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A Missa dos Mortos







De todas as coisas, porem, capazes de arrepiar cabelo, e que ouvi em minha infância ouro-pretana, nenhuma tão tremenda como a Missa dos Mortos, na Igreja das Mercês de Cima.

Quem me contou é pessoa conhecida em toda a Cidade de Ouro Preto, e exercia funções incompatíveis com o uso da falsidade em suas informações.

Foi João Leite, o saudoso João Leite, pardo, miudinho, anguloso, sempre montado em seu cavalinho branco, minúscula montaria de hábitos austeros, que se contentava de viver da escassa relva do adro da Igreja.

Seria possível que uma pessoa estimável e honesta como João Leite, sacristão de confiança de uma irmandade, zelador de um templo, tivesse coragem de depois de pregar uma mentira envolvendo mortos respeitáveis, fosse tranqüilamente dormir na sacristia, tendo ao lado um cemitério?

Tenho dúvidas. João Leite era ele próprio uma figura mista, metade deste mundo, metade do outro.

Suas origens eram misteriosas. Foi enjeitado, com horas de nascido, à porta da Santa Casa, em época que não se sabe. Não se sabe, ainda, quando começou a funcionar como sacristão das Mercês. As mais velhas pessoas da cidade já o conheciam desde criança, nesse mister, com a mesma cara, sempre com o mesmo cavalinho branco.

Quando alguém indagava de João Leite suas origens ou o tempo que servia Nossa Senhora das Mercês, em sua Igreja, João Leite sorria e não respondia nada.

Um belo dia há alguns anos, foi encontrado morto diante do altar-mor, deitado no chão, com as mãos sobre o peito, arrumadinho como se estivesse dentro de um caixão. O cavalinho branco sumiu sem que dele ninguém desse notícias.

Pois João Leite, segundo narrativa que lhe ouvi, já lá vão mais de trinta anos, assistiu a uma "Missa dos Mortos”.

Morando na sacristia do templo cuja conserva lhe era confiada, achava-se recolhido altas horas da noite, quando ouviu bulha na capela.

A noite era fria e João Leite estava com a cabeça coberta para esquentar-se melhor. Descobriu-a e abrindo os olhos viu claridade.

Seriam ladrões? Mas a Igreja era pobre e qualquer ladrão, por mais estúpido que fosse, saberia que a Igreja das Mercês, sendo paupérrima, não dispunha de prataria, de qualquer outra coisa de valor mercantil. Enfim, podia ser, raciocinou João Leite.

Estava nessa dúvida quando ouviu sussurrado por vozes cavas em coro, o "Deus vos salve" do começo da ladainha.

Ergueu-se e foi resolutamente pelo corredor até a porta que dá para a nave. A Igreja estava toda iluminada, altares, lustres; e completamente cheia de fiéis.

No altar-mor, um sacerdote paramentado celebrava missa.

João Leite estranhou a nuca do padre, muito branca, não se lembrando de calvície tão completa no clero de Ouro Preto.

Os fiéis que enchiam a nave trajavam todos de preto, e entre eles alguns de cogulas, e algumas senhoras com o hábito das Mercês; todos de cabeças baixas.

Quando o Padre celebrante se voltou para dizer o Dominus Vobiscum, João Leite verificou que era uma simples caveira que ele tinha em lugar da cabeça.

Assustou-se, e nesse momento reparando nos assistentes, agora de pé, viu que também eles não eram mais do que esqueletos vestidos.

Procurou logo afastar-se dali, e caminhando, deu com a porta que deitava para o cemitério completamente escancarada.

O melhor que tinha a fazer, fez. Recolheu-se à cama, cobriu a cabeça, transido de medo, e ficou quietinho ouvindo o sussurro das vozes orando, o tinir da campainha na "Consagração" e no "Domine nom sum dignus"; até que voltou de novo o pesado silêncio das frias noites de Vila Rica.
(Câmara Cascudo)

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