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O Menino No Espelho - Epílogo






 

                                   O HOMEM E O MENINO 

PARO de escrever, levanto os olhos do papel para o relógio de parede: cinco horas. As sonoras pancadas começam a soar uma a uma, como antigamente em nossa casa. 
É um relógio bem antigo. Foi do meu avô, depois do meu pai, hoje é meu e um dia será do meu filho. Seu tique-taque imperturbável me acompanha todas as horas de vigília o dia inteiro e noite adentro, segundo a segundo, do tempo vivido por mim. 
Já contei várias proezas, aventuras, peripécias, tropelias (e algumas lorotas) do tempo em que eu era menino. Nada se compara ao mistério que eu trouxe da infância e que até hoje me intriga: quem era aquele desconhecido que um dia, depois da chuva, foi conversar comigo no fundo do quintal? 
Na hora pensei que fosse algum amigo da família, ou até parente: um velho primo ou tio que eu não conhecesse. Cheguei, mesmo, a achar que ele se parecia um pouquinho com meu pai — mas foi só impressão: quando perguntei quem ele era, papai me disse que não tinha a menor ideia, pois nem chegou a vê-lo. Minha mãe também não soube dizer, muito menos o Gerson ou o Toninho. A Alzira se limitou a dizer que me tinha visto conversando sozinho, como
eu fazia sempre. 
Só restava perguntar ao Godofredo, mas o papagaio não queria saber de conversa comigo: seu entusiasmo pela nossa façanha libertando os passarinhos  já havia passado. 
Hindemburgo e Pastoff talvez pudessem esclarecer alguma coisa, pois me haviam visto conversando com ele. Mas não sabiam falar, como o Godofredo, nem mesmo responder com
sinais, como a Fernanda, que infelizmente já havia morrido. E que é que uma galinha poderia saber a respeito de um homem, de cuja existência os outros até duvidavam? 
E não fiquei sabendo, e até hoje me pergunto: quem seria ele? 
Cansado de tantas recordações, afasto-me do relógio e caminho até a janela, olho para fora. 
Assombrado, em vez de ver os costumeiros edifícios, cujos fundos dão para o meu apartamento em Ipanema, o que eu vejo é uma mangueira — a mangueira do quintal de
minha casa, em Belo Horizonte. Vejo até uma manga amarelinha de tão madura, como aquela que um dia quis dar para a Mariana e por causa dela acabei matando uma rolinha. Daqui da minha janela posso avistar todo o quintal, como antigamente: a caixa de areia que um dia transformei numa piscina, o bambuzal de onde parti para o meu primeiro voo. Volto-me para dentro e descubro que já não estou na sala cheia de estantes com livros do meu apartamento, mas no meu quarto de menino: a minha cama e a do Toninho, o armário de cujo espelho um dia se destacou um menino igual a mim... 
Saio para a sala. Vejo meus pais conversando de mãos dadas no sofá, como costumavam fazer todas as tardes, antes do jantar. Comovido, dirijo-me a eles: 
— Papai... Mamãe... 
Mas eles não me veem. Nem parecem ter-me ouvido, como se eu não existisse. Ganho o corredor, passo pela copa onde o relógio está acabando de bater cinco horas. Atravesso a cozinha, vendo a Alzira a remexer em suas panelas, sem tomar conhecimento da minha existência. Desço a escada para o quintal e dou com um garotinho agachado junto ás poças d'água da chuva que caiu há pouco, entretido com umas formigas. Dirijo-me a ele, e ficamos conversando algum tempo. 
Depois me despeço e refaço todo o caminho de volta até meu quarto. Vou à janela, olho para fora. O que vejo agora é a paisagem de sempre, o fundo dos edifícios voltados para mim, iluminados pelas luzes do entardecer em Ipanema. Ouço o relógio soando a última pancada das cinco horas. Viro-me, e me vejo de novo no meu apartamento. 
Caminho até a mesa, debruço-me sobre a máquina que abandonei há instantes. Leio as últimas palavras escritas no papel:  ... até desaparecer em direção ao infinito. 
Sento-me, e escrevo a única que falta: 
                                  
                                        FIM  



FERNANDO (Tavares) SABINO

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