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O Menino no Espelho - Capítulo X







                   A LIBERTAÇÃO DOS PASSARINHOS 

DA JANELA do meu quarto, vi na mangueira uma linda manga sapatinho completamente amarela de tão madura. Uma rolinha, pousada no galho, ameaçava começar a comê-la. 
Chamei a atenção da Mariana, ali a meu lado: 
— Olhe só uma coisa. 
Eu tinha resolvido dar aquela manga de presente para ela. Tirei de um dos bolsos da calça o meu bodoque, do outro algumas pedrinhas, escolhi a mais jeitosa, armei o bodoque, fiz pontaria e atirei. 
Desde que era escoteiro, tinha aprendido que só devia usar o bodoque para praticar o bem, como apanhar manga. Nunca para quebrar vidraça ou lâmpada de rua, e muito menos matar passarinho. Costumava armar uma pequena arapuca no fundo do quintal para apanhá-los e depois tornar a soltar, mesmo que fosse um precioso canário ou um lindo sabiá: meu pai não admitia criar passarinho em gaiola, achava uma perversidade. E tinha me transmitido esse seu sentimento: 
— Imagine se fizessem o mesmo com você: te criassem dentro de uma gaiola. 
Quando o Toninho apareceu lá em casa com um casalzinho de periquitos verdes, que ele tinha trocado com um menino pelos seus patins, papai mandou imediatamente que soltasse os bichinhos: 
— Depois te dou outro par de patins. De bichos aqui em casa, basta um papagaio, um cachorro e um coelho. Não se falando nas galinhas ali do seu Fernando. 
Fazia alusão à minha galinha Fernanda, que por essa ocasião já tinha morrido de velha. E arrematou: 
— Isso de passarinho em gaiola é coisa desse soldado aí do lado. 
O soldado a que ele se referia com aquele ar de desprezo era o major Alberico Pape Faria, que morava na casa à direita da nossa. Mal sabia eu que em breve esse major estaria em guerra declarada conosco. Ou nós com ele: não se sabe quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha — no caso, o passarinho.  
 TUDO parece ter começado no dia em que a Mariana e eu estávamos no nosso posto de observação, nos últimos galhos da goiabeira junto ao muro que dava para a rua, entregues a
uma de nossas distrações prediletas: jogar água nos que passavam lá fora, na calçada.
Usávamos uma velha seringa de borracha, encontrada no quarto de despejo, e cuja serventia anterior não sabíamos qual tivesse sido. Chegamos ao requinte de prender numa forquilha a nosso lado um balde cheio d'água, para remuniciar a nossa arma, e não precisar de ficar descendo e subindo o tempo todo. 
— Vem gente — anunciava Mariana, de sentinela, recolhendo depressa a cabecinha, como o cuco de um relógio suíço, e dando lugar a meu braço com a seringa. Era um esguicho só.
Jamais deixava de passar um grande susto na pessoa lá na rua, mesmo que fosse atingida apenas por alguns respingos. 
Não era fácil acertar de cheio. Quando isso acontecia, o coitado saía completamente encharcado. Então despencávamos da goiabeira e íamos em disparada para dentro de casa.
Ficávamos na sala, como se já estivéssemos ali longo tempo, empenhados numa distração inocente qualquer, ao alcance da vista dos mais velhos, para enfrentar uma possível reclamação da vítima. 
A primeira que veio reclamar foi justamente o major Pape Faria. 
O homem havia tomado um verdadeiro banho. Mal pudemos esconder o riso quando o vimos entrar, molhado como um pinto por um esguicho que lhe havia encharcado a farda pelas costas, da cabeça ao calcanhar. Veio reclamar do meu pai, água ainda escorrendo e pingando no chão: 
— Olha só o que o diabo do seu filho me fez, Meu pai o olhou, espantado: 
— Onde é que o senhor se molhou assim? 
— Onde é que eu me molhei? — respondeu o major, furioso: — Pergunte ali ao seu filho! Foi esse diabo que me molhou. 
— Meu filho não é diabo, e está aqui na sala um tempão, brincando com a amiguinha dele. 
— Eu conheço muito bem tanto ele como essa amiguinha dele. Foram os dois juntos. Mas isso não vai ficar assim. 
— Nem um nem outro arredou pé daqui um instante sequer. Como é que podem ter jogado água no senhor? 
— Podem porque eles são capazes disso e de muito mais. Sei lá se o que me jogaram foi só água? Pode perfeitamente ter sido coisa muito pior. 
O major passava a mão nas costas molhadas e levava ao nariz: 
— Ainda bem que não está cheirando. Mas boa coisa é que esse menino não é. 
Meu pai se encrespou: 
— Pode até não ser, mas não admito que o senhor venha à minha casa   para falar mal de meu filho. 
E se adiantou, abrindo a porta para que o major se pusesse para fora da nossa casa. Ao se despedir, além de rebaixá-lo de posto, ainda errou o nome dele: 
— Passe bem, capitão Patifaria. 
Mariana e eu não resistimos e soltamos uma gargalhada lá da sala. O major ficou furibundo: 
— Patifaria não: PAPE FARIA! Patifaria foi o que aqueles dois me fizeram. Fique sabendo que meu nome é Alberico Pape Faria, major do exército e não capitão. E fique sabendo também que serei tenente-coronel antes do fim do ano. Isso não vai ficar assim. 
Com esta última ameaça, deu meia-volta e, depois de fazer para mim um sinal com a mão de quem diz "você me paga", saiu marchando com passo duro. 
Estava declarada a guerra. 
— Capitão Patifaria! — gritávamos, toda tarde, ao passar em frente à casa dele. Tocávamos a sineta, sacudindo o portão, e saíamos correndo. Às vezes papai ouvia, mas, em vez de zangar,
achava graça. Mamãe ficava preocupada: 
— É melhor a gente chamar a atenção desses meninos. O major pode ser antipático, mas eu sei muito bem de que meu filho é capaz, se começar a implicar com ele. Isso ainda acaba mal.
O homem é importante, pode nos prejudicar. 
— Importante lá para os soldados dele — retrucava meu pai tranquilamente: — Sou paisano e ele que cuide de sua importância, que de meu filho cuido eu. 
Até que um dia, quando gritávamos "capitão Patifaria!" debaixo da janela dele, sem que o major aparecesse como sempre, e antes que sacudíssemos o portão tocando a sineta, senti de súbito uma mão pesada me segurar pelo ombro. Mariana o viu primeiro e fugiu correndo, a gritar: 
— Cuidado, Fernando! Corre também! 
Era tarde. Voltei-me e dei de cara com o major, mãos estendidas para me agarrar pelo pescoço, talvez até me estrangular. Dei uma ginga de corpo como costumava fazer no futebol.
Ele avançou por um lado, eu escapuli por outro. Ele ainda me acertou um violento cascudo no alto da cabeça, antes que eu conseguisse fugir com quantas pernas tinha.  
  — Isso não vai ficar assim! — repeti de longe a sua ameaça, quando me vi a salvo. 
E REALMENTE não ficou. Juntei-me à Mariana para tramarmos uma vingança à altura do cascudo que ele me tinha dado e que me deixou com dor de cabeça o dia inteiro. 
Naquela mesma noite, antes de nos recolhermos, esticamos um arame do poste de luz na calçada ao portão da casa dele, para que ele tropeçasse quando fosse sair. No dia seguinte
ficamos sabendo que isso tinha mesmo acontecido, pois o vimos passar com o nariz esborrachado como uma goiaba bichada, e na testa uma cruz de esparadrapo que a aba do
quepe não chegava a ocultar. 
Alguns dias depois, foi a vez do major. Eu estava com alguns amigos jogando futebol na rua, quando a bola caiu no jardim da casa dele. Era domingo, dia de nenhum movimento, e não nos dávamos ao trabalho de ir jogar no campinho de peladas do lote vazio, que era inclinado e não plano como o asfalto em frente à nossa casa. 
— E agora? — nos entreolhamos, sem saber o que fazer, com medo do major. 
Resolvemos escalar o Turcão, que era o mais forte de todos, para ir buscar a bola: ele era o que corria menos risco de levar um cascudo do homem. 
— Pede licença com delicadeza — avisamos ainda. 
Em pouco o Turcão voltava, com lágrimas nos olhos: 
— Olha só o que ele fez com a sua bola, Fernando. 
E mostrou-nos a bola reduzida a tiras de couro, toda cortada a navalha. 
— Por que você não meteu a mão na cara dele? — protestamos, indignados. 
— Eu? — e o Turcão fez um ar de quem, mesmo sendo grandalhão, não era nada bobo: — O homem estava com um revolvão deste tamanho na cintura! 
Guerra é guerra — agora era a nossa vez de agir. 
Com a intenção de articularmos o próximo lance, convoquei a Mariana para uma reunião em meu quarto. Depois de pensarmos e repensarmos vários planos, foi que eu me debrucei na janela e vi a tal manga madura. 
Esquecido por um instante do major Pape Faria e suas patifarias, resolvi oferecê-la à Mariana, que era louca por manga, derrubando-a com uma certeira bodocada. O que para mim era fácil:
bastava acertar um pouco acima, no cabo que a prendia ao galho, para que a pedra não a machucasse, atingindo a polpa, como aquela rolinha estava quase fazendo... 
A pedra partiu zunindo, realmente certeira, mas a rolinha é que tombou, atingida na cabeça. 
MARIANA e eu nos olhamos, estarrecidos: matar um passarinho! Para nós, como disse, aquilo
era um pecado imperdoável. A coisa mais bonita que Deus havia feito! Quem magoasse uma daquelas criaturinhas era como se fizesse mal a uma criança, não merecia salvação. 
Então nos precipitamos até o quintal, para ver se a rolinha não estaria apenas machucada, talvez houvesse tempo de salvá-la. 
Não havia. Estava morta, caída ao chão, asas semi abertas, a cabeça tombada para baixo, ensanguentada. Segurei nas mãos o seu corpinho ainda quente, como se pudesse preservar nele um resto de vida. 
— E agora? — perguntou Mariana, impressionada. 
— Não adianta: está morta mesmo. 
Foi então que me veio, não sei por que, uma ideia maldita, diabólica, como uma tentação soprada do próprio inferno: 
— Agora só serve para comer. 
Não sei por que disse aquilo, e com tanta naturalidade. Não me espantei nem um pouco quando Mariana perguntou, com mais naturalidade ainda: 
— Você sabe preparar? 
— Sei. É só depenar e limpar, como a Alzira faz com as galinhas. Depois a gente acende uma fogueirinha e assa no espeto. 
E comecei a arrancar as penas da rolinha morta, uma por uma. Estava difícil, pois não me lembrei que era preciso antes mergulhar em água bem quente. Acabei deixando esta parte
para depois: 
— Vamos primeiro limpar por dentro. 
No fundo, eu talvez estivesse querendo ver como era por dentro um passarinho. E Mariana, a meu lado, olhos bem atentos, parecia partilhar da minha curiosidade. Abri a barriga da rolinha com o canivetinho e comecei a  retirar com o dedo tudo que havia lá dentro, como se fosse o recheio de uma boneca. Só que era uma matéria mole, viscosa, molhada de sangue, que começou a me causar o maior nojo, senti vontade de vomitar. Até que no meio de tudo aquilo, surgiu um pedaço de carne compacto, do tamanho da ponta do meu dedo, era o coração dela. Mostrei para Mariana, não
podendo mais de emoção: as lágrimas me escorreram pelo rosto. Mariana também chorava, baixinho, de pena da rolinha, ou por me ver chorando, não sei bem — o certo é que nós dois nos entregávamos a uma crise de choro incontrolável. 
— E agora? — Mariana balbuciou, entre soluços. 
— Vamos enterrar — decidi, enxugando o rosto e procurando conter o choro. 
Ela foi correndo à sua casa, enquanto eu abria uma pequenina cova na terra úmida, junto ao tronco da mangueira. Em pouco estava de volta, trazendo uma caixa de sabonete Araxá vazia e ainda perfumada. Recolhemos dentro dela, em respeitoso silêncio, os restos mortais da rolinha, fechamos a tampa com cuidado e depusemos dentro da cova, com gestos lentos que já obedeciam a um grave ritual. Tampamos com terra, e fizemos um montinho de pedras em
forma de túmulo, no qual espetamos uma cruz de dois paus de fósforo amarrados com linha.
Depois fizemos o nome-do-padre e rezamos um padre-nosso e uma ave-maria pela alma da rolinha. 
NAQUELA noite não pude dormir (no dia seguinte saberia que o mesmo aconteceu com Mariana). Sentia que fizera algo de terrível, sujo e pecaminoso. Não por ter matado um
passarinho. Aquilo acontecera sem eu querer, Deus era testemunha. A minha culpa era de haver profanado o seu cadáver, com a intenção de comê-lo. Como se eu fosse um selvagem, um animal! 
Foi então que me ocorreu a ideia que concederia o perdão por aquela falta aparentemente imperdoável: praticar uma boa ação para compensá-la. 
Quando contei a ideia à Mariana, demos saltos de alegria ao descobrir que a boa ação, por nós logo tramada, seria ao mesmo tempo o esperado troco ao major Pape Faria, pela patifaria que havia cometido cortando a minha bola. 
Ao dizer que passarinho preso era "como esse soldado aí do lado", meu pai estava se referindo aos passarinhos que o vizinho criava, não só em gaiolas na varanda da casa, como no imenso viveiro ao fundo de seu quintal. 
Esse viveiro sempre foi um de meus deslumbramentos: pintassilgos, tico-ticos, canários, sanhaços, periquitos, bicos-de-lacre e mil outros passarinhos se confundiam ali dentro em constante agitação. Eu subia no muro e ficava horas a olhar aquela passarinhada toda revoando lá dentro, em busca de uma saída, alguns empoleirados pelos cantos, tristes porque não podiam mesmo escapar. E   me dava vontade de soltá-los. 
Era o que iria fazer agora. 
A sociedade secreta Olho de Gato foi reativada, para o cumprimento daquela perigosa operação. Estenderíamos agora a natureza de suas atividades ao campo das missões
subversivas. Deixamos, entretanto, de convocar os agentes Hindemburgo e Pastoff, pois, em se tratando de passarinhos, não sabíamos se atuariam conosco para soltá-los ou para comê-los. 
A operação ficou marcada para aquela noite. Como precaução, armei-me do bodoque e do revólver de espoleta. 
Sair de casa depois que todos houvessem dormido não nos foi difícil: já tínhamos feito aquilo mais de uma vez. 
Nos encontramos no quintal e, sem uma palavra, pulamos o muro do vizinho. O que também nos foi fácil: subíamos e andávamos pelos muros como gatos — e por sinal que encontramos mais de um por ali naquela noite. Parece que farejavam a novidade, e queriam ver se sobrava alguma coisa para eles, os assassinos. 
Atravessamos como duas sombras o jardim do vizinho, passando por cima dos canteiros com cuidado para não fazer barulho. Subimos primeiro â varanda e abrimos uma a uma as gaiolas ali dependuradas. Alguns passarinhos acordavam espantados e fugiam logo. Outros custavam a entender o que se passava, tinham de ser retirados com a mão e atirados no ar para sair voando. 
Depois retrocedemos até o quintal e fomos libertar os do viveiro. O que não foi tão fácil: a porta era presa por um cadeadinho que tive de arrebentar, com o auxílio de uma pedra. 
— Cuidado, Fernando — Mariana me sussurrava ao ouvido, assustada: — Você está fazendo muito barulho... 
Aberta finalmente a porta, para que a passarinhada saísse logo, tive de entrar eu próprio no viveiro e espantá-la com os braços em direção à saída. Numa revoada em torno da minha
cabeça, batendo as asas e entre cantos e chilreios, eles iam escapando. 
Foi quando ouvi a voz ansiosa da Mariana lá fora, montando guarda: 
— Perigo à vista! Esconde depressa! 
Vi que uma luz se acendera no andar superior da casa. Uma cabeça apareceu. Logo surgiu o cano de uma carabina, ouviu-se um estampido, uma fumacinha, e alguma coisa passou assobiando pelo meu ouvido. Atirei-me ao chão, puxando imediatamente o meu revólver de espoleta e atirando também, uma, duas vezes. O cano da carabina e a cabeça do major imediatamente sumiram, a luz se apagou. 
— Psiu, fique quieta — soprei para Mariana que se deitara no chão, a meu lado, junto a porta do viveiro. Eu sabia que agora ele estava de volta a janela, no escuro para nos surpreender fugindo, pronto a atirar de novo. 
Tínhamos de escapar dali de qualquer maneira. Lembrei-me do bodoque, que havia trazido também. Assim mesmo deitado, armei-o com uma pedra das maiores, fiz pontaria na sineta do portão, além do jardim, iluminado pela luz da rua, e atirei. A pedra partiu zunindo e acertou em cheio no alvo: a sineta começou a tocar, como se alguém sacudisse o portão. 
Consegui enganar o inimigo: logo o vulto do major surgia na varanda, esgueirando-se junto à parede, curvado para a frente, carabina engatilhada, e descendo a escada furtivamente a caminho do portão. 
— Agora — ordenei baixinho para Mariana. 
Partimos em disparada e pulamos o muro, voltando para o quintal de minha casa. Respiramos, aliviados, e nos despedimos, indo cada um para sua casa antes que começasse a confusão. 
Que não demorou muito. O major pôs-se a gritar por socorro, dizendo que estava sendo assaltado. Um guarda-noturno da Praça da Liberdade ouviu a gritaria, chamou seus colegas,
avisou a policia inteira. Vieram até a Polícia Militar e a do Exército, pois o assaltado era um oficial. Em poucos minutos a nossa rua virava uma praça de guerra. O major contou que os assaltantes, surpreendidos por ele no quintal, haviam reagido com um tremendo tiroteio, por pouco ele não morreu. Como eram muitos, conseguiram fugir, levando consigo o produto do assalto, isto é, todos os exemplares de sua preciosa criação de passarinhos. 
— Vale uma verdadeira fortuna! — afirmava, enfurecido. 
TUDO isso, é lógico, ficamos sabendo no dia seguinte, ao escutar, com ar inocente, os comentários dos mais velhos. Para que não desconfiassem de nós, achamos prudente nos
afastarmos dali. E fomos nos refugiar no porão. Quando nos viu passar, Godofredo pôs-se a papagaiar, entusiasmado: 
— Bravos, Fernando! Bravos, Mariana! 
O papagaio vibrava com a nossa façanha. Como é que ele soubera? 
— Esse camarada ainda vai acabar nos entregando — falei, preocupado. 
E sugeri a Mariana que passássemos alguns dias sem nos vermos. Mas antes, ao entardecer daquele mesmo dia, fomos de mãos dadas fazer uma visita ao túmulo de nossa desventurada rolinha, junto à mangueira do quintal. Como homenagem à sua memória, fizemos a ela a oferenda do nosso feito, libertando seus irmãozinhos.  
E estávamos ali, banhados pela luz cor-de-rosa do belíssimo pôr-do-sol de Belo Horizonte, quando uma coisa maravilhosa aconteceu. Como se brotassem do céu, bandos e bandos de
passarinhos de vários tamanhos e mil cores diferentes, vindos de todos os lados, se agrupavam no ar, em alegre revoada, até formar um verdadeiro enxame de asas em formação cerrada. E vieram todos para o nosso lado, voando em círculos cada vez menores e mais baixos, em meio a uma sinfonia de cantos, chilreios e trinados, centralizando-se em cima de nossas cabeças.
Rodopiavam no ar como uma guirlanda de pequeninos seres alados, girândola vinda do céu para nos abençoar com a sua gratidão. Rodaram várias vezes e depois o círculo se desfez, e
seguiram todos em linha reta, afastando-se como uma nuvem multicor até desaparecer em direção ao infinito.  

Fernando Sabino

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