HISTÓRIA DA FORTUNA






Era uma vez um casal que tinha mais ou menos doze filhos. O homem, sem meios para sustentar a família, saía de casa de manhã para a mata e voltava à tarde, sem nada. A mulher tocava-lhe o couro com vontade, até as almas dizerem amém. O pobre homem, um dia, muito contrariado, saiu sem destino. Chegando em uma mata desconhecida, começou a gritar em voz alta, chamando dona Felicidade. Não apareceu ninguém. Chamou dona Riqueza, ninguém respondeu. Chamou dona Ventura, muito pior. Aí ele se lembrou de dona Fortuna e começou em voz mais alta:

— Oh! dona Fortuna! Dona Fortuna!

Uma voz lhe respondeu:

— O que é que você quer?

— Eu quero que a senhora venha falar comigo, pois desejo fazer-lhe um pedido.

— De repente, ele viu uma mulher em sua frente. Era dona Fortuna, que lhe perguntou o que queria.

Respondeu o pobre homem:

— Eu queria que a senhora me desse qualquer coisa para eu levar para casa, porque toda vez que eu chego em casa sem nada, recebo uma surra danada de minha mulher.

Dona Fortuna deu-lhe uma linda toalha, dizendo-lhe:

— Quando quiseres muita comida, é só dizer: "Toalha, dona Fortuna manda e ordena", e ela lhe dará todas as espécies de comeduras.

Então, muito satisfeito, agradeceu e foi-se embora. Mas, já sendo noite, ele dormiu na casa de sua sogra. Chegando lá, foi mostrando a toalha e fazendo logo uma experiência, obtendo ótimo resultado. Estando muito cansado, foi logo dormir. A velha, muito invejosa, pegou uma outra toalha, semelhante à primeira, deixando-a em lugar desta. de manhã ele acordou muito alegre. Despedindo-se da sogra foi para casa.

Chegando, tratou logo de fazer a demonstração perante a família, dizendo para a toalha: "Dona Fortuna manda e ordena". A toalha, não sabendo fazer milagre, não atendeu à sua ordem. Sendo assim, ele ficou desmoralizado perante a mulher, que imediatamente lhe deu muitas bofetadas, botando-o fora de casa. Ele, muito triste, saiu novamente à procura de dona Fortuna. Andou o dia inteiro, e nada arranjou. Já de tardezinha chegou ao mesmo lugar do dia anterior e novamente começou a gritar. Quando já estava cansado, quase rouco de gritar pelo nome de dona Fortuna, esta novamente lhe apareceu, dando-lhe desta vez uma bolsa de prata, dizendo-lhe:

— Toma cuidado para não perdê-la porque, do contrário, não te darei mais nada. Quando quiseres dinheiro, é só dizer: "Bolsa, dona Fortuna manda e ordena" e ela dar-te-á muito dinheiro.

Muito contente agradeceu à dona Fortuna e foi novamente dormir em casa da sogra. esta, quando avistou o genro, foi logo perguntando:

— O que trazes de novo, meu querido genro?

Ele, feito um bobo, foi logo mostrando a bolsa e dizendo: "Bolsa, dona Fortuna manda e ordena". E a bolsa jorrou dinheiro em profusão.

A velha ficou com os olhos grandes. Preparou imediatamente a cama do genro e mandou-o dormir. Quando ele estava dormindo, tirou-lhe a bolsa e botou outra no lugar. Ele, de manhã, acordou muito cedo, tomou café e disse para a velha:

— Desta vez eu não apanho da mulher.

E saiu correndo para a casa. Chegando, foi dizendo:

— Agora estamos ricos, trago aqui uma bolsa que é uma maravilha. Querem ver?

— Se não surtir efeito, quebro-te a cara.

— Não! Desta vez nós estamos ricos.

E tirando a bolsa do saco, foi dizendo: "Bolsa, dona Fortuna manda e ordena". Nada.

A mulher não perdeu tempo, tocou-lhe a mão no frontispício e lá vai fumaça... Neste dia ele apanhou tanto da mulher, que ficou doente. No dia seguinte, ele saiu novamente, porém sem destino. Andou o dia inteiro pela mata e nada encontrou para levar. À tardinha, foi sair no mesmo lugar dos dias anteriores. Novamente começou a gritar, chamando dona Fortuna. Oh! dona Fortuna! Dona Fortuna! Venha cá por caridade. Tenha pena de mim, dona Fortuna. Venha me socorrer pelo amor de Deus.

Dona Fortuna apareceu muito aborrecida, dizendo:

— Vou te dar o último presente. Toma este pedaço de pau. Quando tu quiseres bater em alguém, é só dizer: "Pau, dona Fortuna manda e ordena" e ele obedece, imediatamente. E não voltes mais aqui, estás ouvindo?

— Sim, senhora, eu agora sei o que vou fazer.

Despediu-se de dona Fortuna e partiu para a casa da sogra. Quando foi chegando no terreiro da casa, foi logo gritando:

— Minha sogra, agora eu trago uma grande novidade. É uma coisa de assombrar. É um sucesso. A senhora vai ficar pasmada.

— O que, meu filho? Diga logo para sua sogrinha. Diga, meu genrinho, diga.

Então ele perguntou à velha:

— Cadê a minha toalha?

— Ah! meu filho, eu não sei não. Que toalha que tu queres?

— Vamos, me dê a minha toalha antes que eu me aborreça.

E a velha, querendo tapear, começou a chorar. O genro pegou o pedaço de pau e disse: Pau, dona Fortuna manda e ordena". O pedaço de pau caiu no lombo da velha e toma pancada. A velha gritava feito uma danada.

— Acuda-me, meu filhinho, que eu te dou tua toalha e tua bolsa.

— Não! A senhora vai me pagar o novo e o velho. Bate nela, pau.

E o pau está quebrando a velha de pancada. Quando ele viu que a velha não podia mais, gritou:

— Pau, dona Fortuna manda e ordena.

A velha, toda amarrotada, imediatamente lhe entregou a toalha e a bolsa. Ele foi correndo para casa. Quando foi chegando, a mulher logo gritou:

— Se não trouxe nada, vai apanhar até a gata miar, está ouvindo, seu cara de pamonha?

Ele, calmamente, lhe disse:

— Não faças isso comigo não, minha velha.

— Vamos, o que trouxeste para casa?

— Ah! Eu trouxe aqui uma novidade para ti. É uma coisa de espantar. É uma coisa nunca vista.

— Vamos. Mostra-me logo o que é.

Então ele tirou o pedaço de pau e disse para a mulher:

— É esse pedaço de pau, tão bonitinho, que tu estás vendo.

— Então isto é coisa que se traga para casa, seu cara de mamão? Deixa eu ver este pedaço de pau, para botar no fogo.

— Toma, minha santinha.

Quando ela ia botar o pedaço de pau no fogo, ele gritou:

— Pau, dona Fortuna manda e ordena.

Fechou o tempo. A mulher gritava feito louca. Ele dava gargalhadas, quanto mais a mulher gritava, mais ele ria. Quando viu que a mulher não podia mais, disse:

— Pau, dona Fortuna manda e ordena.

E disse para a mulher:

— Fica sabendo que um dia é da caça e outro do caçador.

E continuaram a viver.

Entrou na perna do pinto, saiu na perna do pato, senhor rei mandou dizer que tu contasses quatro.


(Norte, Zé do. Brasil sertanejo. Rio de Janeiro, Artes Gráficas, 1948, p.45-48)

HISTÓRIA DA COCA
















Uma vez um menino foi passear no mato e apanhou uma coca; chegando em casa, deu-a de presente à avó, que a preparoiu e comeu.

Mais tarde, sentiu o menino fome e voltou para buscar a coca, cantando:

Minha vó, me dê minha coca
Coca que o mato me deu
Minha vó comeu minha coca
Coca recoca que o mato me deu

A avó, que já havia comido a coca, deu-lhe um pouco de angu.

O menino ficou com raiva, jogou o angu na parede e saiu. Mais tarde, arrependeu-se e voltou, cantando:

Parede, me dê meu angu
Angu que minha vó me deu
Minha vó comeu minha coca
Coca recoca que o mato me deu

A parede, não tendo mais o angu, deu-lhe um pedaço de sabão.

O menino andou, andou, encontrou uma lavadeira lavando roupa sem sabão e disse-lhe: — Você lavando roupa sem sabão, lavadeira? Tome este pra você.

Dias depois, vendo que a sua roupa estava suja, voltou para tomar o sabão, cantando:

Lavadeira, me dê meu sabão
Sabão que a parede me deu
Parede comeu meu angu
Angu que minha vó me deu
Minha vó comeu minha coca
Coca recoca que o mato me deu

A lavdeira já havia gasto o sabão: deu-lhe então uma navalha.

Adiante, encontrando um cesteiro cortando o cipó com os dentes. Disse-lhe: — Você cortando o cipó com os dentes?... Tome esta navalha.

O cesteiro ficou muito contente e aceitou a navalha.

No dia seguinte, sentindo o menino a barba grande, arrependeu-se de ter dado a navalha (ele sempre se arrependia de dar as coisas) e voltou para buscá-la, cantando:

Cesteiro me dê minha navalha
Navalha que lavadeira me deu
Lavadeira gastou meu sabão
Sabão que parede me deu
Minha vó comeu minha coca
Coca recoca que o mato me deu

O cesteiro, tendo quebrado a navalha, deu-lhe, em paga um cesto.

Recebeu o cesto e saiu dizendo consigo: — Que é que eu vou fazer com este cesto?

No caminho, encontrando um padeiro fazendo pão e colocando-o no chão, deu-lhe o cesto. Mais tarde, precisou do cesto e voltou para buscá-lo com a mesma cantiga.

Padeiro me dê meu cesto
Cesto que o cesteiro me deu
O cesteiro quebrou minha navalha
Navalha que a lavadeira me deu
Lavadeira gastou meu sabão
Sabão que parede me deu
Minha vó comeu minha coca
Coca recoca que o mato me deu

O padeiro, que tinha vendido o pão com o cesto, deu-lhe um pão.

Saiu o menino com o pão, e, depois de muito andar, não estando com fome, deu o pão a uma moça, que encontrou tomando café puro.

Depois, sentindo fome, voltou para pedir o pão à moça e canta:

Moça me dê meu pão
Pão que o padeiro me deu
O padeiro vendeu meu cesto
Cesto que cesteiro me deu
O cesteiro quebrou minha navalha
Navalha que a lavadeira me deu
Lavadeira gastou meu sabão
Sabão que parede me deu
Minha vó comeu minha coca
Coca recoca que o mato me deu

A moça havia comido o pão; não tendo outra coisa para lhe dar, deu-lhe uma viola.

O menino ficou contentíssimo; subiu com a viola numa árvore e se pôs a cantar:

De uma coca fiz angu
De angu fiz sabão
De sabão fiz uma navalha
Duma navalha fiz um cesto
De um cesto fiz um pão
De um pão fiz uma viola
Dinguelingue que eu vou para Angola


(Em Pedreira, Ester. "História da coca". Revista Brasileira de Folclore, ano 11, nº 31, Rio de Janeiro, setembro/dezembro de 1971, p.319-322)




O Filho da Burra








Um casal teve um filho tão grande que era uma coisa por demais. Meses depois o homem e a mulher morriam e a criança foi criada por uma burra. O menino formou, botou corpo, e só o chamavam Filho da Burra.
Já grande, Filho da Burra foi ganhar a vida e empregou-se num reinado onde mandou fazer uma bengala de ferro. O ferreiro fez uma bengala da grossura de um braço e Filho da Burra quando experimentou dobrou o ferro como se fosse um fio de arame. Mandou fazer outra, mais grossa, que ficou do seu gosto.
Como o seu patrão não o podia sustentar, porque ele comia dois bois por dia e quatro sacas de farinha, o rapaz largou o emprego e saiu pelo mundo. Encontrou um homem arrancando pé de pau com raízes e tudo e rolando para um lado.
— Como você se chama?
— Me chamo Rola-Pau!
— Vamos ganhara  vida juntos?
— Vamos!
Saíram os dois e lá adiante viram outro camarada que empurrava as pedras como se fosse brinquedo, tirando todas do lugar.
— Como se chama você?
— Me chamo Rola-Pedra.
— Vamos ganhar a vida juntos?
— Vamos!
Foram os três andando até que pararam numa campina bonita e aí ficaram. Fizeram uma casinha de palha e todo dia, dois iam caçar e um ficava para fazer a comida num tacho bem grande. Ficou Rola-Pau e os companheiros foram para os matos.
Quando o almoço ia ficando pronto apareceu um bicho enorme roncando e pedindo todo de comer.
— Ou como o almoço ou como você!
Rola-Pau trepou-se na cocuruta da casinha, com um medo doido e o bichão devorou o almoço todo. Quando Filho da Burra e Rola-Pedra voltaram e não viram a comida, ficaram para morrer de raiva. Ficou então Rola-Pedra e, nas horas costumeiras, o bicho chegou e Rola-Pedra botou-se a ele brigando. Brigaram muito tempo e Rola-Pedra vendo que morria, largou e deu uma carreira de levantar poeira. Filho da Burra, quando chegou e não teve almoço, teve uma raiva danada.
No terceiro dia ficou ele preparando a comida. O bicho apareceu com a mesma conversa. Filho da Burra largou-lhe uma bengalada com a bengala de ferro que pegou bem no focinho do bicho e este não quis mais peleja. Ganhou os matos e Filho da Burra foi atrás, pega aqui, pega acolá, até que o bicho pulou num buraco e sumiu-se de terra a dentro. Filho da Burra marcou bem o canto e voltou para a casinha.
No outro dia veio com os dois companheiros e trouxeram o tacho amarrado numas cordas compridas. Filho da Burra meteu-se no tacho e os dois arriaram até embaixo. Lá no fundo da terra era espaçoso e tinha casas. Na primeira casa que Filho da Burra bateu apareceu uma moça bonita e disse que, pelo amor de Deus, ele fosse embora porque ali vivia uma serpente que matava toda a gente. O rapaz respondeu que viera para lutar com a serpente e matá-la. A moça explicou:
— Não pode ser. Quando ela cansa de brigar e cai para uma banda, pede pão e vinho. Come e bebe e fica de novo forte, vencendo todo o mundo.
— Pois a senhora, se quiser ficar livre, em vez de dar o vinho e o pão à serpente, dê a mim!
A moça prometeu. A serpente foi chegando, quebrando árvores e fazendo um barulho de ventania. O rapaz escondeu-se detrás da porta. A serpente foi entrando e fungando:
— Aqui me cheira a sangue real! Aqui me cheira a sangue real!
A moça dizia que não havia ninguém mas a serpente tanto procurou que viu Filho da Burra e voou em cima dele para matá-lo. Filho da Burra passou-lhe a bengala de ferro que saía fumaça. Foi uma briga que não tinha fim, até que caíram, um para cada lado, sem forças. A moça, mais que depressa, trouxe pão e vinho que a serpente estava pedindo, e deu ao rapaz que comeu e bebeu, tornando a ficar forte. Levantou-se e sentou a bengala na cabeça da serpente esbandalhando-a. A moça ficou satisfeita e disse que tinha mais duas irmãs encantadas, morando em duas casas adiante.
Filho da Burra foi para a segunda e lá a moça contou a mesma coisa. O rapaz fez a mesma proposta de comer o pão e beber o vinho e a moça aceitou. Escondeu-se e esperou o bicho-feroz que chegou como um pé-de-vento, derribando tudo:
— Aqui me cheira a sangue real! Aqui me cheira a sangue real!
A moça negou, negou, mas o bicho caçou o rapaz e o encontrou, botando-se a ele e brigando com vontade. O bicho era terrível, mas a bengala de ferro não fazia graça e os dois inimigos terminaram sem força para acabar o combate, caindo no chão os dois. O bicho pediu o vinho e o pão, e a moça foi buscar mas entregou ao rapaz que esmagou a cabeça do monstro.
Passou para a terceira casa e lá era um macacão que morava com a pobre moça. Aconteceu o mesmo. O macacão quando chegou farejando:
— Aqui me cheira a sangue real! Aqui me cheira a sangue real!
Foi procurando e achou o rapaz, partindo para cima dele. Filho da Burra enfincou-lhe a bengala com vontade. Briga lá e briga cá, até que uma bengalada raspou a cabeça do macacão e uma orelha caiu no chão. Filho da Burra agarrou a orelha e meteu-a no bolso porque o macacão sumiu-se, correndo como um condenado.
O rapaz juntou as três moças e os tesouros que elas tinham e foi para onde estava o tacho. Balançou na corda e o tacho foi puxado por Rola-Pau e Rola-Pedra, cheio de dinheiro. Depois subiram as três moças e o tacho desceu. Imaginando que os dois camaradas tivessem maldando a morte dele para ficar com as moças e o tesouro, Filho da Burra botou uma pedra bem grande no tacho e balançou a corda. Subiram o tacho até quase em cima e depois cortaram as cordas, despencando tudo para baixo.
Rola-Pau e Rola-Pedra já tinham escolhido as duas moças para noivas e acharam que deviam deixar Filho da Burra no buraco para gozarem a riqueza que tinham ganho. Foram para o reinado do pai das três moças.
Ficando lá embaixo, Filho da Burra estava meio triste quando apareceu o diabo, que era o macacão, gritando e saltando:
— Filho da Burra, me dá minha orelha!
— Não dou.
— Filho da Burra, me dá minha orelha que eu te tiro daqui!
— Tire primeiro.
O diabo virou-se numa árvore e o rapaz subiu por ela até fora do buraco. Quando ficou livre, voltou o diabo pedindo a orelha.
— Só dou a orelha se você me levar para o reinado!
— Levo. Vou me virar num cavalo e você monte, feche os olhos e só abra quando eu parar!
Virou-se num cavalo, selado, e Filho da Burra montou, fechou os olhos. Quando o cavalo parou, ele abriu e estava no reinado do pai das moças.
Rola-Pau e Rola-Pedra, numa carruagem, tinham ido casar na igreja. No palácio só ficara o rei e a princesa mais moça. Filho da Burra, quando o diabo tornou a pedir a orelha, disse que queria se encontrar dentro do palácio real:
— Feche os olhos! 
Ele fechou e quando abriu, estava no salão do rei.
Chamou o rei e contou toda a sua história. O rei não queria acreditar na malvadeza dos futuros genros. O rapaz tirou do bolso um lenço e mostrou a ponta da língua da serpente que vivia com a princesa mais velha, a orelha da fera que estava com a do meio e a orelha do macacão que prendera a caçula. O rei chamou a princesa e esta confirmou tudo. Mandaram buscar Rola-Pau e Rola-Pedra que voltaram com os convidados. Quando foram vendo Filho da Burra no salão, correram para a janela e saltaram do sobrado abaixo, quebrando a cabeça nas pedras do calçamento, morrendo imediatamente. Filho da Burra casou com a princesa mais moça e viveu muito feliz. E a orelha do macacão? O diabo recebeu e voltou para os infernos.

(Informante: Cícero Salvino de Oliveira. Alexandria, Rio Grande do Norte)
(Cascudo, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. Belo Horizonte, Editora Itatiaia; São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1986, p.77-80 (Reconquista do Brasil, 2ª série, v.96))

A FONTE DAS TRÊS COMADRES









Havia um rei que cegou. Depois de ter empregado todos os recursos da medicina, deixou de usar de remédios, e já estava desenganado de que nunca mais chegaria a recobrar a vista. Mas uma vez foi uma velhinha ao palácio pedir uma esmola, e, sabendo que o rei estava cego, pediu para falar com ele para lhe ensinar um remédio. O rei mandou-a entrar, e então ela disse: "Saberá vossa real majestade, que só existe uma coisa no mundo que lhe possa fazer voltar a vista, e vem a ser: banhar os olhos com água tirada da fonte das três comadres. Mas é muito difícil ir-se a essa fonte, que fica no reino mais longe que há daqui. Quem for buscar a água, deve-se entender com uma velha que existe perto da fonte, e ela é quem deve indicar se o dragão está acordado ou dormindo. O dragão é um monstro que guarda a fonte, que fica atrás de umas montanhas". O rei deu uma quantia à velha e a despediu.

Mandou preparar uma esquadra pronta de tudo e enviou o seu filho mais velho para ir buscar a água, dando-lhe um ano para estar de volta, não devendo ele saltar em parte alguma para se não distrair.

O moço partiu. Depois de andar muito foi aportar a um reino muito rico, saltou para terra e namorou-se lá das festas e das moças, despendeu tudo quanto levava, contraiu dívidas, e, passado o ano, não voltou para a casa de seu pai. O rei ficou muito maçado e mandou preparar nova esquadra e enviou seu filho do meio para busca a água da fonte das três comadres. O moço partiu, e, depois de muito andar, foi ter justamente ao reino em que estava já arrasado seu irmão mais velho. Meteu-se lá também no pagode e nas festas, pôs fora tudo que levava, e, no fim de um ano, também não voltou. O rei ficou muito desgostoso. Então seu filho mais moço, que ainda era menino, se lhe apresentou e disse:

"Agora quero eu ir, meu pai, e lhe garanto que hei de trazer a água!" O rei mangou com ele dizendo: "Se teus irmãos, que eram homens, nada conseguiram, o que farás tu?" Mas o principezinho insistiu, e a rainha aconselhou ao rei para mandá-lo dizendo: "Muitas vezes donde não se espera, daí é que vem". O rei anuiu, e mandou preparar uma esquadra e enviou o príncipe pequeno. Depois de muito navegar, o mocinho foi dar à terra onde estavam presos por dívidas os seus irmãos; pagou as dívidas deles, que foram soltos. O quiseram dissuadir de continuar a viagem e o convidaram para ali ficar com eles; mas o menino não quis e continuou a sua derrota. Depois de ainda muito navegar, o príncipe chegou ao lugar indicado pela velha. Desembarcou sozinho, levando uma garrafa, e foi ter à casa da velha, vizinha da fonte, a qual, quando o viu, ficou muito admirada, dizendo: "Ó meu netinho, o que veio cá fazer?! Isto é um perigo; você talvez não escape. O monstro que guarda a fonte, que fica ali entre aquelas montanhas, é uma princesa encantada que tudo devora. Você procure uma ocasião em que ela esteja dormindo para poder chegar, e repare bem que quando a fera está com os olhos abertos é que está dormindo, e quando está com eles fechados é que está acordada". O príncipe tomou as sua precauções e partiu. Chegando lá na fonte avistou a fera com os olhos abertos. Estava dormindo. O mocinho se aproximou e começou a encher sua garrafa. Quando já se ia retirando, a fera acordou e lançou-se sobre ele. "Quem te mandou vir a meus reinos, mortal atrevido?" dizia o monstro; e o moço ia-se defendendo com sua espada até que feriu a fera, e com o sangue ela se desencantou; e então disse: "Eu devo me casar com aquele que me desencantou; dou-te um ano para vires me buscar para casa, senão eu te irei ver." A fera era uma princesa, a coisa mais linda que dar-se podia. Em sinal para ser o príncipe conhecido quando viesse, a princesa lhe deu uma de suas camisas.

O príncipe partiu de volta para terra de seus pais; quando chegou ao reino onde estavam seus irmãos, os levou para bordo para voltarem para seu país. Os outros príncipes seguiram com ele. O menino tinha guardado a sua garrafa no seu baú, e os irmãos queriam roubá-la para lhe fazer mal e se apresentarem ao pai como tendo sido eles que tinham alcançado a água da fonte das três comadres. Para isto propuseram ao pequeno dar-se um banquete a bordo da esquadra a toda a oficialidade, em comemoração a ter ele conseguido arranjar o remédio para o rei. O pequeno consentiu, e no banquete os seus irmãos, de propósito, propuseram muitas saúdes, com o fim de o embriagarem e poderem roubar-lhe a garrafa do baú. O pequeno de fato bebeu demais e ficou ébrio; os manos então tiraram-lhe a chave do baú, que ele trazia consigo, abriram-no e tiraram a garrafa d’água, e botaram outra no lugar, cheia de água do mar.

Quando a esquadra se apresentou na terra do rei, todos ficaram muito satisfeitos, sendo o príncipe menino recebido com muitas festas; mas quando foi botar a água nos olhos do rei, este desesperou com o ardor, e então os seus dois outros filhos, dizendo que o pequeno era um impostor, e que eles é que tinham trazido a verdadeira água, deitaram dela nos olhos do pai, o qual sentiu logo o mundo se clarear e ficou vendo, como dantes. Houve grandes festas no palácio e o príncipe mais moço foi mandado matar. Mas os matadores tiveram pena de o matar e deixaram-no numas brenhas, cortando-lhe apenas um dedo, que levaram ao rei. O menino foi dar à casa de um roceiro, que o tomou como seu escravo, e muito o maltratava. Passado um ano, chegou o tempo em que ele tinha de voltar para se ir casar, segundo tinha prometido à princesa da fonte das três comadres, e, não aparecendo ela mandou aparelhar uma esquadra muito forte, e partiu para o reino do moço príncipe, que há um ano tinha ido a seus reinos buscar um remédio, e que lhe tinha prometido casamento, isto sob pena de mandar fogo sobre a cidade. O rei ficou muito agoniado, e o mais velho de seus filhos se apresentou a bordo, dizendo que era ele. Chegando a bordo a princesa lhe disse: "Homem atrevido, que é do sinal de nosso reconhecimento?" ele, que nada tinha, nada respondeu e voltou para terra muito enfiado. Nova intimação para terra, e então foi o segundo filho do rei, mas o mesmo lhe aconteceu. A princesa mandou acender os morrões, e mandou nova intimação à terra. O rei ficou aflitíssimo, supondo que tudo se ia acabar, porque seu último filho tinha sido morto por sua ordem. Aí os dois encarregados de o matar declararam que o tinha deixado com vida, cortando-lhe apenas um dedo. Então, mais que depressa, se mandaram comissários por toda a parte procurando o príncipe, dando os sinais dele, e prometendo um prêmio a quem o trouxesse. O roceiro, que o tinha em casa, ficou mais morto do que vivo, quando soube que ele era filho do rei; botou-o logo nas costas e o levou ao palácio chorando.

O príncipe foi logo lavado e preparado com sua roupa, que a rainha tinha guardado, e que já lhe estava um pouco apertada e curta. O prazo que a princesa tinha concedido já estava a expirar, e já se iam acendendo os morrões para bombardear a cidade, quando o príncipe fez sinal de que já ia. Chegando à esquadra, foi logo reconhecido pela princesa, que lhe exigiu o sinal do reconhecimento e ele lho apresentou. Então seguiu com ela, com quem se casou e foi governar um dos mais ricos reinos do mundo. Descoberta assim a pabulage dos dois filhos mais velhos do rei, foram eles amarrados às caudas de cavalos bravos, e morreram despedaçados.


(Romero, Sílvio. Cantos populares do Brasil)