Era uma vez uma pequena vila do interior que tinha uma rua só. Era
uma rua comprida com casas de um lado e de outro. No meio da vila ficava a
igreja, de um lado o mercado e de outro a escola. Quem caminhasse um pouco mais
chegava ao bosque, um bosque chamado solidão, que ficava bem no fim da rua que
cruzava aquela vila.
Na rua da cidade passava boi, passava boiada, carroça, charrete,
cavalo, cachorro, gato, galinha e, é
claro, passava gente.
Tinha gente mais velha, que para ver o tempo passar contava
historias na beira das casas, gente que trabalhava e que sempre passava para um
lado e para o outro, tinha gente viajante que passava pela vila a cavalo, ou
mesmo a pé, cumprimentava e seguia adiante. Tinha gente pequena que brincava de
roda, pulava carniça, rodava pião, jogava peteca.
Mas no meio desse tanto de gente da pequena vila, tinha também
uma menina que ficava sempre em casa, sem coragem de sair, olhava triste e não
falava quase nada.
Dizem que a menina não gostava de falar porque não tinha
coração.
Sei que você vai me perguntar: Mas como não tinha coração? Sem
coração ninguém pode viver!
Olha, como era exatamente eu não sei, mas dizem que o coração da
menina tinha sido levado por um anjo que vivia no bosque Solidão, no fim da
vila.
E nas noites de lua minguante a menina chegava na beirada da
janela e cantava uma canção:
Nesta rua, nesta rua tem um bosque
Que se chama, que se chama solidão
Dentro dele, dentro dele mora um anjo
Que roubou, que roubou meu coração.
Um dia pousou na janela um passarinho colorido e bonito!
Cantou de fazer a menina sorrir (coisa rara). Ela quis pegá-lo e
pensou: “quem sabe ele não cabe direitinho no vazio onde me falta o coração?”
Passarinho ficou. E era tão quietinho! Mas depois saiu voando. É
que os pássaros nasceram para escrever poesias no céu. Pena que tão poucos
sabem ler o que os seus vôos escrevem. Mesmo assim eles escrevem...
A ave riscou o céu e a menina se entristeceu.
No outro dia foi um gato, um gatinho que num salto lesto e
seguro pulou do chão ao muro,viu a menina, olhou para ela, saltou do muro para
a janela.
A menina (veja só!) deu um sorriso e pensou assim: “quem sabe
ele não cabe direitinho no vazio onde me falta o coração?”
O gatinho se achegou, se aconchegou, ronronou e até dormiu, mas
de noite, saiu. É que os gatos nasceram para sair quando é noite, para cantar
suas canções para as estrelas. Não sei se as estrelas escutam. Mesmo assim eles
cantam...
O gato sumiu no mundo e a menina até chorou.
O tempo passou e um dia um velho caixeiro-viajante (daqueles que
iam de cidade em cidade vendendo brinquedos e outras coisas mais) que passava
pela vila olhou para a menina e mostrou-lhe uma boneca de pano.
A menina, vendo a boneca tão bonita que o velho caixeiro
mostrava, sorriu.
O velhinho chegou mais perto, deu um sorriso, e como se ouvisse
seus pensamentos falou: “menina, nós, caixeiros-viajantes nascemos para fazer
nosso caminho e pra mostrar para as pessoas que é preciso seguir adiante. Sei
que quase ninguém entende. Mesmo assim nós seguimos...
Ele deu a boneca de presente à menina e completou: “fique com
ela e seja feliz!”
Ele então se despediu e seguiu estrada. A menina parou para
pensar nas suas palavras. Quando era noite ela decidiu que no dia seguinte iria
bem cedo ao bosque encontrar aquele Anjo e pedir seu coração de volta.
No outro dia de manhã, quando o sol nasceu, a menina caminhou
pela rua até o bosque. Quando chegou olhou com medo, mas entrou bem devagar. O
silencio era tão grande que fazia tudo parecer maior e assustador. Ela andou
com cuidado, mas pisou em um galho seco que quebrou fazendo barulho e a menina,
assustada, foi correndo para casa.
Naquela noite ela quase não dormiu.
No dia seguinte, acordou bem cedinho e saiu pela rua na hora em
que o sol levantava. Chegou ao bosque e
resolveu esperar um pouco antes de entrar. E o silencio, aos poucos, deu lugar
ao canto tímido dos pássaros que acordavam e dos grilos que esperavam a luz do
dia para dormir.
A menina entrou na mata e ainda com medo foi andando. Mas
tropeçou em uma raiz, caiu e furou seu dedo em um espinho. Três gotas de sangue
pingaram no chão e três lágrimas também. Ela correu para casa e lá chegando
assistiu da janela o dia passar. E de noite não dormiu, decidida a sair no outro
dia ainda mais cedo para entrar no bosque, encontrar aquele Anjo, e a todo
custo encontrar seu coração.
Na manha posterior ela saiu antes mesmo que o sol nascesse e foi
andando com vontade e firmeza até o bosque. Enquanto seus pés tocavam o chão, a menina lembrava as
palavras do velho caixeiro e caminhava, seguia adiante. No seu peito foi
nascendo uma força diferente que ela ainda não conhecia.
E, quando entrou no bosque, ela ia levando o medo sim, mas
também a coragem. Dizem que o medo e a coragem andam juntinhos, feito os dois
lados de uma mesma moeda. Dizem também que, quanto maior o medo, maior pode ser
a coragem.
A menina, com coragem, percebeu a beleza daquele lugar. Sua vista se acostumou com a
pouca claridade e ela pôde ver então os
muitos verdes diferentes, embaçados pela enfumaçada neblina da manhã.Ouviu os
pássaros que, aos poucos, começavam a cantar chamando o sol de um novo dia.
Depois de um tempo, o bosque pareceu-lhe muito mais familiar.
Ela parou, sentou-se em uma pedra, e chamou: “anjo, guardião do
meu coração, onde você está?”
Lá em cima surgiu um facho de luz que rompeu a neblina e foi
descendo até chegar bem do lado da menina, e da luz surgiu o Anjo que olhou bem
nos seus olhos e cantou com ternura:
Se eu roubei, se eu roubei teu coração
Tu roubaste, tu roubaste o meu também
Se eu roubei, se eu roubei teu coração
É porque, é porque te quero bem.
- Menina, feche os olhos e olhe para dentro de você. Nesse
lugar, que parece vazio, tem um coração de anjo batendo.
A menina fechou os olhos e foi sentindo o bater de um coração
que aos poucos ficava mais forte, mais forte...
Os dois se abraçaram e o Anjo voltou para o lugar onde os anjos
vivem.
A menina sorriu e se despediu. E dos seus olhos rolaram três lágrimas
de alegria.
A partir desse instante tudo pareceu diferente. As coisas
estavam mais bonitas, a menina se sentia mais bela e até os sons e as cores
pareciam mais cheios de vida.
Na verdade quem tinha mudado era ela. É que, quando a gente
muda,o mundo todo se transforma ao nosso olhar.
A menina voltou pela rua.
Parecia tão leve que pisava no chão como um anjo passeia nas
nuvens. Seus olhos voltados para o céu acendiam um brilho tão lindo que era
como se duas estrelas morassem no seu olhar. Seu sorriso encantou toda a vila e
as pessoas daquele lugar largaram o que estavam fazendo para olhar para ela.
Os mais velhos pararam de contar histórias, os agricultores
guardaram suas ferramentas, as rendeiras deixaram suas rendas, as cozinheiras
tiraram a lenha do fogão, os viajantes colocaram as bagagens nas calçadas.
Então todos deram as mãos formando uma grande ciranda e cantaram
uma linda canção:
Se esta rua, se esta rua fosse minha
Eu mandava, eu mandava ladrilhar
Com pedrinhas, com pedrinhas de brilhantes
Para o meu, para o meu amor passar.
Fabiano Moraes