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O Menino no Espelho – Capítulo III



 
                       COMO DEIXEI DE VOAR 

Naquele tempo os aviões se chamavam aeroplanos. Era só passar um avião e eu saía no meio da molecada, em algazarra pela rua, apontando o céu e gritando: 
— Aeroplano! Aeroplano! 
Ouvindo a gritaria, os mais velhos se debruçavam nas janelas e olhavam para cima, procurando ver também. Não eram aviões grandes nem de metal como os de hoje, mas teco-tecos de madeira e lona, duas asas de cada lado, uma em cima da outra, presas com arames cruzados.
Nele só cabiam dois aviadores que a gente podia ver, a cabecinha de fora, com um gorro de couro e óculos tapando os olhos para não entrar poeira. 
Uma vez papai nos levou ao campo de aviação do Prado para ver as acrobacias. Eu mal conseguia pronunciar essa palavra, quanto mais saber o que ela significava. 
Foi um deslumbramento.  
Eram dois ou três aviõezinhos: levantavam voo como se fossem de brinquedo e faziam piruetas, voavam de cabeça para baixo, desciam, quase se arrastavam no chão e tornavam a subir. 
Um deles começou a soltar fumaça, fazendo letras no ar, escrevendo palavras inteiras. 
A certa altura dois aviões passaram a voar juntinhos, um em cima do outro, quase se esbarrando. Então um dos aviadores do que estava embaixo realizou a proeza máxima, eu não podia acreditar no que meus olhos viam: saiu do seu buraquinho no avião e foi se agarrando pelo lado de fora, subiu na asa e se dependurou nas rodas do outro! Depois montou no eixo como se estivesse fazendo ginástica numa barra, pernas para o ar, passou para a asa de baixo, agarrado na de cima, e foi assim que voltou à terra, triunfante, até o avião pousar. 
Fizeram mil outras façanhas de encher os olhos. 
De repente, a multidão que assistia ao espetáculo aéreo, dentro e fora do campo de pouso do Prado, soltou um grito: um dos aviões que acabara de passar baixinho em cima de nossas cabeças não conseguiu ganhar altura e foi cair lá fora, no descampado, para os lados do Calafate. 
Um caminhão partiu em disparada para o local. Em pouco voltava, trazendo os destroços do avião e os dois pilotos, um deles bastante machucado (pude vê-lo encolhido ao lado do
motorista, com o rosto ensanguentado). Os mais velhos diziam ao redor, sacudindo a cabeça, admirados, que ele tinha nascido de novo. 
O desastre não chegou a me impressionar. Do espetáculo ficou a lembrança da maravilha que era aquilo, poder pilotar um avião. E resolvi não esperar ser grande para poder realizar o meu desejo: eu mesmo fabricaria um avião. 
Para isto, aproveitaria um carrinho de pedal que meus pais me tinham dado no meu último aniversário. Era um carro de corrida, e para dirigi-lo eu entrava nele como um piloto no avião.
Bastava colocar as asas. 
Cortei uns bambus do quintal, preparei umas taquaras como fazia para a armação de um papagaio, só que bem mais longas e grossas; com elas e pedaços de um velho lençol colados com grude de polvilho, fiz duas asas, que amarrei de cada lado do carrinho. Depois preguei na traseira umas asas mais curtas e o leme, também de pano e taquara. 
Estava pronto o avião, mas e o motor? 
Levei algum tempo estudando um aviãozinho de brinquedo que me serviu de modelo. Tinha uma hélice presa num elástico esticado até um gancho entre as asas: era só enrolar a hélice com o dedo e soltar, que o aviãozinho saía voando. 
Estava ali o meu motor: bastava imitá-lo, em tamanho maior.  
A hélice foi aproveitada das pás de um ventilador imprestável que encontrei no quarto de despejo, lá no barracão do fundo do quintal. A borracha de uma velha câmara de ar da
bicicleta do Toninho faria o papel do elástico. Foi um custo conseguir enrolá-la, depois de esticada entre a hélice e o prego fincado junto às asas para servir de gancho: a câmara de ar ia se enrolando, se enrolando, a hélice ia ficando cada vez mais dura para girar e de repente se desenrolava toda, por pouco não me decepou a mão. O avião chegava a se erguer do chão, eu tinha de segurá-lo para que não levantasse voo sem que eu tivesse tido sequer tempo de
entrar nele. 
Acabei encontrando a solução: liguei a hélice, por um sistema de cordas, à minha manivela de empinar papagaio. Com ela no colo, eu podia enrolar a borracha, já sentado no avião. Depois, era só largar a manivela, que ela deixava a borracha se desenrolar sozinha, impulsionando a hélice. 
Tudo pronto para a grande aventura, coloquei o aviãozinho num canto do quintal, e instalei-me dentro dele. Não faltava nem uma touca de banho de minha mãe e uns óculos de carnaval, que eu usava como os de um aviador de verdade. E me preparei para a decolagem, torcendo a manivela até o máximo que pude. 
A câmara de ar, enrascada como um cipó, se desenrolou com toda a força, impulsionando a hélice. E lá fui eu, deslizando pelo chão! 
Só que o avião não levantou voo: correu comigo pelo quintal e espatifou-se de encontro ao muro. Fiquei todo machucado (embora não tanto quanto o aviador de verdade no desastre do Prado). O pior é que perdi o meu carrinho de corrida, que ficou para sempre arrebentado. 
Com essa desastrada aventura, desisti de voar — pelo menos enquanto não pudesse ter um avião de verdade. 
ATÉ que, um dia, uma ideia nova me surgiu na cabeça. Uma ideia tão doida, que eu não teria coragem de contá-la para ninguém: pensariam que eu tinha ficado completamente maluco e me internariam num hospício. Não me veio de repente, mas aos pouquinhos, depois de observar vários fatos miúdos que aconteciam comigo, e que fui ligando a outros até chegar a uma conclusão. 
Fiquei pensando, por exemplo, numa brincadeira que eu fazia sempre, ao me pôr de pé: costumava puxar os cabelos para cima, como se aquilo me tornasse mais leve, ajudando a me
erguer da cadeira. E os outros achavam graça. 
Tinha também a mania de fingir que me agarrava em algum apoio imaginário no ar — uma barra, uma corda, uma argola — para me tornar mais leve ao me levantar da cama. 
Pois comecei a reparar que tanto uma coisa como outra realmente me faziam mais leve, não era apenas ilusão. 
Minha mãe tinha me contado que no seu tempo de criança havia uma brincadeira muito divertida: um balão de borracha cheio de um gás mais leve que o ar, mas bem grande, que se
prendia no ombro das pessoas e as fazia mais leves, quase não tocando o chão, e cada passo era um salto gigantesco, como se fossem levantar voo... Não sei se isso era invenção de
mamãe (tive a quem puxar) — o certo é que me deixou fascinado, doido de vontade de experimentar a brincadeira. 
Mas onde arranjar um balão como aquele? 
Uma noite tive um sonho maravilhoso: sonhei que sabia voar. Bastava movimentar os braços, mãos abertas ao lado do corpo fazendo círculos no ar, e eu me descolava do chão como um passarinho, saía voando por cima das casas e pelos campos sem fim. 
Durante vários dias aquele sonho não me saiu da cabeça. 
Acabei cismando que poderia torná-lo realidade. Ia para o fundo do quintal e, longe da vista dos outros, ficava horas seguidas ensaiando o meu voo. Mexia com as mãos, sem parar, como fizera no sonho, e nada. Eu sabia que não era uma questão de força, mas de conseguir estabelecer, com o movimento harmonioso das mãos, um misterioso equilíbrio entre o meu peso e o peso do ar. Como se estivesse dentro d'água e quisesse me manter à tona: qualquer gesto mais forte ou afobado e eu me afundava. 
Pois um dia, depois de muito treino, senti que começava a ficar mais leve. Ou era só impressão? Tinha passado a fazer aqueles exercícios de calção de banho, justamente para
sentir que, sem a roupa, meu peso era menor. E naquele   instante parecia que eu estava quase flutuando no ar. Experimentei dar uns passos, bem de mansinho, como se estivesse andando em cima d'água. E a sensação foi de não estar tocando o chão. Descalço, já não sentia na sola dos pés o contato áspero da terra do quintal.  Por vários dias repeti a experiência. Ao fim, já sabia instintivamente os movimentos que tinha de fazer com o corpo para começar a flutuar, como alguém que tivesse aprendido a nadar. Um ligeiro impulso com os braços, bem devagar, levantando os cotovelos, me fazia deslizar mansamente, como se estivesse usando patins invisíveis. Apenas não tinha força suficiente para ganhar altura, e toda vez que eu me impacientava e fazia um movimento mais rápido, sentia meu corpo de súbito se abater contra o solo. 
Com a prática, acabei conseguindo me erguer um ou dois palmos e sair deslizando pelo quintal
durante algum tempo. Mas era pouco. Assim de pé, não podia dizer que estivesse voando. Eu percebia que só deitado, braços abertos como as asas de um pássaro, é que chegaria a voar de verdade. Mas quando experimentava me deitar e movimentar os braços como fazia de pé, sentia que jamais sairia do chão. Era como querer nadar no fundo de uma piscina sem água. 
Acabei me convencendo de que, para sair voando, eu teria de já estar no ar. 
Como? Subindo na mangueira e me atirando lá de cima? Eu não era maluco a este ponto: o peso do meu corpo faria com que eu me esborrachasse cá embaixo no chão. Era preciso que tivesse como tomar algum impulso... 
Foi então que me veio a solução. 
Como já disse, no fundo do quintal de nossa casa havia um pequeno bambuzal. Uma das brincadeiras que a gente fazia ali era a de se dependurarem vários meninos num dos bambus, fazendo com que ele se entortasse até que tocassem o pé no chão. Em dado momento todos, a um só tempo, largavam o bambu, menos o que estivesse na ponta: este continuava dependurado e subia como um foguete, agarrando-se com todas as forças no bambu pura não
ser atirado longe. E ficava balançando de um lado para outro lá em cima, como um pêndulo, até que o movimento parasse de todo e ele pudesse vir escorregando bambu abaixo. 
Mais de uma vez eu participara daquela brincadeira. Sendo o menorzinho, e portanto o mais leve, em geral era o que ficava mais tempo balançando, dependurado na ponta do bambu. 
Só que, agora, eu não ia apenas me dependurar: ia subir com o bambu e aproveitar o impulso para sair voando. 
EVIDENTEMENTE não contei a ninguém a minha Intenção.  
A princípio tudo deu certo: a subida foi sensacional. Quando a meninada largou o bambu, esperei que ele se empinasse, e larguei também. Fui projetado para cima como uma bala de
canhão. Subi, subi, subi, vendo lá embaixo no quintal diminuírem cada vez mais as figurinhas dos outros meninos, agitando os braços para mim, cheios de espanto e admiração. 
Em pouco tempo eu podia avistar do alto não somente o telhado da minha casa entre as árvores, como a cidade inteira com as suas ruas e praças, ônibus, bondes e automóveis deslizando como baratinhas. 
Mas tudo começou a rodar diante de meus olhos quando meu corpo, perdendo o impulso que lhe havia dado o bambu, passou a virar cambalhotas no ar como as piruetas de um avião. Senti que era tempo de começar a voar por mim mesmo, antes que despencasse lá de cima como
uma pedra. 
Abri os braços, procurei uma posição de equilíbrio, como se fosse um pássaro, e movimentei as mãos como tinha ensaiado. Um bando de andorinhas passou por mim em revoada, sem tomar conhecimento de minha presença. O silêncio ali em cima era impressionante. Vi pouco
acima de mim e meio de lado um urubu planando calmamente ao sabor do vento e a me olhar, desconfiado. Aquele bicho era capaz de me trazer azar.  
— Vai embora, urubu! — gritei, mas ele nem ligou. 
Tentei imitá-lo no seu vôo, quando percebi que eu estava era caindo mesmo. E cada vez com mais velocidade, apesar de meu esforço para me manter no ar. Eu sabia que quanto mais me agitasse, mais rápida seria a queda. No entanto, não conseguia me conter e mexia os braços e as pernas, desesperado como alguém que dentro d'água perde as forças e começa a se afogar.
E sempre caindo. Lá embaixo o telhado das casas, as árvores, as ruas já se aproximando velozmente. 
Senti que estava perdido. Não adiantava mesmo continuar a me mexer. 
Então fechei os olhos e esperei pelo pior. Meu corpo assim esticado pareceu que já não tombava tão depressa: planava um pouquinho no ar, como o urubu, sustentado pelo vento
que estava soprando. Mas continuava caindo — em poucos segundos eu estaria me arrebentando lá embaixo no chão. 
Só me restava pedir a Deus que tivesse piedade de mim, me levasse de uma vez para o céu. 
Foi quando ouvi um barulhinho no ar. Abri os olhos e vi o aeroplano voando lá longe, depois fazendo uma volta e vindo em minha direção. O piloto parece ter me visto também, pois se aproximava cada vez mais. Ao chegar bem perto fez um sinal com o braço. Respondi com um gesto aflito de quem pede socorro. Ele deve ter entendido: fez uma volta e veio vindo por detrás, para passar bem em cima de mim. Procurei planar o mais possível. braços abertos, e quando vi que ele se emparelhava comigo, ergui os braços e me agarrei com força no eixo entre as rodas, como havia feito o aviador nas acrobacias lá do Prado. 
Não foi fácil montar no eixo e dali passar para a asa, mas acabei conseguindo. Na hora do aperto a gente é capaz de tudo. 
Por detrás dos seus óculos colados no rosto, o piloto me olhava, assombrado. Logo o avião ganhou velocidade, rumando para o campo de pouso. 
Ao fim de algum tempo, que me pareceu uma eternidade, acabamos descendo mansamente na pista. 
Nem bem o avião tinha parado na grama, meu pai chegava esbaforido num carro de praça, para me buscar. Avisado pelos outros meninos da minha aventura, havia tomado aquele carro de aluguel — coisa que só fazia nas grandes ocasiões. 
Depois disso não voltei mais a sair do chão. Minha mãe achava que eu andava muito magrinho, me obrigava a comer de tudo e tomar fortificante para engordar. Acabei
engordando mesmo. Não muito, mas o bastante para não conseguir mais voar.  
 
Fernando Sabino

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