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A Caixa da Liberdade








  Em meados do século XIX, havia quatro milhões de escravos nos Estados Unidos. Os escravos eram propriedade dos donos, como se fossem mesas, vacas ou carroças. Os historiadores pensam que entre 60.000 e 100.00 escravos recuperaram a liberdade através do Caminho-de-Ferro Clandestino. O Caminho-de-Ferro Clandestino não era um verdadeiro caminho-de-ferro. Era um conjunto de rotas que os escravos seguiam quando fugiam para Norte. Escondiam-se em carroças, andavam a cavalo, caminhavam centenas de quilômetros através de florestas e pântanos, atravessavam rios caudalosos no Verão e superfícies geladas no Inverno. Eram ajudados por "chefes de estação" e "cobradores" que os escondiam e auxiliavam ao longo da fuga.

   Quando Henry Brown entrou na sua "Caixa da liberdade", acreditava que esta o transportaria para um mundo seguro. Levou com ele uma ferramenta para abrir buracos na caixa para respirar, um pouco de
água e alguns biscoitos. Quando chegou a Filadélfia, vindo de Richmond, na Virgínia, tinha percorrido uma distância de 560 quilômetros em 27 horas. A sua história foi objeto de notícia na América e na Europa. Henry nunca encontrou a mulher e os filhos. Em 1850 foi para Inglaterra e há quem diga que voltou a casar. Mas o que é certo é que Henry "Box"[1] Brown se tornou um dos fugitivos mais célebres do Caminho-de-Ferro Clandestino – o homem que "encomendou" a sua liberdade.

   *****

   Henry Brown n
ão sabia a idade. Era um escravo, e os escravos não podiam saber quando faziam anos. Trabalhava, juntamente com os seus irmãos e irmãs, na casa grande da plantação, onde vivia o dono. Este sempre fora bondoso para com eles.

   Mas a m
ãe de Henry sabia que esta situação podia mudar. Um dia, comentou com o filho:

   - V
ês aquelas folhas a esvoaçar? Foram arrancadas das árvores, tal como os filhos dos escravos são arrancados às suas famílias.

   E uma bela manh
ã, o patrão mandou chamar Henry e a mãe. Ambos subiram a escadaria larga que conduzia ao quarto. O dono estava na cama e só a sua cabeça emergia do edredão. Estava muito doente e pediu-lhes que se aproximassem. Como alguns escravos estavam a ser libertados pelos donos, o coração de Henry bateu com força. Talvez o dono fosse libertá-lo. Porém, o patrão disse:

   - Tens sido um bom trabalhador, Henry. Vou dar-te ao meu filho. Deves obedecer-lhe e nunca contar mentiras.

   Henry acenou com a cabe
ça, mas não agradeceu. Agradecer seria mentir.

   Na tarde desse mesmo dia, Henry viu um p
ássaro voar bem alto para longe das árvores. "Um pássaro livre! Um pássaro feliz!", pensou. Depois, despediu-se da família. Quando olhou para os campos, as folhas rodopiavam ao vento.

   O rapaz foi trabalhar para a f
ábrica do novo patrão e trabalhava bem. Mas isso não o impedia de gritar com ele, e de o ameaçar com um bastão:

   - N
ão rasgues essa folha de tabaco!

   Se os escravos cometessem algum erro, o patr
ão batia-lhes.

   Henry sentia-se s
ó. Mas, um dia, conheceu Nancy, que andava às compras para a patroa. Puseram-se a conversar, enquanto caminhavam juntos, e concordaram em voltar a encontrar-se. O rapaz tinha agora vontade de cantar, embora os escravos não se atrevessem a cantar na rua. Em vez disso, trauteou disfarçadamente a caminho de casa.

   Meses mais tarde, Henry pediu a Nancy que se casasse com ele. Depois de os patr
ões de ambos concordarem, os jovens casaram-se. Em breve nasceu um filho, e depois outro, e logo outro. Henry sabia que tinham sorte em viverem juntos, apesar de terem patrões diferentes. Mas Nancy preocupava-se, porque o seu dono tinha perdido muito dinheiro. Um dia confessou ao marido:

   - Temo que ele venda os nossos filhos.

   Henry ficou muito calado. Nessa manh
ã trabalhou arduamente, tentando esquecer o que a mulher lhe dissera. Mas, de repente, o seu amigo James entrou na fábrica e sussurrou-lhe:

   - A tua mulher e os teus filhos acabam de ser vendidos no mercado de escravos.

   - N
ão! - gritou Henry.

   De repente, n
ão conseguia mexer-se, nem pensar, nem trabalhar.

   - Mexe esse tabaco! - gritou o patr
ão, empurrando-o com o bastão.

   Enquanto mexia as folhas de tabaco, o seu cora
ção remexia no peito. À hora de almoço, foi ao centro da cidade. Viu um grupo de escravos atados uns aos outros e o novo dono a gritar com eles. Henry procurou a família.

   - Pai! Pai! - ouviu chamar.

   Foi ent
ão que viu os filhos desaparecerem ao longe na rua. Onde estaria Nancy? Viram-se ao mesmo tempo, mas era tarde demais. Depois de limpar as lágrimas, Henry deu-se conta de que também ela desaparecera.

   Henry deixou de cantar e at
é de trautear. Ia trabalhar e, à noite, comia e ia para a cama. Tentou lembrar-se dos tempos felizes que passara, mas só conseguia ver as carroças a transportarem para longe todas as pessoas que amava. Sabia que não voltaria a ver a família.

   Passaram-se muitas semanas. Certa manh
ã, Henry ouviu um pequeno pássaro cantar e viu-o voar em direção ao céu. E pensou que podia ser livre. Mas como? Quando pegou numa caixa de madeira, soube a resposta.

   Pediu a James e ao Dr. Smith para o ajudarem. O Dr. Smith era um branco que pensava que a escravatura estava errada. Encontraram-se num armaz
ém vazio no dia seguinte, pela manhã. Henry transportava uma caixa.

   - Irei como encomenda para um lugar onde n
ão haja escravos! - anunciou.

   James olhou para a caixa e depois para Henry.

   - E se tossires e algu
ém te ouvir?

   - Taparei a boca e terei esperan
ça - respondeu Henry.

   O Dr. Smith escreveu na tampa da caixa:

  

   Para: William H. Johnson Arch Street Filad
élfia, Pensilvânia.

   Henry seria entregue a amigos na Pensilv
ânia. O médico também escreveu na caixa, em maiúsculas:

   ESTE LADO PARA CIMA

   TRATAR COM CUIDADO.

   Henry precisava de uma desculpa para ficar em casa, ou o patr
ão pensaria que ele tinha fugido. James lembrou-lhe o dedo magoado. Mas o amigo sabia que não era desculpa suficiente. Abriu, então, uma garrafa de ácido.

   - N
ão! - gritou James.

   Henry deitou o
ácido na mão e sentiu que a queimadura penetrava nos ossos. Agora o patrão deixá-lo-ia ficar em casa! O Dr. Smith pôs-lhe uma ligadura e concordaram em encontrar-se na manhã seguinte, às quatro horas. Ainda o sol não se erguera, e Henry já se enfiava na caixa.

   - Estou pronto! - anunciou.

   James pregou a tampa da caixa e, juntamente com o Dr. Smith, levou-a para a esta
ção. O empregado do caminho-de-ferro virou a caixa e pregou um papel no fundo. O médico pediu aos carregadores que tivessem cuidado, mas ninguém lhe prestou atenção e atiraram a caixa para o vagão das mercadorias.

   Passaram-se horas, durante as quais Henry foi novamente levantado e atirado, ficando de cabe
ça para baixo. Ouviu ondas a bater. Devia estar a bordo do navio que ia para Washington, D.C. O barco navegava devagar, mas o escravo ainda estava virado ao contrário. O sangue subiu-lhe à cabeça, as faces ficaram afogueadas, os olhos doíam-lhe, e pensou mesmo que a cabeça ia rebentar. Mas nem se atrevia a mexer, com medo de que alguém pudesse ouvi-lo.

   - Estou cansado de estar de p
é! - disse uma voz.

   - Por que n
ão nos sentamos nesta caixa? - sugeriu uma outra.

   Henry nem conseguia respirar. Ser
á que estavam a falar da sua caixa? Sentiu-se empurrado. A caixa raspou o convés do navio. Viraram-no para o lado direito e para o esquerdo. De repente, sentiu-se virado para cima.

   - O que pensas que est
á aqui dentro? - perguntou um dos homens.

   - Correio, acho - respondeu o outro.

   "Sou correio, sou, mas n
ão do tipo que imaginam", pensou Henry.

   Quando a viagem terminou, a caixa foi levada para fora do navio e colocada numa carruagem de comboio. Desta vez, seguiram as instru
ções. Henry adormeceu ao som das rodas do comboio. Acordou com uma pancada forte.

   - Henry, est
ás bem? - perguntou uma voz.

   - Estou - respondeu.

   A tampa foi levantada. O escravo estirou os bra
ços, levantou-se e deparou com o sorriso de quatro homens.

   Bem-vindo a Filad
élfia!

   Henry sabia agora que fazia anos a 30 de Mar
ço de 1849, o seu primeiro dia de liberdade. A partir desse dia, também ganhou outro nome: todos passaram a chamar-lhe Henry "Box" Brown.



Ellen Levine; Kadir Nelson
Henry’s freedom box – A true story from the Underground Railroad
New York, Scholastic, 2007
(tradu
ção e adaptação)

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