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O chaveiro dourado






Sempre gostei de cantar. Desde muito pequena, eu já sabia que esta seria minha profissão, o papel que eu estava destinada a executar para deixar minha marca neste mundo. E comecei cedo. Ainda adolescente, já me juntava a conjuntos musicais e ganhava meu dinheirinho animando festas e noitadas em restaurantes.
Como eu me lembro daqueles tempos! Quantos sonhos de sucesso, quantos planos de um futuro maravilhoso... Exausta depois de horas de pé, cantando para carnívoros distraídos em churrascarias, eu adormecia sonhando com programas de televisão, conquistas de discos de ouro, aplausos, autógrafos...
Lembro-me especialmente de uma noite... Eu tinha quinze anos. O conjunto em que eu cantava, dirigido pelo tecladista que viria a ser meu marido, tinha sido contratado para uma apresentação ao ar livre, no alto de um palanque que mais tarde seria ocupado por um cantor de sucesso que havia sido contratado por uma quantia muito maior do que receberia o nosso conjunto, porque era ele o chamariz principal para lotar a praça de eleitores que deveriam ouvir o comício do político que pagaria a todos nós.
O público já era bom, embora a lotação máxima só fosse alcançada quando anunciassem o cantor famoso. Mas eu era jovem e aquela plateia, naquele momento, era a minha plateia, estava ali para meouvir. E eu cantei como nunca, pus minha alma em cada verso, em cada acorde, desfilando meu repertório mais romântico, envolvendo-me com as canções, até provocar minhas próprias lágrimas.
Na altura da terceira canção, porém, meus olhos bateram num homem de pé, bem na frente do palanque. Um susto. Um pavor que eu me lembro de jamais ter sentido. Feio, o homem. Mais que feio, assustador. Mal vestido, parecia sujo, barba por fazer, e fuzilava-me com um olhar duro, sombrio, como se pretendesse me dominar com o olhar.
Continuei cantando, concentrando-me para apresentar o melhor para a minha plateia, mas já não tinha coragem de aproximar-me da beirada do palco. Procurava olhar para o fundo da plateia, para aquele ponto em que o artista já não pode distinguir nenhuma expressão, um ponto de refúgio, onde a presença do homem não se impusesse. Mas não conseguia fugir daquele olhar. Lá estava ele, sempre sério, sem mover um músculo da face e sem desviar os olhos de mim. Me marcando!
Como a cantora do conjunto, eu era o destaque. Cantava em pé, violão a tiracolo, mexia-me, dançava, sem me preocupar tanto com o instrumento, já que toda a base do arranjo cabia aos outros componentes da banda.
Passei por uma canção pesada, de amor abandonado, dessas compostas para tocar a alma de quem ouve, bem no fundo. O olhar me queimava, me perseguia, me atormentava e, desta vez, as lágrimas que correram pelo meu rosto enganavam a plateia, pois a emoção que as causava era o medo. Um medo que já se aproximava do pânico.
A minha plateia aplaudiu. Com um entusiasmo gratificante para alimentar meus sonhos de sucesso, mas o homem não. Imóvel estava, imóvel continuava a cada canção.
Curvei-me, agradecendo as palmas no fim da apresentação. Mas eu tremia, como se a noite morna fosse de inverno. Recuei, passei pelos meus companheiros de banda e daquela vez nem esperei que eles embalassem os instrumentos. Enfiei rapidamente meu violão no estojo e, murmurando uma desculpa qualquer, desci pelo fundo do palanque e praticamente corri.
O palco fora montado na frente da igreja e eu tratei de colar-me aos lados mais escuros dela enquanto me apressava para o ponto do ônibus que me levaria para casa, bem distante do pesadelo que a figura daquele homem tinha me feito sofrer acordada.
– Menina...
Ao fazer a volta nos fundos da igreja, lá estava ele.
A expressão do homem ainda era a mesma. Impassível, séria, dura. E o olhar, fixo em meu corpo pequeno, me cortava em pedaços.
Não pude me mexer, sentindo o coração falhar uma batida. Sem pensar, coloquei o estojo do violão à frente do meu corpo, como um escudo para o que deveria vir. Meu cérebro dava-me ordens para correr, para fugir, mas minhas pernas estavam paralisadas.
O homem trazia um saco. Lentamente, abriu-o e mexeu dentro dele. Na certa à procura da faca, do porrete, que haveria de me derrubar na calçada, em sangue, antes do estupro, da morte certa...
Sua mão saiu de dentro do saco. Trazia um pequeno objeto. Estendeu-a na minha direção.
– Menina... Eu gostei muito da sua música, muito mesmo... E eu... eu achei no lixo este chaveiro. Gosto muito dele. É o treco que eu mais gosto... Eu queria dar pra você...
Aceite, por favor...
Acho que o sangue nem mais corria por minhas artérias enquanto eu via o mendigo se afastar, levando seu saco maltrapilho e deixando em minha mão seu objeto mais precioso.
Era um chaveiro de metal dourado, barato, desses de propaganda de automóvel. Eu o guardo até hoje. Quem ganhou um presente assim lá precisa sonhar com um disco de ouro?


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