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O Menino no Espelho - Capítulo IV
O MISTÉRIO DA CASA ABANDONADA
MAS consegui coisa mais importante: me tornei agente secreto.
O Departamento Especial de Investigações e Espionagem Olho de Gato achava-se instalado nos altos do prédio situado na Praça da Liberdade, número 1458, em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, América do Sul, Hemisfério Ocidental, Terra, Universo Ou seja: no forro da minha casa.
Era uma sociedade secreta, constituída de quatro agentes: Odnanref, Anairam, Hindemburgo e Pastoff. Um casal de brasileiros, um alemão e um russo. Odnanref era meu nome de guerra, e eu o chefe da organização. Anairam era Mariana, filha da dona Cacilda, a nossa vizinha da casa ao lado. Hindemburgo, como já disse, era o cachorro policial. Ele não parecia gostar muito que a sociedade se chamasse Olho de Gato, mas gato é que enxerga no escuro, não podíamos dar a
ela o nome de Olho de Cachorro, como o referido agente certamente pretendia. E Pastoff era o coelho cinzento que meu pai tinha me dado para substituir a galinha Fernanda, que havia morrido de velha. Quem o batizou assim foi o Gerson, meu irmão mais velho, afirmando que Pastoff queria dizer coelho em russo — afirmação que desconfio não ser verdadeira. Nossos inimigos mais próximos eram, pela ordem: a Alzira, por viver nos espionando; seu Lourenço, o jardineiro português, que me passou uma corrida só porque fiz pipi dentro do regador; seu Policarpo, tio da agente Anairam, que tinha dado umas palmadas na sobrinha quando a surpreendeu mexendo nos seus guardados, por estar desconfiada de que ele pertencia a uma organização inimiga; e o Godofredo, que me delatou quando escondi a Fernanda debaixo da bacia, para que não a servissem ao molho pardo no almoço do Dr. Junqueira. Era talvez o
inimigo mais perigoso, pois vivia dando com a língua nos dentes (que não tinha) — uma língua preta, só de olhar já dava nojo. Por causa dele tivemos de transferir a sede da sociedade para o forro: Godofredo prestava mais atenção que uma coruja, lá do seu poleiro à entrada do porão, onde a principio nos reuníamos. A qualquer coisinha disparava a tagarelar, chamando a atenção de todo mundo com a sua falação.
Entrávamos no forro de maneira meio complicada: pelo alçapão na parte do teto que ficava exatamente sobre a mesa da copa. Quando não havia ninguém por ali, colocávamos uma cadeira em cima da mesa, para alcançar o forro. Depois de subir, tínhamos de recolocar a cadeira no chão (para que ninguém suspeitasse ao vê-la ali) com a ajuda de uma corda e um gancho que então recolhíamos. Para sair, era só nos dependurarmos nas bordas do alçapão e saltar na mesa.
Os agentes que subiam e desciam com mais facilidade eram justamente o Hindemburgo e o Pastoff, por serem bons de salto.
Fechada a portinhola de entrada, começávamos a reunião, sob o telhado, por entre cujas frinchas entravam alguns fiapos de luz do sol.
Tínhamos de falar baixo e pisar de leve, para não fazer barulho no forro. Mas podíamos andar por ele à vontade, em cima de todos os quartos da casa e até mesmo ver o que se passava lá embaixo por alguma fresta nas tábuas. Só que não havia grande coisa a espionar, senão alguém trocando de roupa, o que em si não tinha nada que merecesse maiores investigações.
Havíamos deslindado vários mistérios, que desafiariam a argúcia dos mais hábeis detetives e espiões do mundo inteiro. Conseguimos descobrir quem tinha chupado os ovos no ninho do galinheiro da casa de nossa agente Anairam: um gambá que, ao ser descoberto, sumiu para sempre sem deixar vestígios, além de um rastro de mau cheiro. Tínhamos desmantelado uma rede de contra-espionagem chefiada pelo Gerson. Ele era capaz de verdadeiros prodígios, como entrar no nosso quarto pela janela do segundo andar (e jamais soube voar como eu) para abrir meu armário e o do Toninho e ver o que tinha dentro, usando gazuas e chaves falsas. Graças ainda às nossas investigações, descobrimos que uma nova empregada conseguira em uma semana furtar objetos de todo mundo dentro de casa, até da própria Alzira, sua colega de quarto. Mas nossa maior proeza seria a da casa abandonada, motivo da reunião que eu havia convocado para aquele dia.
ANTES de mais nada, seria preciso tomar váriasprovidências. A mais urgente delas era a respeito da nossa linguagem cifrada, pela qual obrigatoriamente nos comunicávamos:
— Nãopão popodepemospôs fapalarpar maispais napa linpinguapá dopô pepê. Opô Gerpersonpon sapabepê fapalarpar nepessapá linpinguapá. Hopojepê epelepê
enpentenpendeupeu tupudopô quepê fapaleipei nopô tepelepefoponepê.
Pela manhã eu tinha telefonado para a agente Anairam, convocando-a para a reunião. Em geral, quando tínhamos assunto mais longo para falar, usávamos nosso telefone privado, feito de um barbante passado por cima do muro e tendo em cada extremidade a parte de dentro de uma caixa de fósforos. Usávamos então linguagem comum mesmo, que mal conseguíamos escutar. Não dava para usar a língua do pê, como em nossas conversas no telefone de verdade, que estavam correndo o risco de ser ouvidas e entendidas pelo Gerson.
Propus aos demais que dali por diante a nossa língua oficial passasse a ser o alemão:
— Aus, enter, ínter, ómber, úfter. Sómber vaus-mosómber faus-laus aus-sínter.
Um pouco mais complicado que a língua do pê: cada vogal tinha um som diferente. Mas Anairam aprendeu logo. Os outros dois agentes naturalmente se limitavam a prestar atenção, um abanando o rabo, o outro as longas orelhas, pois não falavam língua nenhuma. Mas Hindemburgo, que era alemão, parecia satisfeito porque passaríamos a falar no seu idioma.
— Muínter-tómber bénter — disse ela. — Vómber-cénter rénter-cénter-beúfter mínter-nhaus ménter-saus-génter sénter-crénter-taus?
Realmente, ela tinha me mandado naquele dia uma mensagem secreta, e agora estava querendo saber se eu havia recebido. Limitara-se a atirar por cima do muro um papel em
branco enrolado numa pedra, depois que soube ser perigoso usar o telefone de nossas casas.
Escrevera a mensagem com tinta invisível, é lógico. Costumávamos usar dois processos, dependendo da ocasião: um era escrever com a caneta molhada em xixi: bastava esquentar o papel na chama de uma vela, que a escrita aparecia. Outro, era escrever a lápis com força num
papel colocado sobre outro bem molhado. Quando o papel secava, não se via nada escrito nele: era preciso tornar a molhá-lo para poder ler.
Como aquele papel ainda estava meio úmido, vi logo que ela tinha usado este segundo processo. Foi só molhá-lo de novo debaixo da torneira, e pude ler:
DE ANAIRAM PARA ODNANREF:
URGENTE INVESTIGARMOS CASA ABANDONADA POSSÍVEL EXISTÊNCIA TESOURO.
Ela se referia a uma misteriosa casa na Avenida João Pinheiro, onde sabíamos que não morava ninguém havia anos. Diziam mesmo que era mal-assombrada. O imenso casarão ficava fronteiro à rua, com uma varanda ao lado, dando para um jardim. A pintura estava descascando nas paredes, as janelas apodrecidas e desconjuntadas, o mato tomando conta do jardim, a hera subindo pela fachada, teias de aranha nas grades da varanda, o portão enferrujado, morcegos vivendo nas frinchas do telhado. Íamos sempre olhá-la durante o dia, fascinados: que haveria lá dentro? Não seria de espantar se de noite os fantasmas se reunissem ali para celebrar o fato de já haverem morrido.
Anairam propôs que fôssemos lá naquela noite, para proceder a uma investigação completa.
Achei prudente sugerir que de noite as coisas ficavam um pouco mais difíceis, não se enxergava nada! Melhor irmos mesmo de dia. Ela alegou que de dia nós é que corríamos o
risco de sermos vistos.
Sermos vistos por quem? Se lá não morava ninguém?
— Pénter-losómber vínter-zínter-nhosómber.
Pelos vizinhos — ela tinha razão. Respirei fundo, tomando coragem, e dei a palavra de ordem: iríamos lá naquela noite mesmo.
NAO foi fácil sair de casa de noite. Tive de esperar todo mundo dormir, inclusive o Toninho, que nunca teve tão pouco sono: ficou lendo na cama até tarde. Foi a minha vez de reclamar:
— Vou apagar essa luz, que estou com sono, quero dormir.
Quando me certifiquei de que não havia ninguém mais acordado, tirei o pijama, me vesti no escuro e saí pé ante pé. Convoquei o Hindemburgo com um assobio. Ele compareceu logo, língua de fora, todo animado. Pastoff também se juntou a nós em dois pulos e saímos os três, para encontrarmos a agente Anairam já à nossa espera no portão de sua casa. Vestia uma capa de chuva sobre a camisolinha, o que lhe dava um ar de espia de cinema. E fomos juntos pela rua em direção à Avenida João Pinheiro.
Quando chegamos em frente à casa abandonada, ouvimos o sino da igreja de Lourdes dar pausadamente doze badaladas, que ficaram vibrando no ar aterradoras: meia-noite! Hora em
que os fantasmas apareciam, saindo de seus túmulos, e o capeta andava solto na escuridão da noite. Fazia frio e vi que a agente Anairam tremia tanto quanto eu, mas ainda assim levamos em frente a nossa aventura.
Não foi difícil transpor o portão: um ligeiro empurrão e ele se abriu, devagar, rinchando nas dobradiças. Fomos avançando por entre o mato do jardim. Alguma coisa deslizou junto a meus pés — um rato, certamente, ou mesmo um lagarto. Engoli em seco e prossegui a caminhada ao lado de minha companheira, seguido dos outros dois agentes.
Ao chegar á varanda, ordenei a ambos que ficassem ali e nos esperassem. Não convinha entrarmos todos ao mesmo tempo. Alguém tinha de ficar de sentinela do lado de fora.
Subimos os degraus de pedra em plena escuridão e tateamos pela parede à procura da porta.
Tínhamos trazido conosco uma caixa de fósforos e uma vela, mas não era prudente acendê-la ali: poderíamos chamar a atenção de alguém na rua, algum guarda-noturno rondando por lá.
Encontramos a porta e forçamos o trinco. Estava trancada por dentro, não houve jeito de abrir.
Era tão fraca e a madeira parecia podre, eu seria capaz de arrombá-la com um pontapé, só que faria muito barulho. Preferimos forçar a janela que dava também para a varanda. Era só quebrar o vidro, meter a mão e puxar o trinco.
Tirei o sapato e bati fortemente com o salto no vidro, que se espatifou num tremendo ruído.
Assustado, Hindemburgo latiu no jardim, por sua vez nos assustando tanto, que nosso primeiro impulso foi fugir correndo.
Como não acontecesse nada, ao fim de algum tempo resolvemos continuar a nossa missão. Aberta a janela, fui o primeiro a pular. Depois ajudei Anairam a entrar também. Só então, já dentro de casa, nos arriscamos a acender a vela.
Era uma sala grande, onde não tinha nada, a não ser poeira no chão e manchas de mofo pelas paredes forradas de papel estampado. A chama da vela, trêmula, projetava sombras que se mexiam, pelos cantos, ameaçadoras, enquanto avançávamos.
Em pouco vimos que ali embaixo só havia uma cozinha, onde várias baratas fugiram correndo pelo chão de ladrilhos encardidos, um quartinho e outra sala com janelões dando para a rua.
Mais nada.
Restava subir a escada e investigar o que havia nos quartos lá em cima.
Subimos devagarinho, eu na frente, conduzindo a vela, a agente Anairam se agarrando na minha blusa. Procurávamos não fazer barulho, mas os degraus de madeira da escada, já meio podres, rinchavam, dando estalinhos debaixo de nossos pés.
No segundo andar, empurramos a porta do primeiro quarto no corredor e entramos. Era um quarto grande, mas a vela não dava para ver nada, a não ser a nossa própria sombra projetada na parede.
Foi quando, de súbito, a luz se acendeu e tudo se iluminou.
No primeiro instante ficamos deslumbrados com aquela claridade e nos voltamos para ver quem tinha acendido a luz. Soltamos juntos um grito de pavor — parado junto à porta estava um velho horrendo, alto, barba suja, cabelos desgrenhados, a nos olhar, mãos na cintura:
— Que é que vocês dois estão fazendo aqui? Quem são vocês?
A voz dele era rouca e nos meteu mais medo ainda. Ele avançou em nossa direção e fomos recuando de costas, até a parede.
— Vocês merecem é uma boa surra — e o velho apanhou um pedaço de ripa no chão.
Quando já estava com o braço erguido para nos bater, vimos por detrás dele surgirem na porta os agentes Pastoff e Hindemburgo que, alertados pelo nosso grito, tinham vindo a toda pressa nos defender. O primeiro em três pulos se colocou na frente do velho, onde ficou saracoteando para distrair sua atenção, enquanto o segundo de um salto se atirava em suas costas e o derrubava.
Anairam e eu aproveitamos a confusão para fugir do quarto e despencar escada abaixo, largando pelo caminho a vela ainda acesa. Fomos ultrapassados pelo velho, que ao ver aquele
cachorrão em cima dele sentiu mais medo do que nós.
Nem sei como conseguimos saltar tão depressa pela janela por onde havíamos entrado, e ganhar a rua num atropelo, aos gritos de acordar o quarteirão inteiro. Quando vimos, os
outros dois agentes estavam a nosso lado, fugindo conosco. Fomos cada um para o seu lado — Anairam para a sua casa, eu para a minha, Pastoff para sua toca no quintal, Hindemburgo para o porão onde dormia.
NO DIA seguinte ficamos quietinhos, nem ousamos nos reunir. Mas soubemos, pelas conversas dos mais velhos, de tudo que havia acontecido. Tinha dado até notícia no jornal. A nossa gritaria chamou a atenção dos vizinhos, que acordaram e viram de suas janelas a casa abandonada começando a pegar fogo - a vela que deixei cair causou o incêndio. Chamaram os bombeiros e veio também a polícia, ainda em tempo de prender o velho: era um ladrão
perigoso, que usava aquela casa para guardar objetos roubados. Um dos vizinhos chegou a declarar aos jornais que tinha visto uns meninos e um cachorrão fugindo da casa em chamas.
Mas não se descobriu nada a nosso respeito, acharam que o vizinho estava vendo fantasmas.
Passado o perigo, alguns dias mais tarde a sociedade secreta Olho de Gato voltou a se reunir, para avaliar a situação e estudar as próximas missões. Entramos de manhã no nosso
esconderijo e, esquecidos do tempo, ficamos horas comentando os riscos que tínhamos enfrentado. Até Hindemburgo participou dos debates, a rosnar de alegria lá na língua dele, pelo grande sucesso de sua atuação, salvando-nos a vida: ganhou um belo naco de carne que
roubamos da Alzira na cozinha, e Pastoff foi premiado com meia dúzia de cenouras.
Estávamos em meio às celebrações, quando ouvimos um barulhinho no canto do forro. A agente Anairam foi até lá investigar. De repente ela soltou um berro e voltou correndo, como se mil demônios a perseguissem
— É o gambá!
Apavorados, nos precipitamos todos para a saída no alçapão: era o gambá que havíamos surpreendido chupando ovos no galinheiro da casa de nossa companheira. Foi abrir a
portinhola e saltamos um atrás do outro para a mesa lá embaixo.
Foi então que se deu o desastre.
Distraídos com a animada reunião, não tínhamos percebido que o tempo havia passado, estava na hora do almoço. E a família inteira almoçava naquele instante, reunida em torno à mesa. Pastoff caiu direto dentro da sopeira, saiu aos pulos borrifando sopa em cima de todo mundo. Hindemburgo, grandalhão, em dois saltos ganhou o chão, não sem antes pisar nos pratos do papai e da mamãe, espalhando comida para todo lado. Eu caí com as pernas enganchadas no pescoço do Gerson e Anairam se estatelou de quatro no meio da mesa, uma das mãos na travessa de arroz, a outra na de batatinhas fritas e os joelhos num pastelão de carne. Só o gambá não pulou atrás de nós: se limitou a meter o focinho pelo alçapão, para dali acompanhar os acontecimentos. Mas deu para sentir o fedor de sua presença.
Foi um susto tremendo, verdadeiro pandemônio. Devem ter achado que a casa vinha abaixo.
Nunca conseguiram saber direito o que havia acontecido e muito menos o que estávamos fazendo no forro da casa. Não havia como entender as nossas confusas explicações.
E foi assim que entrou em recesso a sociedade secreta: os quatro agentes, Odnanref, Anairam, Pastoff e Hindemburgo se recolheram cada um ao seu canto, e o Departamento Especial de Investigações e Espionagem Olho de Gato suspendeu temporariamente as suas atividades.
Fernando Sabino
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