava por mais esclarecimentos.
— Então como é que eu cheguei ao teu coração grávido, mãe?
— Já vais perceber... mas, o mais importante é que estás cá dentro, no nosso coração, como todos os teus irmãos.
Pelo olhar perdido da Luena, todos conseguiram imaginar a confusão que reinava na sua cabeça. O pai avançou com mais explicações:
— Sabes Luena, existem muitos lugares no mundo onde os pais não têm condições para criar os filhos...
— ...e, por isso, têm que deixá-los em instituições como aquela no Gana, em África, onde nós te vimos pela primeira vez — acrescentou a mãe.
— E nesses lugares existem muitos meninos como eu, mamãe? — perguntou a Luena.
A resposta chegou pela mão da irmã mais velha, a quem os dez anos davam direito legítimo a uma resposta sempre na ponta da língua:
— Espalhados pelo mundo, existem meninos de todas as raças e cores que precisam de pais, porque os seus pais da barriga não puderam cuidar deles como eles mereciam.
«Raças» era uma palavra difícil para os irmãos mais novos. O Manuel sabia que era preciso perguntar para conseguir aprender e, por isso, não hesitou:
— O que são raças, papai?
— Raças são características diferentes dos meninos que nascem em todas as partes do mundo: em Portugal, no Gana, na China...
À Luena nunca lhe tinha ocorrido perguntar porque é que a sua cor de pele era diferente da dos seus irmãos... afinal somos todos diferentes uns dos outros! Há crianças gordas, magras, altas, baixas, meninos de olhos azuis e outros de olhos castanhos. A cor da sua pele fora sempre aquela, portanto era uma característica sua.
Ela também sabe que o que é realmente importante sente-se com o coração. E o seu coração traquina dizia-lhe que o importante é o amor que une as famílias e o sentimento de segurança que os filhos têm junto dos pais.
— Ao ver-te pela primeira vez, o nosso coração cresceu tanto, tanto, tanto, que se apaixonou e, desde esse momento, a nossa vida deixou de fazer sentido sem ti — revelou a mãe com ternura.
A Luena ficou em silêncio a saborear o olhar apaixonado dos pais e a pensar em todas as crianças que não têm uma família.
Imaginou os meninos que não pertencem a ninguém e que adormecem à noite sem ter os pais ao seu lado para lhes contarem uma história. Imaginou como deve ser difícil não receber um beijo da mãe todas as manhãs. Imaginou como se devem sentir sozinhas as crianças que estão à espera de conhecer os seus pais do coração...
Espontaneamente correu e abraçou os seus pais com toda a força que conseguiu, numa tentativa desesperada de lhes fazer sentir todo o amor que tem por eles.
— Que bom que é ter uma família! — exclamou feliz.
E a sabedoria dos dez anos da Maria traduziu-se numa verdade simples que, no coração, todos sentem como uma certeza:
— Luena... a nossa família não seria a mesma sem ti...
— É verdade Luena, estamos muito felizes por termos uma irmã como tu — acrescentou o Jorge.
— Papai, e o que acontece às outras crianças que ainda não tem uma família? — perguntou o Manuel.
— Estão à espera de encontrar corações apaixonados que engravidem de amor e consigam formar uma família como a nossa — explicou o pai.
— Sabem que às vezes isso acontece muito depressa, mas outras, demora mais tempo. Porém o mais importante é que, no final de tudo, encontrem uma família... e de certeza que isso acaba por suceder! — concluiu a mãe.
A Luena ficou tranquila com as palavras da mãe em relação aos outros meninos que ainda se encontram a viver em instituições. Contudo, uma dúvida insistia em formar a covinha que aparecia na sua bochecha esquerda sempre que algo a preocupava:
— Mamãe... mas como é que esses pais que engravidam do coração conseguem escolher uns meninos e deixar lá outros?
— Na verdade, filhota — explicou a mãe orgulhosa da sensibilidade da filha —, esses pais não escolhem os filhos... mesmo que não percebam, eles é que são os escolhidos. Um coração só engravida quando se apaixona, por isso é que pouco importa se os filhos nascem da barriga das mães ou dos seus corações. O amor só pode ser um laço natural... porque ninguém nos pode obrigar a amar!
— Tu, por exemplo, — continuou o pai – escolheste-nos no dia em que te conhecemos e, depois de nos conquistares, deixaste-nos amar-te. As fotografias que te faltam aí no álbum não são importantes, porque a nossa história de amor começou mais tarde, e nem todas as histórias de amor tem de começar numa maternidade.
— Se pensares bem, filhota — acrescentou a mãe —, não há fotografias de todos os momentos felizes que passámos juntos, porque alguns desses momentos guardámo-los cá dentro do coração, que é o melhor álbum da nossa vida!
O Manuel e o Jorge começavam a dar os primeiros sinais de cansaço com um bocejo traiçoeiro. A Maria, a quem a vida naquela noite até tinha conseguido ensinar qualquer coisa nova, foi contagiada e abriu a boca, denunciando a chegada da hora de dormir.
— Meninos, vamos para a cama! Hoje já ouviram uma linda história, que vos deu muito em que pensar! — exclamou o pai divertido.
A mãe levantou-se e distribuiu as crianças pelos quartos, ao ritmo de mimos e beijos de boas-noites. Quando chegou perto da cama da Luena reparou que a covinha da bochecha voltara a ficar visível.
— Mamãe... ainda existem muitas famílias à espera de serem escolhidas por essas crianças? — perguntou-lhe a filha.
— Algumas, meu amor... — disse a mãe tentando tranquilizá-la — …mas não te preocupes, porque todas essas crianças vão, de certeza, escolher uma família como a nossa para serem muito felizes.
Aos poucos, a covinha foi desaparecendo. A Luena fechou os olhos, rendendo-se a um sono descansado, e começou a sonhar com um mundo cor-de-rosa, com pinceladas de muitas outras cores alegres e vivas que pintam a realidade de uma menina traquina de cinco anos.
A mãe inclinou-se e beijou o rosto daquela filha especial, que tinha trazido um brilhante arco-íris à sua vida. Depois, afastou-se em silêncio e ficou a pensar que, se todas as famílias soubessem quão maravilhosas e completas se podem tornar as suas vidas quando os seus corações engravidam, de certeza que as instituições do mundo ficariam vazias de crianças e as suas casas cheias de amor.


Alexandra Borges; Luís Figo; Ana Cardoso
Filhos do Coração – A adopção explicada a pais e filhos
Lisboa, Bertrand Editora Lda., 2007

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