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A Bolsa Amarela - Capítulo VI






O ALMOÇO
O Terrível ficou danado quando viu que estava preso. Desatou a brigar com as minhas vontades, com a Guarda-Chuva, com o pessoal todo. Quanto mais a gente explicava que estava querendo salvar a vida dele, mais danado ele ficava; queria bicar todo mundo, pulava de um lado pra outro, a bolsa dava cada pinote que só vendo. Fui ficando apavorada: daqui a pouco iam descobrir que eu carregava muita coisa esquisita dentro da bolsa amarela. E então eu pedía pela janela:
— Afonso, vê se controla a situação.
Mas quem diz que ele conseguia? E aí chegou o sábado e a minha irmã falou:
— Vai te vestir, Raquel, tem almoço na casa da tia Brunilda. Bacalhoada.
Eu adoro comer, só tem um prato que eu não aguento: bacalhau. Mas como o pessoal daqui de casa tá sempre paparicando a tia Brunilda, eu sabia muito bem que na hora de dizer: “Tia Brunilda, a senhora se importa se eu só como a sobremesa?”, eles iam me olhar daquele jeito e eu ia ter que acabar comendo. Então já fui ficando meio aflita.
Calça comprida eu só tenho duas; uma boa, outra ruim; enquanto uma lava, uso a outra. A boa estava lavando, e ainda mais essa, eu pensei.
Quando fui me olhar no espelho dei de cara com uma espinha. Bem na ponta do nariz. Espremi, começou a sair uma aguinha lá de dentro; vi que tinha feito uma besteira.
A campainha tocou. Abri a porta e esbarrei nos donos do Afonso. Falaram que andavam atrás de um galo que fugiu do galinheiro; disseram que não sei quem tinha visto um galo na nossa casa, pediram licença pra entrar e procurar. Fiquei gelada. Enquanto eles batiam papo com a minha mãe, eu corri e avisei o Afonso pra não deixar o Terrível fazer barulho. Cochichei pro fecho:
— Se quiserem te abrir, você enguiça, viu?
Todo mundo ajudou a procurar. Passaram três vezes pertinho da bolsa amarela, mas ninguém desconfiou de nada. Foram embora. E, na saída, um me disse:
— Você fica de olho pra ver se descobre o galo. Se descobrir, avisa logo, tá?
— Tá. (“Espera sentado que em pé cansa.”) — Fechei a porta. Meu nariz começou a doer. Olhei no espelho e anunciei: — Não posso ir à bacalhoada: meu nariz inchou, tá doendo demais.
Mandaram eu botar mercurocromo e acabar de me vestir.
Quando eu abri a porta do armarinho do banheiro, um tal de mercúrio, que estava na beira da prateleira, sem tampa nem nada, desabou em cima de mim. Só faltei morrer de raiva. Já estava quase pronta pra sair. Tinha baixado a bainha da calça, passei ela a ferro, peguei uma tinta que a minha irmã pinta o olho e pintei uma flor na minha blusa pra ver se tapava uma mancha antiga; agora tava tudo respingado, tudo vermelho, blusa, calça, flor, até o meu sapato levou um banho de mercurocromo. Vi que o dia ia ser fogo. Botei aquele vestido xadrez que eu acho o fim; meu nariz tava o fim; eu toda estava o fim; saí de casa achando a minha vida o fim.
Mas na porta eu parei: E se alguém abre a bolsa amarela enquanto eu tô fora? e se descobrem o Afonso lá dentro? e se o Terrível foge pra ir brigar? e se as minhas vontades saem também — crescendo, engordando, tomando conta do quarto, de tudo?” Me apavorei. O jeito era não arriscar, era levar a bolsa comigo. Levei.
Quando o pessoal me viu carregando aquele peso, eles disseram que eu tava maluca: eu não podia ir pro almoço levando uma bolsa enorme, ridícula, de gente grande, e não sei que mais. Aí eu fiquei ainda mais aflita. Comecei a inventar uma porção de coisas. Eu não queria inventar nada; o que eu queria mesmo era poder dizer: “Eu preciso levar a bolsa amarela. Eu guardo aqui dentro umas coisas muito importantes. Umas coisas que eu ainda não tô podendo nem querendo mostrar pra ninguém.” Pronto. Que legal eu falando assim e ninguém perguntando: “Mas por quê? Que coisas são essas? Como é que essa bolsa abre? O fecho tá enguiçado?” Nem mandando: “Abre! Fala! Diz!”
Então eu disse tudo inventado. Falei que no dia seguinte ia ter uma prova de matemática um bocado difícil e que eu estava carregando tudo quanto é livro e caderno pra depois do almoço estudar. (Enquanto eu falava, o Afonso segurava o Terrível pra ele não gritar nem pular.) Pelo jeito, o pessoal acreditou no que eu disse porque no fim eles falaram:
— Então, vamos de uma vez que a gente já tá atrasada.
E aí a gente, foi.
Fui fingindo o tempo todo que a bolsa amarela não pesava tanto assim. Mas pra falar a verdade ela pesava mais que um elefante. Cheguei na casa da tia Brunilda botando a alma pela boca.
Eu era a única criança no almoço. Tia Brunilda tem um filho de quatorze anos, o Alberto, mas há muito tempo que ele já resolveu que não é mais criança e pronto. Tudo que ele resolve a tia Brunilda topa. É o cara mais mimado que eu já vi até hoje.
Desabei numa poltrona. A tia Brunilda disse logo:
— Vem. cá, Raquelzinha. Senta aqui nessa cadeirinha.
— Essa poltrona é tão gostosa, tia Brunilda.
— Aqui você fica muito mais engraçadinha. Vem.
Todo mundo me olhou. Não tive remédio, fui.
Botei a bolsa amarela atrás da cadeira pra ver se ninguém prestava atenção nela.
— Você tá ficando uma mocinha, hem?
— Quer um amendoinzinho?
— O que é que você arrumou aí no narizinho?
Eu ia respondendo e pensando: será que eles acham que falando comigo do mesmo jeito que eles falam um com o outro eu não vou entender? Por que será que eles botam inho em tudo e falam com essa voz meio bobalhona, voz de criancinha que nem eles dizem?
Quando eu ia comer o amendoim, minha irmã falou:
— Raquel, canta pro tio Júlio e pra tia Brunilda aquele versinho inglês que você aprendeu na escola. É tão bonitinho.
Quase caí pra trás. Quando eu comecei a cantar o tal verso lá em casa, o pessoal mandou eu ficar quieta porque eu estava enchendo a paciência de todo mundo. Agora ficavam pedindo:
— Canta, filhinha, canta.
Experimentei fazer voz de criancinha:
Não me lembro direito.
— Canta assim mesmo.
Eu tava com vontade de tudo, menos de cantar. Fiquei tirando a casca de um amendoim pra ver se eles batiam papo e esqueciam de mim. Mas não esqueceram. Então eu cantei. Saiu ruim toda vida. Mas foi só eu acabar e eles disseram:
— Agora dança aquela dancinha que outro dia você dançou lá em casa.
Ficaram todos me olhando. Esperando. Olhei meu pai pra ver se ele me salvava. Mas ele me mandou recado de olho dizendo: “dança logo, menina!”.
Puxa vida, eu tinha dançado outro dia porque eu estava contente, com vontade de dançar. Mas agora eu queria ficar quieta comendo amendoim, será que ninguém ia dizer: “deixa: ela não tá com vontade”? Esperei.
Ninguém disse. Dancei. Pensando o tempo todo que eles não iam topar dançar prós outros sem vontade nenhuma. Eu suava que só vendo. Não era da dança, não. Suava de nervoso: será que eu ainda ia ter que fazer muita graça?
Quando eu acabei, eles bateram palmas e o tio Júlio me disse:
— Eu soube que você andou escrevendo um romancinho.
— Conta como era a história — o meu irmão falou. Fez ar de riso e piscou meio disfarçado pro tio Júlio.
Será que eles pensam que a gente não percebe essas piscadelas de olho? Tava na cara que o meu irmão queria ver o tio Júlio e a tia Brunilda rindo da história do Rei.
Foi nessa hora que eu ouvi um soluço dentro da bolsa amarela. Depois outro e mais outro. Olhei disfarçado. Cada vez que soluçavam lá dentro, a bolsa dava um pulinho. Mais que depressa sumi pro jardim, dizendo que depois eu contava; agora ia estudar.
Abri a bolsa. Era o Terrível, coitado. Tanto seguraram o bico dele pra não abrir, tanto seguraram pata, asa e pé pra não mexer, que ele resolveu ter uma crise de soluço: soluço é o tipo da coisa que ninguém segura. Soluçou meia hora. Aí cansou e dormiu. Ainda bem, porque nessa hora a tia Brunilda gritou:
— Vem, Raquelzinha, vamos pra mesa!
Botei a bolsa amarela debaixo da mesa bem junto do meu pé. Tudo tava calmo lá dentro. Minha aflição foi sumindo. Trouxeram a travessa de bacalhoada e botaram bem na minha frente. Minha aflição voltou correndo: a bacalhoada soltava mais fumaça que qualquer chaminé, e a fumaceira passava rentinho do meu nariz.
Sempre que o pessoal grande vê carro e fábrica soltando fumaça eles dizem: “puxa, que poluição!”, mas pra mim a fumaça daquela bacalhoada era a pior poluição que eu já vi até hoje.
Encheram o meu prato. Tomei coragem e falei:
— Tia Brunilda, a senhora vai me desculpar, mas se tem comida que eu não topo é bacalhau.
— Bobagem da Raquel, ela gosta sim — o meu pai falou.
Olhei pra minha mãe e ela fez cara de quem diz; “não cria caso, sim, Raquel?”. Meu irmão tava do meu lado e disse; “come”. Minha irmã tava do outro lado e me deu uma cutucada pra comer. Vi que ia dar altercação. Então mandei recado pro estômago aguentar firme, e comecei a mastigar devagar. Foi aí que o Alberto se abaixou pra pegar o guardanapo e gritou:
— Ih, pessoal, vocês já viram o tamanho da bolsa da Raquel?
Antes de continuar contando o que aconteceu, é bom explicar que o Alberto adora implicar comigo. A gente se vê pouco, mas ele sempre arranja um jeito de me encher a paciência.
— O que é que você carrega aí dentro, hem, Raquel?
Todo mundo resolveu olhar a bolsa amarela. Respondi, já meio afobada:
— Nada. Não carrego nada, viu?
Tia Brunilda falou:
— Eu usava essa bolsa pra fazer compras. Mas ela é muito grande pra você, Raquelzinha.
A minha irmã disse com a cara mais limpa do mundo:
— Pois é. Mas a Raquel cismou que queria a bolsa…
E aí o Alberto falou:
— Vou espiar essa bolsa pra ver o que é que ela tem. — Mas disse aquilo cantando. Com a música de “Vamos passear no bosque, enquanto seu lobo não vem”.
Meu coração disparou. Tudo que o Alberto dizia que ia fazer, fazia mesmo; era só ele cismar, que me arrancava a bolsa à força. Então, pra ver se todo mundo esquecia o assunto e me deixava em paz, eu falei:
— Ah, tio Júlio! o senhor queria saber como era o meu romance, não é? — E comecei a contar.
O Alberto cantarolou mais alto:
— Vou espiar essa bolsa, pra ver o que é que ela tem. — Se levantou da mesa. Todos ficaram olhando pra ele. Eu continuei contando a história. Ele veio pra perto de mim. —Vou espiar essa bolsa, pra ver o que é que ela tem. Vou espiar essa bolsa, pra ver o que é que ela tem. Estendia as mãos assim que nem garra de monstrinho, e fazia cada careta horrível.
O pessoal desatou a rir. Principalmente a tia Brunilda. Ria de chorar. Parei de contar, me levantei e botei a bolsa atrás de mim. Aí o Alberto começou a me fazer cócegas pra ver se eu saía da frente da bolsa. Pra quê! Fiquei na maior chateação:
— Tia Brunilda, diz pro Alberto parar com isso, sim?
Ela ria.
— Por favor, tia Brunilda!
— Vou espiar essa bolsa, pra ver o que é que ela tem. — E toca a fazer cócegas.
Fui pra perto da tia Brunilda:
— A senhora acha engraçado tudo que o Alberto faz, não é? Ele pode fazer a maior besteira do mundo que a senhora acha graça.
Minha irmã fechou a cara:
— Não fala assim com a tia Brunilda.
— Ela não tá ligando a mínima o que o Alberto faz comigo, por que é que eu vou ligar pra ela?
— Raquel!
— Porque vocês tão sempre ligando, é?…
— Não precisa dizer mais nada, Raquel.
— Vou espiar essa bolsa…
— Porque vocês tão sempre paparicando ela, é?
— Raquel, eu disse chega.
— …pra ver o que é que ela tem.
— Porque ela é rica, é?
— Eu disse che-ga!
— Vou espiar essa bolsa…
— Porque ela tá sempre dando presente, é?
— Chega!!!
Mas aconteceu uma coisa esquisita: eu não podia parar de falar. E quanto mais cócegas o Alberto me fazia, mais alto eu ia falando. Minha irmã me torceu um beliscão tão grande, que eu gritei. O Alberto deu um bote:
— Peguei! — e puxou a bolsa. Mas eu não larguei, e puxei ela pro meu lado. Ele puxou muito mais. E enquanto puxava fazia careta, fazia graça, e não é que o pessoal continuava rindo? Ele puxava, eu puxava, a bolsa ia toda pro lado dele, me escapava da mão; ele puxava, puxava, ela foi escapando, escapou. — Ah!! agora a gente vai ver o que a Raquel guarda aqui dentro.
Eu quis falar. Trancou tudo na garganta. Me lembrei do fecho. Pensei com toda a força pra ver se ele ouvia: “Enguiça!”
O Alberto sentou no chão:
— Como é? Esse fecho não abre?
O pessoal continuava rindo. Puxa vida, por que é que eu não tinha nascido Alberto em vez de Raquel?
Pronto! mal acabei de pensar aquilo e a vontade de ter nascido garoto deu uma engordada tão grande que acordou o Terrível, empurrou o Afonso, sei lá o que é que aconteceu direito, só sei que a bolsa desatou a dar pinote no chão.
— Tem coisa viva aí dentro! — o Alberto gritou. E todo mundo arregalou cada olho assim.
Mamãe levantou da mesa e falou com voz firme:
— Bom, Raquel, agora vamos ver mesmo o que é que tem aí dentro.
— O fecho não abre — minha irmã falou.
— Mas por quê? Ele não tá trancado, não tem chave…
— Espera aí, deixa eu experimentar.
— Puxa assim, puxa assim pra ver se ele abre.
E de repente todo mundo tava lutando pra abrir a minha bolsa. Minha. Minha. Minha! E eu ali sem poder fazer nada. Ah, se eu fosse gente grande! Quem é que ia abrir minha bolsa assim à força se eu fosse gente grande? quem? E aí a minha vontade de ser grande desatou também a engordar. E quanto mais eu ficava grudada no chão sem poder fazer nada, mais as minhas vontades iam engordando, e a bolsa crescendo, crescendo, já nem pulava mais, só crescia, crescia, crescia.
O pessoal tava de boca aberta:
— Parece um balão!
Esqueceram até de lutar com o fecho, esqueceram tudo. Só olhando a bolsa crescer. Aqui pra nós eu também estava um bocado espantada; nunca tinha visto as minhas vontades crescendo tanto assim.
A turma da bolsa amarela começou a gemer. Vi que eles não tavam mais aguentando a espremeção lá dentro. A Guarda-Chuva pediu socorro. Mas pedir socorro na língua da Guarda-Chuva leva um tempão, e o pessoal ficou ainda mais espantado quando ouviu aquela língua esquisita.
— Afinal de contas, Raquel, o que é que você carrega aí dentro?!
— Fala, menina!
Cada um dizia que o barulho era uma coisa. Começaram outra vez a querer abrir o fecho. Mas o fecho — que legal que ele foi! — aguentou firme a força que todo mundo fez pra ele abrir.
— Não adianta, ele não abre.
— Deixa, espera, daqui a pouco ele não aguenta mais e rebenta.
Largaram o fecho. Eu vi que a fazenda da bolsa já tinha esticado tudo que podia. O Alberto gritou:
— Olha só, vai rebentar, vai rebentar!
Ninguém falou mais nada. Só ficaram esperando o fecho rebentar. Que nem eu. E a turma da bolsa também ficou quieta. Esperando. Só esperando. Esperando.
De repente, deu um estouro danado. Estouro no duro. Parecia até que tinha rebentado uma bomba dentro da bolsa amarela. Todo mundo pulou pra trás. E aí deu outro estouro. Ainda maior.
Fiuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu… A gente começou a ouvir um barulho de balão esvaziando. A bolsa foi emagrecendo, emagrecendo, mas não parava de mexer — a turma lá dentro estava numa agitação incrível. A bolsa emagreceu até ficar do tamanho que era antes; o Alberto então pegou ela pra abrir. E o fecho tava tão zonzo com os estouros que nem se lembrou mais de enguiçar: abriu!
O Afonso pulou pra fora. Mascarado. Agarrando o Terrível com força. O Terrível tava um bocado esquisito: bico, asa, pata, tava tudo amarrado com a correntinha da Guarda-Chuva. O Afonso berrou:
— Senhoras, senhores, querido público! Sou um galo mágico. Aprendi uma porção de mágicas com um antigo dono mágico. A Raquel hoje me trouxe a essa distinta casa só pra divertir vocês e fazer a mágica da bolsa que engorda e desengorda. Tá feita. Agora posso ir embora. Vou noutra casa fazer a mágica do galo preso com uma corrente. Tchau! — E saiu mais que depressa, arrastando o Terrível.
O pessoal espiou dentro da bolsa. Estavam todos quietos: a Guarda-Chuva, o Alfinete, os nomes, os retratos. Espiei também. Lá bem no fundo vi uns restos de vontade, assim que nem resto de balão quando estoura. Mas só eu que vi, mais ninguém.
— Onde é que você encontrou esse galo, Raquel?
Fiz cara de quem tá achando aquilo tudo a coisa mais normal do mundo;
— Por aí. Mágica bacana, não é?
Fiquei esperando o Afonso na portaria. Louca pra entender direito o que é que tinha acontecido. Ele demorou muito, e quando chegou tava um bocado cansado de tanto segurar o Terrível pra ele não rebentar a corrente e fugir. Prendeu o Terrível na bolsa. Aí respirou aliviado e me piscou o olho:
— Você hoje deu uma sorte danada, hem?
— Conta de uma vez o que é que aconteceu, Afonso! Não entendi nada.
— Ele não te contou?
— Quem?
— O Alfinete de Fralda. Foi ele que salvou a situação.
— No duro? — Peguei o Alfinete no bolso bebê. Só aí é que eu vi que ele tava todo torto. — Que foi isso?
A pontinha dele foi riscando a palma da minha mão.
— Bom, tuas vontades foram enchendo que nem balão. A gente ficou tão espremido, que começou a sufocar.
— Isso eu sei, mas e daí?
— Você lembra quando eu te contei a minha história!
— Lembro.
— Pois é: todo mundo vivia achando que eu não servia pra nada, mas eu sempre achei que servia sim. Lembra?
— Lembro, Alfinete, lembro, mas e daí?
— Pois é: eu sirvo sim. Viu?
— Mas conta de uma vez o que é que você fez.
— Espetei tuas vontades com toda a força. Pra ver se elas estouravam que nem balão. E elas estouraram mesmo. Mas puxa, vou te contar! como elas são duras, bem? Tive que fazer tanta força pra espetar as duas que acabei entortando todo. Me desentorta?
— E a ideia da mágica? Também foi sua?
— Foi minha! — o Afonso gritou. — Você gostou?
— Se gostei.
— Eu também gostei demais. Fiquei até achando que já que eu achei uma idéia, agora sou capaz de achar a outra.
— Que outra?
— A ideia que eu tô precisando achar pra lutar por ela… Ué! só agora que eu tô reparando: a Guarda-Chuva continua desmaiada.
— Ela tá desmaiada?
— Desmaiou de susto com os estouros.
— Me desentorta, Raquel?
— Ah, Afonso, faz alguma coisa pra ela des-desmaiar, faz.
— Mas ela tá com uma cara tão satisfeita. Olha só. Ela deve estar sonhando bonito mesmo.
Era verdade. A Guarda-Chuva estava com uma cara genial. A gente ficou até parada, olhando pra ela. De repente, o Afonso resolveu:
— Sabe de uma coisa? Eu vou deixar a Guarda-Chuva desmaiada até amanhã de manhã.
— Pra ela continuar sonhando bonito?
— Não. Porque, se ela acorda, ela começa a contar o desmaio e fica falando a noite inteira.
— Me desentorta?
— Desentorto.
— Então desentorta.
Desentortei. E aí o Alfinete de Fralda voltou pro bolso dele na maior alegria: tinha mostrado que servia pra muita coisa sim.


Continua...
Lygia Bojunga
A bolsa amarela
Rio de Janeiro, Casa Lygia Bojunga Lda., 2004

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