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A Bolsa Amarela - Capítulo V







A VOLTA DA ESCOLA
Saí da escola apavorada com o peso da bolsa amarela.Tinha Afonso, tinha vontade, tinha nome, tinha livro, tinha caderno, tinha tudo lá dentro. E tinha também o seguinte:
A professora mandou a gente fazer uma redação. Assunto: “O presente que eu queria ganhar,” Escrevi que eu queria um guarda-chuva (já cansei de pedir um lá em casa). Comecei a inventar o guarda-chuva que ele ia ser e as coisas que aconteciam com ele. Quando eu tava no melhor da história, tocou a campainha, a aula acabou, a redação não estava pronta, eu quis escrever o resto da história, a professora não deixou, recolheu o caderno, a turma foi saindo, a história ficou sem fim, e aí pronto: a vontade de continuar escrevendo apertou, desatou a engordar, engordou tanto que eu mal aguentava carregar a bolsa amarela.
Andei um quarteirão inteiro. Com Afonso espiando a vida pela janela (achei que devia ser muito ruim a gente viver sem espiar pra fora. Então cortei uma janela na fazenda da bolsa amarela. Bem juntinho do fecho. Pra cara do Afonso ficar parecendo enfeite de fecho em vez de cara de galo fugido).
— Puxa, que peso! — E tive que parar pra descansar.
O Afonso botou a máscara e saiu da bolsa:
— Enquanto você descansa eu vou dar uma voltinha por aí. Quem sabe eu encontro uma ideia? — (Ele continuava louco pra lutar pela tal ideia que ele ainda tinha que achar.) Voltou dez minutos depois.
— Achou?
— Não. Mas achei um guarda-chuva. Estava perdido. Fiquei muito contente porque eu andava querendo te dar um presente. Toma.
O Afonso tinha pegado uma mania: era só não ter ninguém reparando, que ele enfiava a cabeça na janela e ficava batendo papo comigo. Mal ele me deu o guarda-chuva, pulou pra bolsa, botou a cabeça pra fora e começou a me contar tudo que o guarda-chuva tinha contado pra ele.
Na hora do guarda-chuva nascer, quer dizer, na hora que ele foi feito, o homem lá da fábrica — que era um cara muito legal e que gostava de ver as coisas gostando do que elas tinham nascido — perguntou:
— Você quer ser guarda-chuva homem ou mulher?
E ele respondeu: mulher.
O homem então fez um guarda-chuva menor que guarda-chuva homem. E usou uma seda cor-de-rosa toda cheia de flor. O cabo ele não fez reto não: disse que guarda-chuva mulher tinha que ter curva. E pendurou no cabo uma correntinha que às vezes guarda-chuva homem não gosta muito de usar. Fui andando e pensando que eu também queria ter escolhido nascer mulher: a vontade de ser garoto sumia e a bolsa amarela ficava muito mais leve de carregar.
Quando a Guarda-Chuva viu que o homem estava fazendo o cabo comprido, pediu:
— Ah, me deixa pequena! Quero ser pequena a vida toda.
O homem se espantou:
— E se mais tarde você cismar de crescer?
— Não sei pra que: ser pequena é uma curtição.
Mas ele ficou cismado:
— Às vezes a gente quer muito uma coisa e então acha que vai querer a vida toda. Mas aí o tempo passa. E o tempo é o tipo do sujeito que adora mudar tudo. Um dia ele muda você e pronto: você enjoa de ser pequena e vai querer crescer.
— Será?
— É bem capaz.
A Guarda-Chuva ficou pensando. Pensou bastante e depois resolveu:
— Então tá bom, me faz pequena. Mas bota dentro de mim o jeito de ser grande.
E o homem então fez a Guarda-Chuva do tipo que estica e fica grande se a gente puxa o cabo com força.
Parei e olhei bem pra cara da Guarda-Chuva. Ela era uma graça; e era coisa boa, bem feita, parecia até que tinha sido guarda-chuva da tia Brunilda.
— Muito obrigada, viu, Afonso? Eu pensei que só ia ter uma guarda-chuva assim no dia que eu fosse grande.
— Você ficou mesmo contente, Raquel?
— Contentíssima. — E aí virei pra Guarda-Chuva e perguntei: — Por que é que você não queria ser grande, hem?
O Afonso foi logo respondendo:
— Porque ela adorava brincar, e gente grande tem mania de achar que porque é grande não pode mais brincar. Às vezes ela ficava louca pra experimentar crescer; só pra ver se era mesmo verdade: se quando a gente crescia a vontade de brincar sumia. Mas ela tinha medo de arriscar. Até que um dia tomou coragem e experimentou. E sabe que ela curtiu demais?
— Claro que tinha que curtir! Quando a gente é grande pode tudo, resolve tudo.
— Nada disso. Ela curtiu porque viu que uma coisa não tinha nada que ver com a outra: ela podia muito bem ser grande e ela podia muito bem continuar brincando. E aí ela achou que a melhor brincadeira do mundo era toda hora passar de pequena pra grande, de grande pra pequena, de pequena pra tlá!!! estalou, enguiçou, não passou pra mais nada.
— É mesmo? — perguntei pra ela.
— É, sim.
— Não tô falando com você, Afonso. Deixa ela responder.
— Mas é que não adianta você perguntar pra ela.
— Por quê?
— Nem ela entende o que você diz, nem você vai entender o que ela fala.
— Claro que entendo.
— Não entende.
— Entendo! — E perguntei outra vez pra Guarda-Chuva: — É mesmo verdade que você enguiçou?
Ela ficou quieta.
— Tô dizendo, não adianta perguntar: a língua dela é muito complicada, só galo que entende.
— Quer fazer o favor de ficar quieto? — Dei um apertão na Guarda-Chuva e falei: — Responde! — Mas ela não respondeu coisa nenhuma. Apertei com mais força. — Responde, sim?! — Nada. Apertei ainda mais. Aí a Guarda-Chuva disse:
— Bzzzzzzzzzzzzzzzzzzztctctctctctctctc fc*******drrrrrrrrrrrrrrrrrdtdt)3670876iuiuiuiuiuiuiuuuuuuuuugdtgdtgdtgdtzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzuxzyxyxyxyxy,,,,,,,,,,,,atatatatatatatatatatatatatatatatatatatatatataaaa………..tá? bzzzzzzzzzzzzzzzzzz.
Tomei o maior susto. O Afonso desatou a rir:
— Não te disse que a língua dela era complicada?
— O que é que ela falou?
— Ai.
— Ai?
— É.
— Tudo aquilo só pra dizer ai?
— É.
— Não pode ser.
— Mas é. Ela fala uma língua um bocado comprida.
Passei de contentíssima pra contente só: nunca ia poder bater papo com a Guarda-Chuva; tudo que ela dizia o Afonso ia ter que traduzir. Suspirei:
— Bom, mas então continua. O que é que aconteceu depois que ela enguiçou?
— Pois aí é que está: na hora que ela enguiçou, a história dela também enguiçou.
— Você quer dizer que a história dela não tem fim?
— É.
Passei de contente pra chateada.
— Ah, que que há Afonso! Toda história tem que acabar, não pode ficar assim no ar.
— Mas a dela ficou, o que é que eu posso fazer?
— Mas a fala dela não enguiçou.
— Não.
— Pois então por que é que ela não conta o que é que aconteceu depois?
— Não foi a fala que enguiçou, foi a história. Enguiçou junto com o estalo. Só quando o estalo desestalar é que a história desestala também, quer dizer, continua até o fim.
A gente foi andando. Aí eu falei: — Pergunta se ela tem nome.
— Já perguntei.
— Tem?
— Tinha: enguiçou junto com o estalo.
A chateação aumentou. Foi nessa hora que eu resolvi abrir a Guarda-Chuva. Empurrei, empurrei a mola, Mas não adiantava: a Guarda-Chuva abria um pouquinho e parava no meio do caminho.
— O que é que tá acontecendo, Afonso?
— Desde o estalo que ela não abre mais. Aí eu passei pra superchateada.
— Mas Afonso, o que é que eu vou fazer com uiii.i guarda-chuva que não tem nome, não tem fim de história, não abre, não funciona?!
Guarda aqui na bolsa, ela é tão bonitinha.
Bonitinha era. Muito. Tão bonitinha que eu acabei pensando: “Bom, paciência. Em vez dela servir de guarda-chuva, agora serve pra gente gostar de olhar.” E então enfiei ela no bolso magro e comprido. Calhou certinho. Ela logo espichou o pescoço pra ficar olhando o Afonso. Ele virou a cabeça, olhou pra ela e… não sei não… mas o jeito que eles se olharam foi um jeito assim… sei lá… um jeito que um dia vai dar casamento.
A bolsa amarela ainda ficou mais pesada. Tive que fazer uma força danada pra pendurar ela no ombro.
Mal eu tinha andado um pouco, o Afonso berrou:
— Olha lá o Terrível! Vamos falar com ele, Raquel! — Ficou na maior agitação. — Você lembra de uma galinha gorda, toda branca, que morava lá no galinheiro?
— Sei.
— O Terrível é filho dela.
— Ele se chama mesmo Terrível?
— Chama.
— Que nome.
— E que ele é galo de briga.
— Ah é?
— Na primeira vez que eu fugi, eu fui correndo ver o Terrível lutar. Ele era terrível mesmo, ganhava ludo quanto é briga.
— Mas no tempo que eu inventei o galinheiro ele ainda estava lá?
— Não. Você não lembra que a galinha gorda vivia morrendo de saudade de um filho que tinha ido embora?
— E mesmo!
— Era o Terrível. Desde pequenininho que resolveram que ele ia ser galo de briga, sabe? do mesmo jeito que resolveram que eu ia ser galo-tomador-de-conta-de-galinha. Você sabe como é esse pessoal, querem resolver tudo pra gente. E aí começaram a treinar o Terrível. Botaram na cabeça dele que ele tinha que ganhar de todo mundo. Sempre. Disseram até, não sei se é verdade, é capaz de ser invenção, que costuraram o resto do pensamento dele com uma linha bem forte. Pra não rebentar. E pra ele só pensar: “eu tenho que ganhar de todo mundo”, e mais nada.
— Puxa! E ele ficou toda vida ganhando?
— Não sei. Depois que eu voltei pro galinheiro não tive mais notícias dele. — Pulou fora da bolsa e saiu correndo.
O primo do Afonso era pequeno, de pescoço pelado, não parava de sacudir a cabeça, e tinha um jeito tão nervoso que dava até aflição. Estava jogando dados. Sozinho. Jogava os dados no chão, via quantos pontos tinha feito, depois pulava pro outro lado e jogava outra vez — fingindo que ele era dois. Fiquei louca pra saber se ele tava ganhando ou perdendo dele mesmo. Ia até perguntar, mas o Afonso berrou;
— Meu primo, que saudade!
O Terrível tomou um bruto susto. Ficou todo duro (que nem a gente fica quando acha que está em perigo). Em vez de abraçar o Afonso, ele falou:
— Aposto dez cruzeiros* em mim numa briga com você. — E já pegou jeito de briga.



(NA: * Na revisão do livro, feita agora, marcando a passagem de A Bolsa Amarela para sua nova editora Casa Lygia Bojunga, o texto se manteve fiel à sua primeira publicação.)



Aí foi o Afonso que se assustou. Riu sem jeito:
— Que que há, Terrível? Você não lembra de mim? Sou teu primo, o Rei. Só que agora não me chamo mais Rei, me chamo Afonso. E essa é uma amiga minha, a Raquel.
Eu tava com um pouco de medo dele, mas mesmo assim falei oi.
Ele nem me olhou. Continuou falando com o Afonso:
— Tô apostando dez cruzeiros como eu ganho de você.
— Mas que história é essa, Terrível? Por que é que você quer brigar comigo?
— Pra mostrar que eu ganho de você. Fácil.
— Então finge que a gente já brigou e você já ganhou, pronto. — Levantou a asa do Terrível e berrou: — Campeão! Campeão! Campeão!
O Terrível ficou muito espantado:
— Você não se importa de perder?
— De jeito nenhum.
— Mas como é que pode?
— Terrível, vê se entende: eu não te vejo há séculos, tô com saudades tuas, tô louco pra saber o que é que você tem feito…
— Tenho brigado.
— Quero saber tintim por tintim da tua vida.
— Tintimbrigado tintimbrigado.
— Quantas brigas você já brigou?
— Cento e trinta e três.
— Quantas você já ganhou?
— Cento e trinta.
— Quando é que você perdeu?
— Nas três últimas.
— Por que é que você perdeu?
— Perdi a última porque perdi a penúltima.
— Por que é que você perdeu a penúltima?
— Porque eu perdi a antepenúltima.
— Mas por que é que você perdeu a antepenúltima?
— Porque apareceu um galo mais novo e mais forte do que eu! Quer parar de fazer pergunta, quer!
Mas o Afonso ainda fez umazinha:
— Quando é que você vai brigar outra vez?
Aí ele ainda ficou mais nervoso e gritou:
— Sábado. E eu não posso perder, viu? Meus donos falaram que se eu brigo mal dessa vez ninguém mais aposta em mim; então eles não vão mais me defender; vão deixar o outro galo acabar comigo e pronto. Eu não posso perder essa briga de jeito nenhum! de jeito nenhum! de-de-de… — E a cabeça dele sacudia tanto, que ele não podia mais falar.
Eu achei aquilo tão impressionante! E claro que eu já tinha visto gente com mania de dizer que a gente tem que ganhar dos outros, tem que ser a primeira disso, a primeira daquilo, mas nunca pensei que alguém tinha que ganhar tanto assim.
O Afonso ficou olhando pro Terrível com uma cara muito séria. De repente se zangou:
— Você ganhou cento e trinta lutas?
— Ganhei.
— Então você ganhou também um bocado de dinheiro?
— Eu não: meus donos é que ganharam.
— Ué, você que briga e eles é que ganham?
— É.
— Então eles tão ricos?
— Tão.
— Se eles tão ricos, você não precisa mais brigar.
— Preciso.
— Você pode dizer pra eles que agora quer viver sossegado.
— Não.
— Sem ter que arriscar mais a vida.
— Não.
— Mas não por que, cara?
— Porque eu tenho que brigar.
— Mas por quê?
— Porque eu preciso ganhar de todo mundo. — E começou a pular no mesmo lugar se esquentando pra briga. O Afonso virou pra mim e cochichou:
— Puxa, ele só pensa nisso. Será que costuraram mesmo o pensamento dele?
Aí começou uma gritaria danada; um bando de gente apareceu na esquina berrando:
— Campeão! Campeão! Campeão!
No meio daquela turma vinha um homem carregando um galo no ombro. Era um galo fortíssimo. Com cada unhona assim. E uma cara de meter medo. Quando o Terrível viu o tal galo, se encolheu apavorado:
— É o Crista de Ferro. E o homem é o dono dele.
O dono ia feliz que só vendo. Rindo. Papeando com todo mundo. Segurando firme a perna do Crista de Ferro pra ele não desequilibrar com tudo quanto é festa que faziam nele. E o pessoal em volta não parava de bater palma e gritar: campeão!
Afonso virou pro Terrível:
— Você conhece o Crista de Ferro?
— Foi ele que ganhou de mim. É com ele que eu vou brigar no sábado.
— Xi!… — E o Afonso achou melhor nem dizer mais nada: viu logo que o Terrível não era páreo pro Crista de Ferro.
O bando passou pertinho. Terrível se escondeu atrás do Afonso.
Jogaram flor no Crista de Ferro, fizeram ainda mais gritaria. E aí dobraram a esquina.
O barulho foi sumindo, e o Terrível ficou olhando pro chão. Com uma cara triste toda vida. Suspirou:
— Antes de começar a perder, eu é que era o campeão. Eles também batiam palma pra mim e gritavam desse jeito. Agora eu só levo vaia. —Deu uma sacudidela de cabeça, começou a jogar outra vez com ele mesmo. Foi se animando com o jogo. Esqueceu que a gente estava ali, acho que esqueceu a briga também.
— Mas onde?
— Acho que a bolsa amarela é um bom lugar.
Quase desmaiei:
— Ah, pera lá, Afonso! A bolsa já tá lotada.
— Cada um se encolhe um pouco, vai dar.
— Mas Afonso…
— É só por uns dias.
— E o peso? Já pensou?
— Ele não é tão pesado assim.
— Mas escuta, eu mal tava aguentando carregar a bolsa amarela; com o Terrível aí dentro como é que vai ser?
— Eu encolho a barriga pra ficar mais leve.
— Ah.
— É por pouco tempo, dá um jeitinho.
— Tá difícil.
— Pensa na briga, pensa no Crista de Ferro.
Pensei. Topei. Botei a bolsa no chão e abri. O Afonso não perdeu tempo: chamou o Terrível com a cara mais inocente do mundo:
— Ei! Aqui dentro tem um sujeito que tá te desafiando pra uma briga.
Falou em briga, pronto: o Terrível esqueceu o jogo.
— Manda ele aqui.
— Ele é um cara esquisito, só gosta de brigar na bolsa.
— Fica uma briga apertada.
— Que nada, tem muito lugar, espia só.
Ele espiou.
— Cadê o cara?
— Mora aí nesse bolso. Abre o zipe.
O Terrível pulou pra dentro da bolsa e abriu o zipe. O Afonso pulou atrás e eu fechei o fecho. Agora o Terrível só saía lá de dentro depois da briga.
Mas que peso, puxa vida! Cheguei em casa mais morta do que viva.

Continua...
Lygia Bojunga
A bolsa amarela
Rio de Janeiro, Casa Lygia Bojunga Lda., 2004

3 comentários:

  1. Há eu adoro este livro tem muita criatividade envolvida # amooo❤

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  2. Eu amei aliás de ser muito longa a história eu ameiiiiii❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️🤣

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