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Natal no Hipermercado - Parte 02







A casa estava toda enfeitada. Na porta de entrada uma coroa de azevinho com bolas vermelhas e pinhas douradas dava as boas-vindas a quem aparecia e lembrava a data que se aproximava.

   Junto à lareira acesa estava pendurada uma bota de pano bordada e, em cima da pedra de mármore, a mãe colocara todos os cartões de boas-festas.

   A árvore verdadeira tinha sido substituída por uma de plástico, muito verde, farfalhuda, salpicada de estrelas e luzes coloridas, a piscar. Este ano até havia uma música de fundo para animar.

   No dia 23, foram esperar o pai ao aeroporto. A avó Catarina veio no comboio de Coimbra e os tios do Porto, carregados de filhos, malas, sacos e embrulhos, chegaram quase à hora da chegada porque apanharam um engarrafamento na estrada.

   A mesa brilhava com a mais fina louça de porcelana, copos de cristal e dois candelabros de prata onde ardiam chamas esguias, que ondulavam sempre que os primos faziam corridas à sua volta.

   Rodrigo nem saboreou o jantar, apesar dos elogios que todos lhe faziam. Estava ansioso pelo momento decisivo de abrir as prendas.

   — Sentes-te doente? Não comes nada... — alarmava-se a avó. — Prova o peru, está uma delícia.

   Quando a rolha da garrafa do espumante acertou no candeeiro, ecoou uma gargalhada geral. Mas Rodrigo olhava para os ponteiros do relógio. Ah, se eles começassem a rodar, a rodar, a rodar a toda a pressa para a meia-noite não tardar...

   Como o tempo custava a passar.

   Mandaram as crianças brincar para o quarto, depois do jantar, certamente para não se encontrarem com o Pai Natal, pois o maroto prefere entrar pé ante pé, sem que ninguém o veja. Porque será?

   Finalmente, no momento em que os dois ponteiros se juntaram em cima do mostrador, soaram ao longe as doze badaladas.

   Os miúdos precipitaram-se para a sala. Quem os conseguia conter? Caíram sobre o monte de prendas, procurando decifrar o nome que indicava o feliz possuidor de cada uma dela.

   — Ana! — exclamou o tio Alberto, entregando à prima mais pequenina um volume tão grande que ela mal conseguia segurá-lo.

   Todos ajudaram a abrir. Era uma boneca.

   — Pedro! É para mim! — entusiasmou-se o primo mais velho, rasgando o papel que envolvia uma pista de automóveis.

   A mãe, o pai, a avó, a Inês, foram-se apoderando de todas as embalagens que havia no chão.

   — E eu? — exasperou-se o Rodrigo, já com uma lágrima ao canto do olho. — Será que o Pai Natal não recebeu a minha carta?

   O pai e a mãe olharam um para o outro, sorrindo.

   — Parece que falta abrir um envelope.

   O rapaz pôs-se de gatas à procura. Entre fitas, lacinhos, papéis rasgados, lá estava ele, tão insignificante que bem passava despercebido. Tinha escrito o seu nome.

   — Será dinheiro? Um cheque? — pôs-se a adivinhar o garoto. — Hoje os Pais Natais também devem ser mais práticos... Mas não. Era mesmo uma carta. Dizia assim:

   Amigo Rodrigo,

   Tinhas razão ao achar que as minhas renas não conseguiam carregar todos os presentes que pedias. Não pude trazê-los no caminhão gigante porque não tenho carta de condução.

   Como o teu sonho era um hipermercado só para ti, vais hoje passar a noite de Natal no maior de todos. Ao amanhecer poderás levar para casa o que quiseres. Desta noite maravilhosa nunca te irás esquecer.

   Dentro de cinco minutos estarei aí para te ir buscar.

  

   Pai Natal

   — Que sorte! — exclamou o pai.

   — Temos de ir também! — exigiam os primos. Mas o Pai Natal só fizera um convite. Paciência...

   Rodrigo enfiou o agasalho, um gorro, calçou as luvas porque a aragem devia estar fria e a avó refilava com a saída por causa das constipações.

   Trim, trim, trim! tocou a campainha.

   Correram todos para a porta. Lá estava o senhor do Natal, vermelho, gordinho, bonacheirão, com longas barbas brancas.

   — Já só falta o teu presente — disse ele. — Não consegui estacionar o meu trenó nesta rua porque está atravancada de carros. Queres voar comigo pelos ares até ao terraço onde as deixei?

   Rodrigo sentiu um arrepio. Tinha medo das alturas...

   — Não podemos ir a pé, pelo chão? Afinal há um hipermercado mesmo ali na esquina.

   O Pai Natal acenou, deu-lhe a mão e, apesar do seu passo pesado, cansado, em breve chegaram às grandes portas envidraçadas.

   Como era estranho o hipermercado sem vivalma... O espaço parecia ainda maior, as luzes fluorescentes iluminavam com um branco frio as paredes brancas, o chão esbranquiçado. As prateleiras imensas alinhavam-se como carruagens paradas numa estação fantasma.

   — O teu desejo cumpriu-se. Tens tudo isto só para ti durante uma noite.

   Venho buscar-te quando o Sol nascer.

   Dito isto, como que por artes mágicas, o velhote das barbas desapareceu.

   Rodrigo desatou a correr entre as filas de expositores atulhados. Ali estavam arrumados os objetos dos seus sonhos e muitos mais, em que nunca pensara.

   Encavalitou-se numa moto elétrica, desfilou pela rua dos detergentes, dos óleos, do papel higiênico.

   Abriu três caixas de chocolates e devorou-os porque mal provara o jantar. Atafulhou as algibeiras de bombons. Atirou-se a um bolo de chantilly e não deixou pitada. Para rematar empanturrou-se com gelado de framboesa.

   Foi à seção de televisões onde 50 aparelhos transmitiam o mesmo programa. Ligou as aparelhagens de som no máximo. Tentou pôr a funcionar uma consola de jogos mas não atinou com as instruções.

   Construiu um castelo medieval, fez um puzzle, um boneco de plasticina e pintou figuras que moldara em gesso.

   Experimentou tênis pretos, azuis, brancos, às riscas. Enfiou todos os fatos-de-treino. Quais lhe ficariam melhor?

   Abriu o jogo do monopólio. Rodou os bonecos dos matraquilhos. Atirou ao ar as bolas de futebol. Pena não ter com quem jogar!

   Sem gente, o hipermercado ia ficando gelado.

   Começou a doer-lhe a barriga. Aquela refeição de gulodices não lhe tinha caído bem...

   Enfiou uns patins e foi à procura de um abre-caricas para beber água das pedras. Não dizia a avó que uma dessas garrafinhas curava todas as indisposições de estômago?

   Mas onde se esconderiam, no meio de tanta barafunda? Estava tonto de ler rótulos e mais rótulos.

   A cabeça andava-lhe à roda, as pernas tremelicavam, desequilibrava-se nos patins. Zás! Estampou-se no mosaico e um fio de sangue começou a escorrer-lhe da testa.

   — Quem me acode?!

   Ninguém lhe respondia.

   Cambaleou até uma cadeira giratória da seção dos computadores. Enfiou um jogo na ranhura da máquina. Era um combate contra monstros terríveis.

   Tentou vencê-los mas o soldadinho que ele movia acabava sempre apanhado pelas garras dos inimigos.

   Que frio! Que frio! Foi à procura de uma manta, que estava justamente no extremo oposto. Azar! Era preciso andar quilômetros para achar o que queria.

   Se ao menos houvesse ali uma cama... Viu lençóis, edredons, toalhas. Mas, de camas, nem sinal.

   Onde ficaria a seção dos relógios? Queria saber as horas. Quanto tempo faltaria para sair dali?

   Experimentou mais de 20 telemóveis mas encontravam-se todos desativados.

   Afinal estava preso, preso, preso com milhares de coisas à volta. Bateu nos vidros grossíssimos. Nem estremeceram.

   — Pai Natal! Pai Natal!

   Ninguém lhe respondia.

   Pingava-lhe o nariz. Estava a ficar constipado. Acendeu um radiador elétrico e pôs-se, de cócoras, a aquecer-se. Meteu as mãos nas algibeiras para procurar um lenço. Vieram todas castanhas e peganhentas: os bombons que lá guardara tinham derretido com o calor. Limpou as mãos às calças. Que horror!

   Assim, sujas de castanho, parecia que... parecia que não tinha chegado a tempo à casa de banho. Que vergonha! Que diriam os primos quando regressasse? Iam rir à gargalhada.

   Para lavar as mãos foi até a peixaria, onde pairava um cheiro a bacalhau e a peixe congelado que dava a volta às tripas.

   A cada minuto sentia-se mais maldisposto. Podia agarrar em milhões de objetos mas já nada o interessava.

   Tinha de fugir daquele lugar. Deu a volta ao espaço comercial à procura de outra saída. Até as portas de emergência estavam trancadas. Foi buscar uma escada e trepou até uma alta janela das traseiras. Abriu-a a custo, enfiou-se pelo buraco, deixando-se escorregar para o desconhecido.

   Caiu sobre um monte de papelões amarrotados junto aos contentores do lixo, que abarrotavam. Havia por ali caixas, plásticos, embalagens de comida fora de prazo.

   Que porcaria, pensou o rapaz, ainda mais agoniado.

   De repente ouviu um ruído rastejante. Seriam ratos? Baratas? Tinha pavor desses bicharocos. Ia já a fugir quando ouviu miar devagarinho. Era um som tão fraco que mal se ouvia.

   Rodrigo deu meia volta, escutou de novo o som, cada vez mais débil como se estivesse quase a calar-se para sempre. Deu por si a levantar aquela tralha em busca do dono de tal voz.

   Retirou as caixas amontoadas e dentro da última, no fundo de tudo, estava um gatinho tigrado, com olhos dourados, a luzir. Mal se viu liberto, encostou-se às pernas do salvador, tremendo. Seguia-lhe os passos como uma sombra. O rapaz pegou no animal, leve, leve, e meteu-o dentro do agasalho. Sentia um coraçãozinho assustado bater junto do seu.

   Avançou até à entrada principal do hipermercado, sentou-se nos degraus.

   No céu, sem Lua, as estrelas pareciam pequenos fósforos que mãos invisíveis acendiam. Entre elas havia uma estrada de luz. Seria a Via Láctea? Era essa a estrada por onde o Pai Natal viajava?

   O gatinho ronronou, feliz, e começou a brincar com o fecho do blusão. Rodrigo não estava mais sozinho.

   Uma estrela riscou o firmamento. Para onde se dirigia ela?

   Uma claridade muito tênue espreitava do Nascente. Então surgiu, na penumbra, o Pai Natal, esfregando os olhos com sono.

   — Acabou a noite de Natal. Vou levar-te a casa. Depois tenho um longo caminho a percorrer até poder deitar-me a dormir. Que queres levar contigo? Escolhe, de entre tudo o que viste, o teu presente.

   — Está aqui, é meu amigo... — balbuciou o rapaz, mostrando o gatinho.

   Seguiram os três, por entre os primeiros raios da madrugada, até casa, onde uma coroa de azevinho, à porta, dava as boas-vindas.

Luísa Ducla Soares
Há sempre uma estrela no Natal
Porto, Civilização Editora, 2006

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