Páginas

Era menino muito tristinho e um velho que não tinha nome












Era um menino muito tristinho
Vivia sujo, muito magrinho
Não tinha casa, não tinha nada
Papai e mamãe não tinha não...

(Melodia de “Era uma casa muito engraçada”)

Era uma vez um menininho. Pobre, sujo, magrinho. Vivia numa casinha que ele mesmo inventou, com paredes feitas de tábuas e tijolos que encontrou por aí. Dormia no chão, em cima de uma pilha de jornais velhos. Não tinha travesseiro, nem coberta. Não tinha banheiro, nem cozinha. Não tinha nome, não tinha pai, nem tinha mãe. Não sabia nem quantos anos tinha. Nunca comemorava aniversário. Aliás, aquele menino nem sabia o que era festa. A vida dele era uma vida muito dura.
Todo dia ele levantava bem cedo, antes mesmo do sol sair ou do galo cantar. Mas não era para ir à escola, não. Aliás, ele nunca tinha ido à escola. Nem sabia como era. Ele acordava assim, bem cedinho, para ir trabalhar. Sabe onde esse menininho trabalhava? No lixão, separando coisas que as pessoas tinham jogado fora mas que ainda pudessem prestar. Coisas que pudessem ser recicladas ou, se tivesse sorte, uma roupinha, um sapato ou mesmo um brinquedo velho e quebrado que servisse para ele, que nunca tinha ganhado um presente sequer.
Lá no lixão a vida era muito difícil. Todos os dias um monte de crianças e adultos disputavam cada chegada de caminhão, remexendo no lixo, rasgando as bolsas de plástico, as caixas de papelão, procurando algo que desse algum dinheiro, qualquer trocadinho valia a pena. Além da disputa, no meio do fedor danado daquelas montanhas de lixo, o menininho ainda tinha que enfrentar os bichos que andavam por ali. Tinha urubu, rato e barata e teve até quem tivesse visto uma cobra. Mas o pior de tudo eram os bichos que a gente não via: os micróbios e bactérias que vinham junto com aquela sujeira toda.
Mas o menininho era corajoso. Seguia arrastando seu carrinho de mão, feito de caixote de feira, sempre em busca de algum tesouro: jornal, garrafa PET ou latinhas de alumínio, que era o que dava mais dinheiro.
Nesse dia ele teve sorte. Achou um monte de jornal e de revista, limpinhos. Pegou um monte, encheu seu carrinho e já ia se afastando quando encontrou um objeto que chamou a sua atenção. Era um livro! A capa toda colorida, mostrava um menino e sua família – deviam ser os seus pais – todos sorrindo contentes. O coração dele se encheu de um sentimento bom, que lhe aqueceu por dentro e fez esquecer até da fome que sentia.
Mas que pena que ele não sabia ler... Aquele livro devia contar a estória do menino da capa. Ele o abriu e folheou com cuidado para não rasgar, nem sujar o papel, ainda branquinho.  O livro era cheio de figuras mostrando o menino em várias situações: em casa, na rua brincando com os amiguinhos, na escola (pelo menos ele imaginava que aquilo era a escola).
Ele bem que gostaria de saber ler para poder ver como era a vida daquele outro menino, como era viver numa casa de verdade, de tijolo e alvenaria, com comida na mesa, com o carinho e a proteção de pai e mãe.
Ele nunca tinha conhecido nada daquilo e ansiava por saber como era viver outra vida. Um suspiro saiu de seu peito. Desde que se entendia por gente vivia sozinho. Não sabia como tinha nascido, nem onde. Sempre tinha pensado que era feito uma plantinha, que um dia brotou ali e ali mesmo cresceu.
O sol já estava forte e ele resolveu se apressar para levar seus achados para vender. Quem fazia esse meio de campo era o Velho, que tinha uma espécie de escritório perto do lixão. O menino foi empurrando o carrinho até lá. O Velho estava só.
- Bom dia! – cumprimentou respeitoso o menino. O Velho lhe inspirava um pouco de medo, sempre sério, de cara amarrada.
O homem ignorou o cumprimento:
- O que você tem aí?
- Jornais e revistas quase novos. – Respondeu o menino orgulhoso.
- Passe pra cá! – ordenou seco.
O menino obedeceu e descarregou o carrinho. O livro colorido, do menino feliz, ficou lá no fundo. O Velho notou.
- E esse aí?
O menino meneou a cabeça.
- Esse é meu.
O Velho soltou uma risada.
- E você sabe ler, moleque?
O menino levantou para ele os mansos olhos castanhos.
- Sei não, senhor!
- Então pra que quer um livro? – a pergunta foi num tom mais manso, mas cheio de curiosidade.
O menino pegou o livro e mostrou-lhe a capa.
- É que este livro deve contar uma estória muito boa, a estória desse menino aqui. Veja como ele está feliz, com a família dele.
Estendeu o livro para o Velho, que o pegou.
- Sim, ele parece mesmo muito feliz. Você gostaria de aprender a ler? – perguntou, surpreendendo o menino.
Os olhinhos se iluminaram.
- Oh, sim, eu queria muito, mais que tudo no mundo!
- Se é assim, vou lhe ensinar.
E daquele dia em diante a vida do menininho mudou bastante. Continuava acordando cedo, mas não era mais para ir ao lixão. Ia direto para o escritório do velho que passou a ensinar-lhe as letras e a cuidar dele. O menininho, que era corajoso, mostrou que também era muito dedicado. Aplicado, logo aprendeu todo o alfabeto, a juntar vogais e consoantes em sílabas, a construir suas primeiras palavrinhas. Um dia, o velho veio com um embrulho. Deu-o ao menino, que o abriu curioso. Era aquele livro que ele tinha encontrado no lixão e que o velho tinha guardado. Na capa, em cima da ilustração do menino sorridente com os pais, o menininho conteve a respiração. Devagar, soletrando as letras, uma por uma, e juntando as sílabas, conseguiu ler: “Direitos e deveres da criança”.
Emocionado, o velho pediu:
- Leia o nome do autor.
Estava escrito logo abaixo da ilustração. O menininho leu vagarosamente:
- Jota-O-A-O til – João – A-Ele-Vê-E-Esse – Alves. João Alves!
O velho fechou os olhos e o menininho viu que ele chorava calado.
- Por que o senhor está chorando? – ele perguntou.
O velho abriu os olhos, fixando-os na criança.
- É que todos temos um nome. O meu não é “Velho”.
- E qual é o seu nome? – perguntou o menininho.
- Eu havia me esquecido dele até que você entrou por aquela porta com esse livro. Leia de novo o nome do autor.
O menino obedeceu.
- João Alves.
- Pois é, esse é o meu nome. Fui eu quem escreveu esse livro. Há muito tempo atrás, em outra vida. Se quiser, posso lhe contar essa estória.
O menino aquiesceu.
- Sente-se aqui – disse o velho, mostrando um banquinho. - A estória é longa.
O menininho se sentou e esperou.
- Há muito tempo atrás...
Ele nunca soube se o outro, o menino da capa - era mesmo feliz ou não. A estória que ele ouviu naquele dia valia mais que mil livros juntos. Era a estória de um homem que tinha passado a vida ensinando crianças, mas que, um dia, por um capricho do destino, perdeu a fé e deixou a tristeza habitar em seu coração. Desistiu de tudo, perdeu tudo, inclusive seu nome. Até que um dia apareceu em sua porta um menino muito tristinho, que vivia sujo, muito magrinho, que não tinha casa, não tinha nada, apenas muito vontade de aprender a ler.



Gabriela Kopinits - a Cigana Contadora de Estórias

Um comentário:

  1. Oi, Telma! Que surpresa boa achar meu conto aqui! Muito grata pela partilha! Um cheiro grande!

    ResponderExcluir