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O homem que enxergava a morte









Era um homem pobre. Morava num casebre com a mulher e seis filhos pequenos. 
O homem vivia triste e inconformado por ser tão miserável e não conseguir melhorar de vida.
Um dia, sua esposa sentiu um inchaço na barriga e descobriu que estava grávida de novo. 
Assim que o sétimo filho nasceu, o homem disse à mulher:
– Vou ver se acho alguém que queira ser padrinho de nosso filho.
Vestiu o casaco e saiu de casa com ar preocupado. Temia que ninguém quisesse ser padrinho da criança recém-nascida. Arranjar padrinho para o sexto filho já tinha sido difícil. 
Quem ia querer ser compadre de um pé-rapado como ele?
E lá se foi o homem andando e pensando e quanto mais pensava mais andava inconformado e triste.
 Mas ninguém consegue colocar rédeas no tempo.
O dia passou, o sol caiu na boca da noite e o homem ainda não tinha encontrado ninguém que aceitasse ser padrinho de seu filho. Desanimado, voltava para casa, quando deu com uma figura curva, vestindo uma capa escura, apoiada numa bengala. A bengala era de osso.
– Se quiser, posso ser madrinha de seu filho – ofereceu-se a figura, com voz baixa.
– Quem é você? – perguntou o homem.
– Sou a Morte.
O homem não pensou duas vezes:
– Aceito. Você sempre foi justa e honesta, pois leva para o cemitério todas as pessoas, sejam elas ricas ou pobres. Sim – continuou ele com voz firme –, quero que seja minha comadre, 
madrinha de meu sétimo filho!
E assim foi. No dia combinado, a Morte apareceu com sua capa escura e sua bengala de osso. O batismo foi realizado. Após a cerimônia, a Morte chamou o homem de lado.
– Fiquei muito feliz com seu convite – disse ela. – Já estou acostumada a ser maltratada. 
Em todos os lugares por onde ando as pessoas fogem de mim, falam mal de mim, me xingam e amaldiçoam. Essa gente não entende que não faço mais do que cumprir minha obrigação. Já imaginou se ninguém mais morresse no mundo? Não ia sobrar lugar para as crianças que iam nascer! 
Na verdade – confessou a Morte –, você é a primeira pessoa que me trata com gentileza e compreensão.
E disse mais:
– Quero retribuir tanta consideração. Pretendo ser uma ótima madrinha para seu filho.
A Morte declarou que para isso transformaria o pobre homem numa pessoa rica, famosa e poderosa.
– Só assim – completou ela –, você poderá criar, proteger e cuidar de meu afilhado.
O vulto explicou então que, a partir daquele dia, o homem seria um médico.
– Médico? Eu? – perguntou o sujeito, espantado. Mas eu de Medicina não entendo nada!
– Preste atenção – disse ela.
Mandou o homem voltar para casa e colocar uma placa dizendo-se médico. Daquele dia em diante, caso fosse chamado para examinar algum doente, se visse a figura dela, a figura da Morte, na cabeceira da cama, isso seria sinal de que a pessoa ia ficar boa.
– Em compensação – rosnou a Morte –, se me enxergar no pé da cama, pode irchamando o coveiro, porque o doente logo, logo vai esticar as canelas.
A Morte esclareceu ainda que seria invisível para as outras pessoas.
– Daqui pra frente – concluiu a famigerada –, você vai ter o dom de conseguir enxergar a Morte cumprindo sua missão.Dito e feito.
O homem colocou uma placa na frente de sua casa e logo apareceram as primeiras pessoas adoentadas. O tempo passava correndo feito um rio que ninguém vê.
Enquanto isso, sua fama de médico começou a crescer.
É que aquele médico não errava uma.
O doente podia estar muito mal e já desenganado. Se ele dizia que ia viver, dali a pouco o doente estava curado.
Em outros casos, às vezes a pessoa nem parecia muito enferma. O médico chegava, olhava, examinava, coçava o queixo e decretava:
– Não tem jeito!
E não tinha mesmo. Não demorava muito, a pessoa sentia-se mal, ficava pálida e batia as botas. A fama do homem pobre que virou médico correu mundo. E com a fama veio a fortuna. Como muitas pessoas curadas costumavam pagar bem, o sujeito acabou ficando rico.
Mas o tempo é um trem que não sabe parar na estação.
O sétimo filho do homem, o afilhado da Morte, cresceu e tornou-se adulto.
Certa noite, bateram na porta da casa do médico. Dessa vez não era nenhum doente pedindo ajuda. Era uma figura curva, vestindo uma capa escura, apoiada numa bengala feita de osso. A figura falou em voz baixa:
– Caro compadre, tenho uma notícia triste: sua hora chegou. Seu filho já é homem feito. 
Estou aqui para levar você.
O médico deu um pulo da cadeira.
– Mas como! – gritou. – Fui pobre e sofri muito. Agora que tenho uma profissão, ajudo tantas pessoas,tenho riqueza e fartura, você aparece pra me levar! Isso não é justo!
A Morte sorriu.
– Vá até o espelho e olhe para si mesmo – sugeriu. – Está velho. Seu tempo já passou.
Mas o médico não se conformava. E argumentou, e pediu, e suplicou tanto que a Morte resolveu conceder mais um pouquinho de tempo.
– Só porque somos compadres, só por ser madrinha de seu filho, vou lhe dar mais um ano de vida – disse ela antes de sumir na imensidão.
O velho médico continuou a atender gente doente pelo mundo afora.
Um dia, recebeu um chamado. Era urgente. Uma moça estava gravemente enferma. 
Disseram que seu estado era desesperador. O homem pegou a maleta e saiu correndo. 
Assim que entrou no quarto da menina enxergou, parada ao pé da cama, a figura sombria e invisível da Morte, pronta para dar o bote.
O médico sentou-se na beira da cama e examinou a moça. Era muito bonita e delicada. 
O homem sentiu pena. Uma pessoa tão jovem, com uma vida inteira pela frente, não podia morrer assim sem mais nem menos. "Isso está muito errado", pensou o médico, e tomou uma decisão. 
"Já estou velho, não tenho nada a perder. Pela primeira vez na vida vou ter que desafiar minha comadre.
" E rápido, de surpresa, antes que a Morte pudesse fazer qualquer coisa, deu um jeito de virar o corpo da menina na cama, de modo que a cabeça ficou no lugar dos pés e os pés foram parar do lado da cabeceira. Fez isso e berrou:
– Tenho certeza! Ela vai viver! E não deu outra. Dali a pouco, a linda menina abriu os olhos e sorriu como se tivesse acordado de um sonho ruim.
A família da moça agradeceu e festejou. A Morte foi embora contrariada, e no dia seguinte apareceu na casa do médico.
– Que história é essa? Ontem você me enganou!
– Mas ela ainda era uma criança!
– E daí? Aquela moça estava marcada para morrer ¬disse a Morte. – Você contrariou o destino. Agora vai pagar caro pelo que fez. Vou levar você no lugar dela!
O médico tentou negociar. Disse que queria viver mais um pouco.
– Nós combinamos um ano – argumentou ele.
– Nosso trato foi quebrado. Não quero saber de nada – respondeu a Morte. – Venha comigo!
– Lembre-se de que até hoje eu fui a única pessoa que tratou você com gentileza e consideração!A Morte balançou a cabeça.
– Quer ver uma coisa? – perguntou ela.
E, num passe de mágica, transportou o médico para um lugar desconhecido e estranho. 
Era um salão imenso, cheio de velas acesas, de todas as qualidades, tipos e tamanhos.
– O que é isso? – quis saber o velho.
– Cada vela dessas corresponde à vida de uma pessoa – explicou a Morte. As velas grandes, bem acesas, cheias de luz, são vidas que ainda vão durar muito. 
As pequenas são vidas que já estão chegando ao fim. Olhe a sua.
E mostrou um toquinho de vela, com a chama trêmula, quase apagando.
Mas então minha vida está por um fio! – exclamou o homem assustado. 
– Quer dizer que tudo está perdido e não resta nenhuma esperança?
A Morte fez "sim" com a cabeça. Em seguida, transportou o médico de volta para casa.
– Tenho um último pedido a fazer – suplicou o homem, já enfraquecido, deitado na cama. 
– Antes de morrer, gostaria de rezar o Pai-Nosso.
A Morte concordou.
Mas o velho médico não ficou satisfeito.
– Quero que me prometa uma coisa. Jure de pé junto que só vai me levar embora depois que eu terminar a oração. A Morte jurou e o homem começou a rezar:
– Pai-Nosso que...
Começou, parou e sorriu.
– Vamos lá, compadre – grunhiu a Morte. – Termine logo com isso que eu tenho mais o que fazer.
– Coisa nenhuma! – exclamou o médico saltando vitorioso da cama.
 – Você jurou que só me levava quando eu terminasse de rezar. 
Pois bem, pretendo levar anos para acabar minha reza...
Ao perceber que tinha sido enganada mais uma vez, a Morte resolveu ir embora, mas antes fez uma ameaça:
– Deixa que eu pego você!
Dizem que aquele homem ainda durou muitos e muitos anos. Mas, um dia, viajando, deu com um corpo caído na estrada. O velho médico bem que tentou, mas não havia nada a fazer.
– Que tristeza! Morrer assim sozinho no meio do caminho! Antes de enterrar o infeliz, o bom homem tirou o chapéu e rezou o Pai-Nosso.
Mal acabou de dizer amém, o morto abriu os olhos e sorriu. Era a Morte fingindo-sede morto.
– Agora você não me escapa!
Naquele exato instante, uma vela pequena, num lugar desconhecido e estranho, estremeceu e ficou sem luz.

AZEVEDO, Ricardo. Contos de enganar a Morte. São Paulo: Ática, 2003. 

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