Páginas

A joia escondida no manto






Certa vez um hospedeiro recebeu a visita de um amigo de longa data. O visitante que era um andarilho dos mais viajados olhou com carinho seu hospedeiro. Os dois eram amigos muito íntimos, mas o tempo, o trabalho e outros assuntos mundanos, aos poucos, os havia separado.
Enfim a distância terminou e os dois felizes companheiros celebraram o reencontro com uma refeição suntuosa e muito vinho. Passaram o dia em alegria, mas, agora que a noite chegara, o visitante estava tão embriagado pelo vinho que a única coisa a fazer era fechar os olhos e dormir profundamente.
Enquanto o visitante descansava pesadamente, o hospedeiro teve de atender um importante e inadiável chamado. Não havia maneira de recusar e, embora triste por ter de abandonar o amigo, decidiu partir imediatamente para a missão. Antes, porém, preocupado com o bem-estar do seu amigo, escolheu sua joia mais preciosa e costurou-a sob o manto do amigo.
Pensou: “Quando ele acordar pela manhã, certamente ainda estará bem sonolento. Verá que eu tive de partir e ficará desapontado. Porém, quando vir esta preciosa joia compreenderá que, a despeito da minha rude e apressada partida, eu o amo profundamente e lhe desejo o melhor. Colocando a joia sob sua roupa ele a levará sem falha. Se a colocar em outro lugar talvez ele não a perceba ou a esqueça”.
Pela manhã, o visitante, ainda "grogue", olhou em volta e ficou desapontado por não ver o amigo. Com pesar, colocou a roupa e foi seguindo seu caminho sem perceber a joia escondida em seu manto. Por muito tempo vagou percorrendo estradas arenosas e inúmeros países numa constante luta pela sobrevivência. Trabalhou duramente sem a mínima ideia da riqueza que levava consigo.
Erick Fugii

Um dia os dois amigos se encontraram novamente. O hospedeiro ficou chocado com a aparência do amigo e perguntou lhe com compaixão:
“Por que você se tornou tão pobre e miserável? Quando me visitou eu costurei a mais preciosa das joias nas dobras de sua roupa, de modo que pudesse viver uma vida digna. E mesmo assim tem levado esta vida miserável? Deve usar imediatamente essa joia e mudar sua condição de vida. Então terá tudo que almeja”.
Pela primeira vez o visitante compreendeu o grande tesouro que seu amigo lhe havia dado. Seu ser iluminou-se de alegria e lágrimas deslizaram pela sua face.

A Infinita Fiandeira






(A aranha ateia diz ao aranho na teia:
o nosso amor está por um fio!)

A aranha, aquela aranha, era tão única: não parava de fazer teias! Fazia-as de todos os tamanhos e formas. Havia, contudo, um senão: ela fazia-as, mas não lhes dava utilidade. O bicho repaginava o mundo. Contudo, sempre inacabava as suas obras. Ao fio e ao cabo, ela já amealhava uma porção de teias que só ganhavam senso no rebrilho das manhãs.
E dia e noite: dos seus palpos primavam obras, com belezas de cacimbo gotejando, rendas e rendilhados. Tudo sem fim nem finalidade. Todo o bom aracnídeo sabe que a teia cumpre as fatais funções: lençol de núpcias, armadilha de caçador. Todos sabem, menos a nossa aranhinha, em suas distraiçoeiras funções.
Para a mãe-aranha aquilo não passava de mau senso. Para quê tanto labor se depois não se dava a indevida aplicação? Mas a jovem aranhiça não fazia ouvidos. E alfaiatava, alfinetava, cegava os nós. Tecia e retecia o fio, entrelaçava e reentrelaçava mais e mais teia. Sem nunca fazer morada em nenhuma. Recusava a utilitária vocação da sua espécie.
- Não faço teias por instinto.
- Então, faz porquê?
- Faço por arte.
Benzia-se a mãe, rezava o pai. Mas nem com preces. A filha saiu pelo mundo em ofício de infinita teceloa. E em cantos e recantos deixava a sua marca, o engenho da sua seda.
Os pais, após consertação, a mandaram chamar. A mãe:
- Minha filha, quando é que assentas as patas na parede?
E o pai:
- Já eu me vejo em palpos de mim...
Em choro múltiplo, a mãe limpou as lágrimas dos muitos olhos enquanto disse:
- Estamos recebendo queixas do aranhal.
- O que é que dizem, mãe?
- Dizem que isso só pode ser doença apanhada de outras criaturas.
Até que se decidiram: a jovem aranha tinha que ser reconduzida aos seus mandos genéticos. Aquele devaneio seria causado por falta de namorado. A moça seria até virgem, não tendo nunca digerido um machito. E organizaram um amoroso encontro.
- Vai ver que custa menos que engolir mosca - disse a mãe.
E aconteceu. Contudo, ao invés de devorar o singelo namorador, a aranha namorou e ficou enamorada. Os dois deram-se os apêndices e dançaram ao som de uma brisa que fazia vibrar a teia. Ou seria a teia que fabricava a brisa?
A aranhiça levou o namorado a visitar a sua coleção de teias, ele que escolhesse uma, ficaria prova de seu amor.
A família desiludida consultou o Deus dos bichos, para reclamar da fabricação daquele espécime.
Uma aranha assim, com mania de gente? Na sua alta teia, o Deus dos bichos quis saber o que poderia fazer. Pediram que ela transitasse para humana. E assim sucedeu: num golpe divino, a aranha foi convertida em pessoa. Quando ela, já transfigurada, se apresentou no mundo dos humanos logo lhe exigiram a imediata identificação. Quem era, o que fazia?
- Faço arte.
- Arte?
E os humanos se entreolharam, intrigados. Desconheciam o que fosse arte. Em que consistia? Até que um, mais-velho, se lembrou. Que houvera um tempo, em tempos de que já se perdera memória, em que alguns se ocupavam de tais improdutivos afazeres. Felizmente, isso tinha acabado, e os poucos que teimavam em criar esses pouco rentáveis produtos - chamados de obras de arte - tinham sido geneticamente transmutados em bichos. Não se lembrava bem em que bichos. Aranhas, ao que parece.

MIA COUTO

A Desventura Ensina








DESVENTURA ENSINA
(conto popular búlgaro) 


Era uma vez um camponês que tinha dois filhos. Os dois já eram grandes e fortes. O pai costumava ir à floresta para cortar lenha e sempre levava os filhos para ajudarem.
Um dia o velhinho pensou: “Meus filhos não sabem se virar sozinhos, já são homens e está na hora deles aprenderem a não contar sempre comigo”. Ele os chamou e lhes disse:
- Filhos, eu já sou velho e cansado, não vou ter mais forças para ir à floresta com vocês. A partir de hoje vocês vão trabalhar sozinhos.
- Mas, papai - reclamou o filho mais velho - nós não sabemos trabalhar sozinhos. E se quebrar a nossa carroça, quem vai consertá-la?
- Se a carroça quebrar chamem a Desventura e fiquem tranquilos, pois ela sabe ajudar as pessoas melhor que ninguém - respondeu o velhinho.
Então, os dois rapazes foram tranquilos para a floresta e trabalharam duro o dia inteiro. Ao por-do-sol a carroça estava muito cheia e eles foram para casa. Mas no caminho, como a carroça estava sobrecarregada, quebrou uma das rodas. Os rapazes ficaram apavorados. Não sabiam o que fazer. De repente, o filho mais velho se lembrou do conselho do pai. Foram então os dois jovens na beira da estrada e começaram a gritar:
- Desventura-a-a, oi desventura-a-a! A carroça está quebrada-a-a... venha ajuda-a-ar - Mas nada. Ninguém respondia e a Desventura não aparecia. Então, o filho mais novo disse para o irmão:
- Olha, irmão, eu acho que a Desventura está consertando outro carro por aí. Está ficando escuro, vamos tentar consertar a roda nós mesmos.
Eles pegaram os machados, bateram de lá, bateram de cá, no final conseguiram fazer a carroça andar.
Chegando em casa, os dois começaram a se queixar para o pai:
- Papai, aquela Desventura nem apareceu, a gente chamou, chamou e nada. Ainda bem que conseguimos consertar a roda sozinhos, se fosse pela Desventura...teríamos ficado a noite toda na floresta”.

- Pelo contrario, respondeu-lhes o pai todo contente - a Desventura estava lá o tempo todo e ensinou-lhes a contar com vocês mesmos nos momentos difíceis. Estou muito orgulhoso por terem aprendido bem a lição dessa boa “professora”.



A Contadeira de Histórias






Vovó Candinha é outra figura que nunca se  apagou de minha recordação.
Não havia, realmente, mulher que tivesse mais prestigio para as crianças da minha  idade. Para nós, era um ser à parte, quase sobrenatural, que se não confundia com as outras criaturas. É que ninguém no mundo contava melhor histórias de fadas do que ela.
Devia ter seus setenta anos, rija, gorda, preta, bem preta e cabeça branca como algodão em pasta.
Morava distante. Vinha ao povoado, de quando em quando, visitar a Luzia, sua filha caçula, casada com o Lourenço Sapateiro.
E quando corria a noticia de que ela ia chegar, a meninada se assanhava como se ficasse à espera de uma festa. Não saíamos da porta da Luzia, perguntando insistentemente:
- Quando ela chega?
- Traz muitas histórias bonitas?
- Traz muitas novas?
Era pela manhã que vovó Candinha costuma chegar. O dia nem sempre havia acabado e já a pequena estava à beira do rio para recebê-la. Mal ia saltando da canoa, nós corríamos a abraçá-la com tanta afoiteza e tanta efusão que havia perigo de lhe rasgarmos o vestido rodado, de chita ramulhada.
- Quantas histórias a vovó traz? Perguntávamos.
- Um bandão delas, respondia a velha.
De dia não conseguíamos que ela nos contasse história nenhuma.
- Quem conta história de dia, dizia, negando-se, cria rabo de macaco.
Mal a noite começava a cair, a meninada caminhava para casa de Luzia, como se dirigisse para um teatro. Após o jantar, vovó Candinha vinha então sentar-se ao batente da porta que dava para o terreiro.
Enquanto se esperavam os retardatários, ela fumava pachorrentamente o seu cachimbo.
Sentávamo-nos em derredor, caladinhos, de ouvido atento, como não fora tão atento o nosso ouvido na escola.
Ela começava:
- Era uma vez uma princesa muito orgulhosa, que fez grande má-criação à fada sua madrinha...
Acendiam-se os nossos olhos, batiam emocionados os nossos corações...
Não sei se é impressão de meninice, mas a verdade é que até hoje, não encontrei ninguém que tivesse mais jeito para contar histórias infantis.
Na sua boca, as coisas simples e as coisas insignificantes tomavam um tom de grandeza que nos arrebatava; tudo era surpresa e maravilha que nos entrava de um jacto na compreensão e no entusiasmo.
E não sei onde ela ia buscar tanta coisa bonita. Ora, eram princesas formosas, aprisionadas em palácios de coral, erguidos no fundo do oceano ou das florestas; ora reis apaixonados que abandonavam o trono para procurara pelo mundo a mulher amada, que as fadas invejosas tinham transformado em coruja ou rã.
Não perdíamos uma só de suas palavras, um só dos seus gestos.
Ela ia contando, contando... Os nossos olhinhos nem piscavam...
A lua, como se fosse princesa encantada, ia vagando pelo céu, toda vestida de branco, a mandar para aterra a suavidade dos seus alvos véus de virgem.
Lá pelas tantas, um de nós encostava a cabeça no companheiro mais próximo e fechava os olhos cansado. Depois outro;depois outro.
E quando vovó Candinha acabava a história, todos nós dormíamos uns encostados aos outros, a sonhar com os palácios do fundo do mar, com as fadas e as  princesas.

       (autor nordestino anônimo)