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Um simples caderno?






As rodas giravam mas enterravam-se cada vez mais fundo na areia, e o carro não saía do sítio. O motor acelerou e acabou por parar de vez.

   A pele muito escura de Mumo brilhava com o suor. Sa
ímos do carro. Os pés enterraram-se até aos tornozelos na areia escaldante. Todas as tentativas para empurrar o carro eram inúteis.

   — A que dist
ância estamos do Centro das Missões? — perguntou Willi.

   — Dois quil
ômetros, talvez três — respondeu Mumo.

   — Foi sorte o carro n
ão se ter avariado há duas horas atrás — pensou Willi em voz alta. — Eu vou buscar ajuda. Em que direção fica o Centro?

   Mumo estendeu o bra
ço numa direção qualquer.

   Eu s
ó via areia até perder de vista, e alguns espinheiros.

   —
É melhor irem os dois — disse eu. Tinha muito medo que Willi se perdesse naquela imensidão de areia.

   — Queres ficar a guardar o carro sozinha? — perguntou Mumo num tom duvidoso.

   — Guardar de quem? — perguntei-lhe a rir. Quem iria assaltar um carro em pleno deserto do Koroli?

   — H
á muitas pessoas, muitas tribos diferentes, todas muito pobres aqui, em North Horr — disse Mumo com ar sério.

   Sentei-me na areia e encostei-me contra a porta do carro. Pelo menos assim estava um pouco mais protegida do vento quente que me fustigava o bra
ço com minúsculos grãos de areia cortantes. Com os olhos, seguia os dois, que, afundados na areia e curvados para se protegerem do vento, se iam afastando, cada vez mais pequenos, até acabarem por se diluir no calor tremeluzente.

   Antes que tivesse tempo de me assustar com a solid
ão daquele ermo, os dois pontos distantes tornaram a aumentar de tamanho. Os homens já estariam de volta? Mas afinal não eram dois, não! Três, quatro, cinco pontos foram crescendo na minha direção. A ajuda que procurávamos estaria afinal tão perto?

   Levantei-me. Os olhos ardiam-me por causa da areia, do vento e do sol incandescente. Seria alguma assombra
ção?

   Os pontos transformaram-se em formas, e as formas, em crian
ças a correr. Crianças que corriam na minha direção e cada vez em maior número!

   Em pouco tempo vi-me rodeada por um bando de crian
ças nuas, semi-nuas, embrulhadas em trapos, crianças grandes e pequenas. Algumas traziam bebês às costas, outras arrastavam crianças mais pequenas pela mão. Todas de olhos encovados e corpos famintos. Nenhuma se acercou mais de cinco metros.

   Fixavam-me, espantadas e de boca aberta, sem um
único sorriso para a curiosa aparição que eu devia ser para elas.

   Mulheres adultas, com os panos das suas vestimentas ondulando ao vento, aproximavam-se, mais lentas do que as crian
ças. Também elas eram magras, algumas velhas, outras novas, mulheres grávidas, mulheres com bebês ao peito e de todos os tons de pele, desde castanho "café com leite" até preto escuro. Ficaram em silêncio atrás das crianças e olhavam-me também fixamente.

   "Mas que rico encontro!", pensei eu.

   Encostei-me ao jipe. A chapa quente do carro queimava-me a pele atrav
és da camisa. E assim ficamos a olhar fixamente uns para os outros, calados e imóveis: mulher branca olha para pretos e pretos olham para mulher branca.

   — Ol
á! — disse eu, quando não aguentei mais.

   Ningu
ém respondeu. Ninguém se mexeu um milímetro sequer, ou mostrou uma cara simpática.

   A ideia de que os dois homens poderiam demorar horas at
é regressarem com ajuda encheu-me de medo. Será que tinha de ficar horas a olhar para os nativos e a ser observada fixamente por eles? Não ia aguentar.

   Fiz uma nova tentativa. Com cuidado, acocorei-me, como os africanos fazem. Os meus olhos estavam agora ao n
ível dos das crianças que se encontravam mais perto de mim. Comecei a cantar: "Todos os patinhos sabem bem nadar…" procurando olhá-las nos olhos.

   De repente, as mulheres recuaram. Ocorreu-me a ideia absurda de que teriam pensado que eu queria enfeiti
çar as crianças. Mas um dos meninos aproximou-se e estendeu o bracinho magro na minha direção. Eu segurei-o, com cuidado, e comecei a contar os dedos: "Este é o mindinho…" A criança recolheu o braço, assustada.

   Da
última fila, alguém empurrava e furava para passar. Uma menina com cerca de doze anos conseguiu por fim chegar à frente e perguntou-me timidamente, em inglês, se estava a cantar canções infantis. Eu acenei que sim, aliviada, e perguntei se podíamos conversar um pouco em inglês. Ela acenou igualmente. Em seguida virou-se para as mulheres e disse-lhes algo em Suahili1 que, aos meus ouvidos, soou como se estivesse a acalmá-las.

   Isto encorajou-me a fazer-lhe mais perguntas. Se ia
à escola das Missões? Acenou que sim, com orgulho. Depois, perguntou-me de onde vinha e pareceu traduzir a minha resposta às mulheres.

   O gelo estava quebrado. As mulheres murmuraram alguma coisa e, de repente, vi-me cercada por elas.

   — H
á muita água no teu país? — quis saber a menina. — E árvores verdes?

   Acenei que sim e comecei a falar. Falei das nossas montanhas e dos lagos, das nossas crian
ças, e de como todas eram obrigadas a ir à escola. A menina traduzia, palavra a palavra, e as crianças e as mães estavam espantadas e incrédulas.

   Com os dedos, desenhei na areia montanhas, vacas,
árvores, e a forma das nossas casas, mas o vento forte depressa apagava os meus desenhos.

   Levantei-me e meti o bra
ço pela janela do carro. Sabia que tinha um caderno e um marcador na minha carteira. Tirei as duas coisas mas tive de as segurar no ar, acima da cabeça. Os africanos, grandes e pequenos tinham-se, entretanto, acercado de tal forma contra mim, que mal me podia mexer.

   Depois de ter pedido um pouco de espa
ço, abri o caderno em cima da capota escaldante do carro. Mais uma vez, desenhei montanhas, lagos, árvores, vacas e casas.

   As crian
ças treparam para cima do carro, empurravam-me, penduravam-se em mim. Todas queriam ver e tocar no papel branco e macio.

   Deitada de barriga para baixo no tejadilho do carro, a minha int
érprete via tudo do alto, fazia-me perguntas e pedia-me para desenhar as respostas e levantar o caderno, para todos poderem ver aquelas coisas maravilhosas e inacreditáveis.

   —
És professora? Vens para aqui? Vais ficar aqui, conosco? Trouxeste um caderno desses para cada um de nós?

   As perguntas choviam de todos os lados. Envergonhada, tive de responder n
ão a todas.

   Um barulho ao longe fez-me erguer a cabe
ça. Da direção em que Mumo e Willi haviam desaparecido aproximava-se um jipe. A nossa ajuda estava a chegar.

   Dei o caderno
à menina, que me olhou radiante com os seus grandes olhos, mas ainda antes de ter podido dizer thank you, cerca de trinta ou quarenta pares de mãos estenderam-se e tentavam apanhá-lo. A preciosidade acabou por ser conquistada por um rapazinho.

   Protestei com veem
ência mas ele não ligou às minhas palavras. Subiu para um monte de areia, chamou as crianças com o braço e com os dedos ágeis tirou os agrafos do caderno.

   Como rei que distribu
ía as riquezas do seu reino, distribuiu ele as folhas brancas e lisas.

   N
ão estava à espera disto. Emudecida, compreendi. Estava a zelar para que todos tivessem uma parte do tesouro. Sorria, orgulhoso, com o marcador enfiado no cabelo encarapinhado.

   Como o caderno era grosso, quando o jipe chegou, j
á quase todas as crianças tinham uma folha na mão.

   — Est
ás bem? — perguntou Willi, preocupado, ao ver-me no meio daquela multidão. Limitei-me a acenar com a cabeça.

   Enquanto os homens prendiam o cabo no nosso carro, atei rapidamente o meu len
ço à volta da cabeça da minha pequena intérprete.

   — Vais voltar? — perguntou-me, no momento em que eu entrava para o carro.

   — Vamos tentar — prometi-lhe.

   Durante a viagem at
é North Horr — eram mesmo só dois quilômetros — contei a Willi a minha aventura.

   — Nem quero pensar no meu cesto de pap
éis lá de casa — terminei.

   — Vais ver que havemos de arranjar forma de lhes enviar cadernos e l
ápis. — disse Willi para me consolar.

   E assim fizemos.

  
Brigitte Meissel
Jutta Modler (org.)
Br
ücken Bauen
Wien, Herder, 1987

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