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A Chuva






A chuva derrubou as pontes.
A chuva transbordou os rios.
A chuva molhou os transeuntes. A chuva encharcou as praças.
A chuva enferrujou as máquinas.
A chuva enfureceu as marés.
A chuva e seu cheiro de terra.
A chuva com sua cabeleira.
A chuva esburacou as pedras.
A chuva alagou a favela.
A chuva de canivetes.
A chuva enxugou a sede.
A chuva anoiteceu de tarde.
A chuva e seu brilho prateado.
A chuva de retas paralelas sobre a terra curva.
A chuva destroçou os guarda-chuvas.
A chuva durou muitos dias.
A chuva apagou o incêndio.
A chuva caiu. A chuva derramou-se.
A chuva murmurou meu nome.
A chuva ligou o para-brisa.
A chuva acendeu os faróis.
A chuva tocou a sirene.
A chuva com a sua crina.
A chuva encheu a piscina.
A chuva com as gotas grossas.
A chuva de pingos pretos.
A chuva açoitando as plantas.
A chuva senhora da lama.
A chuva sem pena.
A chuva apenas.
A chuva empenou os móveis.
A chuva amarelou os livros.
A chuva corroeu as cercas.
A chuva e seu baque seco.
A chuva e seu ruído de vidro.
A chuva inchou o brejo.
A chuva pingou pelo teto.
A chuva multiplicando insetos.
A chuva sobre os varais.
A chuva derrubando raios.
A chuva acabou a luz.
A chuva molhou os cigarros.
A chuva mijou no telhado.
A chuva regou o gramado.
A chuva arrepiou os poros.
A chuva fez muitas poças.
A chuva secou ao sol.

ANTUNES, Arnaldo. As coisas. São Paulo: Iluminuras, 1996.

A joia escondida no manto









Certa vez um hospedeiro recebeu a visita de um amigo de longa data. O visitante que era um andarilho dos mais viajados olhou com carinho seu hospedeiro. Os dois eram amigos muito íntimos, mas o tempo, o trabalho e outros assuntos mundanos, aos poucos, os havia separado.
Enfim a distância terminou e os dois felizes companheiros celebraram o reencontro com uma refeição suntuosa e muito vinho. Passaram o dia em alegria, mas, agora que a noite chegara, o visitante estava tão embriagado pelo vinho que a única coisa a fazer era fechar os olhos e dormir profundamente.
Enquanto o visitante descansava pesadamente, o hospedeiro teve de atender um importante e inadiável chamado. Não havia maneira de recusar e, embora triste por ter de abandonar o amigo, decidiu partir imediatamente para a missão. Antes, porém, preocupado com o bem-estar do seu amigo, escolheu sua joia mais preciosa e costurou-a sob o manto do amigo.
Pensou: “Quando ele acordar pela manhã, certamente ainda estará bem sonolento. Verá que eu tive de partir e ficará desapontado. Porém, quando vir esta preciosa joia compreenderá que, a despeito da minha rude e apressada partida, eu o amo profundamente e lhe desejo o melhor. Colocando a joia sob sua roupa ele a levará sem falha. Se a colocar em outro lugar talvez ele não a perceba ou a esqueça”.
Pela manhã, o visitante, ainda "grogue", olhou em volta e ficou desapontado por não ver o amigo. Com pesar, colocou a roupa e foi seguindo seu caminho sem perceber a joia escondida em seu manto. Por muito tempo vagou percorrendo estradas arenosas e inúmeros países numa constante luta pela sobrevivência. Trabalhou duramente sem a mínima ideia da riqueza que levava consigo.

Um dia os dois amigos se encontraram novamente. O hospedeiro ficou chocado com a aparência do amigo e perguntou lhe com compaixão:
“Por que você se tornou tão pobre e miserável? Quando me visitou eu costurei a mais preciosa das joias nas dobras de sua roupa, de modo que pudesse viver uma vida digna. E mesmo assim tem levado esta vida miserável? Deve usar imediatamente essa joia e mudar sua condição de vida. Então terá tudo que almeja”.
Pela primeira vez o visitante compreendeu o grande tesouro que seu amigo lhe havia dado. Seu ser iluminou-se de alegria e lágrimas deslizaram pela sua face.

A infinita fiandeira






(A aranha ateia diz ao aranho na teia:
o nosso amor está por um fio!)

A aranha, aquela aranha, era tão única: não parava de fazer teias! Fazia-as de todos os tamanhos e formas. Havia, contudo, um senão: ela fazia-as, mas não lhes dava utilidade. O bicho repaginava o mundo. Contudo, sempre inacabava as suas obras. Ao fio e ao cabo, ela já amealhava uma porção de teias que só ganhavam senso no rebrilho das manhãs.
E dia e noite: dos seus palpos primavam obras, com belezas de cacimbo gotejando, rendas e rendilhados. Tudo sem fim nem finalidade. Todo o bom aracnídeo sabe que a teia cumpre as fatais funções: lençol de núpcias, armadilha de caçador. Todos sabem, menos a nossa aranhinha, em suas distraiçoeiras funções.
Para a mãe-aranha aquilo não passava de mau senso. Para quê tanto labor se depois não se dava a indevida aplicação? Mas a jovem aranhiça não fazia ouvidos. E alfaiatava, alfinetava, cegava os nós. Tecia e retecia o fio, entrelaçava e reentrelaçava mais e mais teia. Sem nunca fazer morada em nenhuma. Recusava a utilitária vocação da sua espécie.
- Não faço teias por instinto.
- Então, faz porquê?
- Faço por arte.
Benzia-se a mãe, rezava o pai. Mas nem com preces. A filha saiu pelo mundo em ofício de infinita teceloa. E em cantos e recantos deixava a sua marca, o engenho da sua seda.
Os pais, após concertação, a mandaram chamar. A mãe:
- Minha filha, quando é que assentas as patas na parede?
E o pai:
- Já eu me vejo em palpos de mim...
Em choro múltiplo, a mãe limpou as lágrimas dos muitos olhos enquanto disse:
- Estamos recebendo queixas do aranhal.
- O que é que dizem, mãe?
- Dizem que isso só pode ser doença apanhada de outras criaturas.
Até que se decidiram: a jovem aranha tinha que ser reconduzida aos seus mandos genéticos. Aquele devaneio seria causado por falta de namorado. A moça seria até virgem, não tendo nunca digerido um machito. E organizaram um amoroso encontro.
- Vai ver que custa menos que engolir mosca - disse a mãe.
E aconteceu. Contudo, ao invés de devorar o singelo namorador, a aranha namorou e ficou enamorada. Os dois deram-se os apêndices e dançaram ao som de uma brisa que fazia vibrar a teia. Ou seria a teia que fabricava a brisa?
A aranhiça levou o namorado a visitar a sua colecção de teias, ele que escolhesse uma, ficaria prova de seu amor.
A família desiludida consultou o Deus dos bichos, para reclamar da fabricação daquele espécime.
Uma aranha assim, com mania de gente? Na sua alta teia, o Deus dos bichos quis saber o que poderia fazer. Pediram que ela transitasse para humana. E assim sucedeu: num golpe divino, a aranha foi convertida em pessoa. Quando ela, já transfigurada, se apresentou no mundo dos humanos logo lhe exigiram a imediata identificação. Quem era, o que fazia?
- Faço arte.
- Arte?
E os humanos se entreolharam, intrigados. Desconheciam o que fosse arte. Em que consistia? Até que um, mais-velho, se lembrou. Que houvera um tempo, em tempos de que já se perdera memória, em que alguns se ocupavam de tais improdutivos afazeres. Felizmente, isso tinha acabado, e os poucos que teimavam em criar esses pouco rentáveis produtos - chamados de obras de arte - tinham sido geneticamente transmutados em bichos. Não se lembrava bem em que bichos. Aranhas, ao que parece.


MIA COUTO

Desventura ensina






Era uma vez um camponês que tinha dois filhos. Os dois já eram grandes e fortes. O pai costumava ir à floresta para cortar lenha e sempre levava os filhos para ajudarem.
Um dia o velhinho pensou: “Meus filhos não sabem se virar sozinhos, já são homens e está na hora deles aprenderem a não contar sempre comigo”. Ele os chamou e lhes disse:
- Filhos, eu já sou velho e cansado, não vou ter mais forças para ir à floresta com vocês. A partir de hoje vocês vão trabalhar sozinhos.
- Mas, papai - reclamou o filho mais velho - nós não sabemos trabalhar sozinhos. E se quebrar a nossa carroça, quem vai consertá-la?
- Se a carroça quebrar chamem a Desventura e fiquem tranquilos, pois ela sabe ajudar as pessoas melhor que ninguém - respondeu o velhinho.
Então, os dois rapazes foram tranquilos para a floresta e trabalharam duro o dia inteiro. Ao pôr-do-sol a carroça estava muito cheia e eles foram para casa. Mas no caminho, como a carroça estava sobrecarregada, quebrou uma das rodas. Os rapazes ficaram apavorados. Não sabiam o que fazer. De repente, o filho mais velho se lembrou do conselho do pai. Foram então os dois jovens na beira da estrada e começaram a gritar:
- Desventura-a-a, oi desventura-a-a! A carroça está quebrada-a-a... venha ajuda-a-ar - Mas nada. Ninguém respondia e a Desventura não aparecia. Então, o filho mais novo disse para o irmão:
- Olha, irmão, eu acho que a Desventura está consertando outro carro por aí. Está ficando escuro, vamos tentar consertar a roda nós mesmos.
Eles pegaram os machados, bateram de lá, bateram de cá, no final conseguiram fazer a carroça andar.
Chegando em casa, os dois começaram a se queixar para o pai:
- Papai, aquela Desventura nem apareceu, a gente chamou, chamou e nada. Ainda bem que conseguimos consertar a roda sozinhos, se fosse pela Desventura...teríamos ficado a noite toda na floresta”.

- Pelo contrario, respondeu-lhes o pai todo contente - a Desventura estava lá o tempo todo e ensinou-lhes a contar com vocês mesmos nos momentos difíceis. Estou muito orgulhoso por terem aprendido bem a lição dessa boa “professora”.


(conto popular búlgaro)