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O Tao da Teia



HÁ ALGUNS ANOS – e posso precisar a data em 1992, não apenas porque registrei o fato em meu diário, mas porque sei que estava convalescendo, num processo de tratamento de uma doença grave que dividiu minha vida em antes e depois – eu estava numa manhã de julho em casa em Manguinhos, sozinha com Luísa, minha filha, então com nove anos.
Era um dia frio, nublado e com muito vento. Estávamos na beira do mar, mas era  impossível ir à praia. Diante do computador, eu trabalhava. Mas a Luísa, restava o jardim.
De repente, ela me chamou com voz vibrante para ver alguma coisa. Aquele tom de voz  inconfundível, de maravilhamento, com que nossos filhos tantas vezes  nos presenteiam. Parei o que estava fazendo e fui até o quintal encontrá-la.
Num dos canteiros, entre uma longa folha lanceolada de um lírio rajado e um galho fino e espinhento de uma buganvília, esticava-se um único fio, tênue, transparente, quase invisível. Por ele andava uma aranha.
Luísa me explicou:
– Mãe, eu vi a hora em que ela começou. Pensei que ela estava caindo, porque aranha não voa. Mas ela estava presa no fio e pulou até bem longe, como se estivesse voando, pendurada…

Nesse momento, não caía mais. Subia pelo fio. Até certo ponto, apenas.
De repente parou e se jogou de novo no espaço, agora para cima, mais uma vez deixando um fio no seu rastro, mas numa direção completamente diferente. Até alcançar outra folha. Depois voltou novamente pelo fio e retomou o processo.

Percorria uma certa distância, mudava de direção, lançava-se no vazio secretando das entranhas o fiapo que a sustentava, fixava-o em algum ponto de apoio, retomava parcialmente o caminho percorrido… Seguia com firmeza um plano matemático , rigoroso, como quem não tem dúvida alguma sobre o que está fazendo.
Luísa e eu ficamos assistindo, maravilhadas. De início, manifestávamos nossa admiração com alguns comentários exclamativos. Mas logo nos sentamos no chão e apenas ficamos lado a lado em silêncio, como quem reza ou medita. Durante quase uma hora. Até termos diante dos olhos a geometria exata e rigorosa de uma teia de aranha completa.
Saímos dali encantadas, de mãos dadas. Luísa cantarolou um trecho de Oriente, de Gilberto Gil, canção que não era da sua geração mas ela conhecia, por fazer parte do repertório do pai, músico:
A aranha vive do que tece
Vê se não esquece…

Mas em geral não precisávamos falar. Acabávamos de compartir uma experiência intensa, muito maior do que qualquer palavra. Íamos falar do quê? Apenas exercer nossa necessidade de controle sobre a natureza, nomeando e atribuindo significados? De minha parte, eu não tinha vontade de dizer nada. Embora imaginasse que Luísa fosse perguntar algo. E soubesse que então eu teria que responder, talvez falar em instinto e introduzir alguma tentativa científica de explicação para o inexplicável.
No entanto, minha filha foi mais sábia que eu. Não pediu explicações. Não estragou o momento com isso. Viveu-o intensamente como uma participação, um fazer parte. Um contato com algo vago e indefinível, irredutível a palavras. Algo simples e raro: a vivência de uma sensação de pertencer a uma totalidade, uma percepção próxima daquilo que os orientais chamam de Tao. Algo indefinível e que não pode ser posto em palavras. No máximo, alude-se ao Tao em pequenos poemas dos livros filosóficos, como o Tao Te Ching.
Um deles, o do capítulo seis, pode ilustrar vagamente de que se trata:
O Tao
É o sopro que nunca morre.
É a Mãe de Toda Criação.
É a raiz e o chão de toda alma
– a fonte do Céu e da Terra, minando.
Fonte sem fim, rio sem fim
Rio sem forma, rio sem água
Fluindo invisível de um lugar a outro
…nunca termina
e nunca falha.

De alguma forma, Luísa e eu sabíamos que, diante do inefável, não precisávamos dizer nada. Deitamos na rede com um cobertor e ficamos algum tempo aconchegadas em silêncio.
Ana Maria Machado

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