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E as flores regressaram... (2ª parte)









  Então Néki avançou e declarou: — É preciso fazer qualquer coisa! Não é possível desobedecer a Bayamé, mas também não podemos deixar o nosso povo assim tão atormentado.

   — O que podemos fazer? — perguntou-lhe o chefe dos anciãos com uma voz desolada, abanando a cabeça.

   — Vou ver Bayamé e pedir-lhe que nos deixe usufruir das flores que crescem na terra para alegria de todos.

   Um sorriso iluminou a cara das crianças e das mulheres, mas os velhos permaneciam tristes e sem esperança.

   — Será que te dás conta do que isso representa, Néki? Ir ao encontro de Bayamé no País do Grande Repouso é uma tarefa impossível!

   — E porquê? — insistiu o jovem.

   — Precisarias de caminhar dias e dias em direção aos montes Oubi-Oubi, e isto partindo do princípio que os poderás atingir. Aí, deverias procurar o caminho que leva ao país de Boullimah, onde repousa o sábio — explicou o chefe. — Nunca ninguém voltou de uma tal viagem — apressou-se a acrescentar.

   Néki não se perturbou e repetiu: — Mesmo assim, vou tentar! Irei ver Bayamé! Mas vocês têm de me prometer que ninguém tocará nem nas flores, nem nas abelhas, nem no mel sagrado, até que eu volte!

   — E se não voltares? — exclamou a mulher que primeiro se tinha revoltado.

   — Farei tudo para que tenham notícias minhas. Mas quero que me prometam isso antes de me pôr a caminho.

   Duas ou três vozes exclamaram: — Tens a nossa palavra!

   Outras vozes fizeram eco. Em breve, todos gritaram a Néki que poderia confiar neles, que cumpririam a promessa até que ele voltasse. Então, o jovem retirou o fiel boomerang da cintura e disse:

   — Não é preciso armas para chegar ao país de Boullimah. Lá chegarei, se Bayamé assim o desejar!

   E pôs-se a caminho em direção ao norte. Num desvio do caminho, lançou um olhar para trás para ver o seu povo que permanecia imóvel na clareira. As crianças olhavam-no com esperança, as mulheres e os homens com uma mistura de admiração e de dúvida. De qualquer forma, ninguém fez um só gesto que transgredisse as ordens dos anciãos.

   Néki caminhava com o coração angustiado… Esperariam por ele sem tocar numa só flor? Sem provar um pouco de mel? Não seria exigir muito destas pessoas simples que apenas pediam para colher uma semente ou provar um pouco do mel que escorria das árvores em abundância?

   E ele próprio, sem armas, sem experiência, será que conseguiria atingir esse país longínquo onde, segundo diziam, repousava o sábio Bayamé? Contudo, pensava depois destas hesitações, “é o Espírito mensageiro que me permitiu conhecer a vontade de Bayamé. Ele ajudou-me E ajudar-me-á novamente.” E sentiu as suas forças reanimadas por tal pensamento.

   Caminhou assim durante dias e dias, sem sentir fome ou sede. Chegou, por fim, ao sopé dos montes Oubi-Oubi. Era uma cadeia inacessível, com paredes rochosas, de tal forma abruptas e escarpadas que pareciam cristal.

   Néki procurou durante horas um sítio para escalar mas teve de renunciar.

   Decidiu-se então a dar a volta à montanha para descobrir uma passagem. E pôs-se a caminho. Explorava todos os declives, todas as anfratuosidades da rocha. Após longos dias de caminhada, encontrou um local onde a escalada era possível.

   Começou a trepar lentamente o declive. Ao fim de uma hora de subida cansativa e perigosa, reparou que a rocha estava entalhada numa sucessão de inúmeros degraus, formando uma escadaria gigantesca que se perdia nas nuvens.

   Continuou a ascensão, mais facilmente desta vez. Mas a escadaria em pedra era tão comprida que subiu durante todo o dia, sem lhe ver o fim. Quando caiu a noite, o jovem, esgotado, enroscou-se no buraco duma rocha e adormeceu.

   Ao nascer do sol, retomou a caminhada até ao cume. Os degraus em pedra desenhavam uma gigantesca espiral que serpenteava no flanco da montanha e se elevava interminavelmente.

   Néki subiu assim no segundo dia, no terceiro, no quarto. De noite, repousava sobre as pedras duras. Na noite do quarto dia, chegou, por fim, ao cimo do monte.

   Da anfratuosidade da rocha escorria uma fonte de água límpida onde Néki matou a sua sede, esquecendo momentaneamente a grande fadiga que lhe entorpecia todos os músculos. O ar era puro e sentiu-se, pouco a pouco, revigorado. Olhou à sua volta e reparou que estava numa espécie de pequena plataforma, em cujo centro se erguiam pedras dispostas em círculo. Ao ir no seu alcance, foi sacudido por uma forte rajada de vento.

   Foi então que escutou a voz poderosa do Espírito mensageiro:

   — Que vens aqui fazer, Néki, neste lugar sagrado, dedicado a Bayamé?

   — És mesmo tu, o Espírito que um dia me falou na clareira das três árvores cobertas de flores? — perguntou Néki.

   — Sou eu mesmo, o Espírito mensageiro. Que desejas?

   — Nesse dia, mostraste-me o lugar onde a minha tribo poderia usufruir da contemplação das flores e das abelhas consagradas a Bayamé — começou Néki. — Eles aproveitaram essa grande benesse, mas desde então uma grande melancolia tomou conta dos seus corações. As crianças queriam provar o mel, mas as mães não podem dar-lho. As mulheres gostariam de ter algumas flores para embelezar as cabanas, mas não as podem colher e ninguém pode pegar numa semente que seja para plantar no jardim. Os anciãos da aldeia têm de estar de guarda às árvores sagradas dia e noite para que ninguém ouse tocar-lhes. Não teria sido melhor para todos conhecer estas maravilhas apenas através das lendas contadas pelos velhos? No entanto, podes dizer a Bayamé que, apesar da sua infelicidade, o meu povo não tocou nem numa flor nem numa gota de mel.

   — O sábio e generoso Bayamé sabe disso — retomou o Espírito mensageiro — e está contente com a vossa obediência. Prometeu recompensar-vos e manterá a sua promessa. Posso satisfazer um dos teus desejos, escolhe! O que queres? As flores? As abelhas? Ou o mel?

   Néki não teve de pensar muito. Respondeu prontamente:

   — Não me é difícil escolher, Espírito mensageiro. Sei que se pedisse o mel, tornaria as crianças e as mães felizes. Mas, mesmo que o generoso Bayamé nos desse uma grande quantidade de mel, esgotar-se-ia num dia. E a tristeza invadiria de novo a aldeia. Se te pedisse as abelhas, fabricariam mel durante algum tempo, mas depois iriam embora porque teriam que colher o pólen noutras flores… Restam-me, pois, as flores, se o generoso Bayamé mas quiser dar.

   — A tua escolha é sábia — observou o Espírito mensageiro. — Vou levar-te um pouco mais alto. Nada temas. É o único meio de atingir o país de Boullimah.

   Néki sentiu que o elevavam em direção ao céu, onde voou, leve, como se o seu corpo não tivesse peso. Pouco depois, encontrou-se deitado num prado florido que se estendia a perder de vista. Era o país do Grande Repouso.

   Sobre a relva de um verde esmeralda, as flores estavam dispostas em filas segundo as cores: as vermelhas perto das azuis, as azuis perto das violeta, as violeta junto às amarelas, e por aí diante, como se arco-íris infinitos pousassem na vasta pradaria. Fascinado pelo espetáculo, Néki deu consigo a pensar que ficaria de bom grado ali, naquele lugar de paz e de beleza onde poderia esquecer todas as misérias da terra.

   Mas logo de seguida lhe veio à memória o seu povo que o esperava lá em baixo. Recordou a expressão de esperança das crianças. A voz do Espírito fez-se, de novo, ouvir:

   — Colhe as flores que quiseres, Néki, e leva-as para a terra.

   O jovem lançou-se de imediato ao trabalho, tendo o cuidado de escolher flores de todas as cores, de todas as formas, de todos os perfumes e de todas as espécies possíveis.

   Colheu as flores que embelezam os jardins e outras que crescem naturalmente nos prados. Colheu as espécies que se escondem em regos e outras que desabrocham na superfície das águas. Colheu as flores que rastejam pelos muros e outras que atapetam as pradarias; flores modestas e flores soberbas, flores cintilantes e flores perfumadas… Colheu tamanha quantidade que não sabia onde pô-las. Tinha os braços carregados e tinha flores nos cabelos, à cintura, na boca!

   Quando já não conseguiu colher mais, os espíritos elevaram-no e transportaram-no de novo. E Néki deu por si no meio do círculo de pedras, no topo dos montes Oubi-Oubi.

   Sentiu a rajada de vento que o fustigara, e ouviu, pela última vez, a voz do Espírito mensageiro:

   — Volta à terra e leva ao teu povo o dom de Bayamé. Onde deixares cair as flores, elas criarão raízes. O vento de leste trará a chuva que fecundará a terra. De ocidente, virá o vento da Primavera que encherá as plantas de rebentos. No Verão, o vento do norte fará desabrochar todas estas flores. Quando chegar o Inverno, as flores desaparecerão. Mas deverás sossegar o teu povo: na Primavera, as flores voltarão para vossa alegria, e assim será na terra até ao fim dos tempos, porque Bayamé cumprirá a sua promessa.

   A voz calou-se. Néki apressou-se a descer a escadaria em pedra, apertando contra si todas as flores que permaneciam miraculosamente frescas.

   Quando chegou ao sopé da montanha, retomou o caminho que o havia conduzido até lá e, voltando as costas à cadeia de montanhas aureolada de nuvens, dirigiu-se rapidamente para a aldeia. Caminhou sem comer e sem beber durante dias: o perfume das flores bastava para o alimentar e lhe dar forças. Dormia algumas horas, de vez em quando, e era o suficiente.

   Por fim, entreviu a aldeia escondida no fundo do vale. E o coração apertou-lhe ao pensar que, na sua ausência, a população não teria respeitado a promessa feita.

   Viu as árvores que circundavam a aldeia, os pequenos jardins onde nenhuma flor desabrochava.

   Avançou a tremer e foi reconhecido por um rapazinho que se pôs a gritar:

   — Néki voltou! Néki voltou!

   E este grito propagou-se de cabana em cabana, veloz como o vento. Várias crianças correram até à clareira encantada para avisar os anciãos, que mantinham a guarda às três árvores.

   Mulheres, crianças e homens vieram ao encontro do caçador de cangurus. Os próprios anciãos deixaram a clareira para vir escutar a história do intrépido viajante.

   Néki observou a sua expressão e isso bastou-lhe para compreender que tinham mantido as suas promessas. Tinham o olhar límpido e encaravam-no de frente. Néki não disse uma só palavra mas ergueu bem alto o seu carregamento de flores. Todos exultaram.

   Sem lhe fazer qualquer pergunta, seguiram-no e observaram-no, como que sujeitos ao poder de um encantamento.

   Néki avançou lentamente e foi deixando cair as flores aqui e ali, uma após a outra.

   Uma flor caiu num arbusto que se cobriu imediatamente de botões dourados. Outra caiu num monte de terra dura que de imediato se encheu de mil corolas rosa. A seguinte deslizou entre um monte de pedras e as pedras ficaram submersas por milhares de campânulas cor do céu. Néki atirou algumas corolas para a água lodosa de um pântano, e várias centenas de nenúfares desabrocharam à superfície.

   Onde quer que caíssem, as flores criavam raiz e multiplicavam-se até mais não poder. Os pequenos jardins perto das cabanas animavam-se com mil cores cintilantes, tal como as árvores escuras que rodeavam a aldeia.

   Em pouco tempo, prados, bosques e cursos de água tornaram-se uma festa de cores e de perfumes.

   Então, vindo dos longínquos montes Oubi-Oubi, o vento de leste soprou. E como o Espírito mensageiro dissera, trouxe uma chuva benéfica que fecundou a terra.

   As cores das flores ficaram ainda mais brilhantes e o seu perfume mais penetrante.

   Depois, vieram as abelhas. Pousaram em todas as flores, sugando avidamente o néctar, procuraram buracos na corcha das árvores para aí colocar o seu delicado carregamento.

   Passados alguns dias, as crianças, deliciadas, puderam provar o mel e houve-o em abundância para toda a tribo.

   Néki foi levado em triunfo. Era o salvador do seu povo!

   Teve de contar dezenas e dezenas de vezes como se desenrolou a viagem e como os espíritos o tinham levado ao país do Grande Repouso, onde reina uma paz eterna.

   Mas quando chegou o Outono, as flores começaram a murchar e os aldeões caíram em desespero.

   As moas que tinham o hábito de enfeitar os cabelos com corolas multicolores, as mulheres que decoravam todos os dias o interior da cabana com grinaldas de flores, as mães que guardavam ciosamente nos potes o mel para toda a família e, sobretudo, para os mais pequenos, os velhos que retiravam do mel novas forças…, todos tremiam pensando ter ofendido Bayamé com algum pecado.

   Néki deixou-os refletir longamente sobre a sua conduta, porque pensava, sabiamente, que era muito bom que os homens se interrogassem sobre as suas ações. Por fim, disse-lhes:

   — O Espírito mensageiro prevenira-me deste desaparecimento das flores durante o Inverno. Da mesma forma que as folhas das árvores amarelam e caem, as flores também devem murchar e desaparecer, para viver de novo, depois de uma morte aparente. Esperai todos, com confiança, a Primavera!

   Olharam-no com desconfiança, tal como acontecera quando ele anunciou a partida para o país de Boullimah. Longa e difícil foi então a espera…

   Depois, com o bom tempo, voltaram as flores e as abelhas que pousavam de novo nos cálices.

   O povo, feliz, decidiu que Néki deveria tornar-se o chefe da aldeia. A sua sabedoria constituiu um exemplo para todos. Foi amado e honrado toda a vida e, depois de morrer, a sua recordação ficou na memória de todos. Tornou-se mesmo o herói de maravilhosas lendas.



Michel Langrognet et al. (org.)
Le chat botté et autres contes merveilleux
Paris, Le Livre de Paris, 1980

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