... Um dia, há de haver coisa de dez
anos, eu tinha ido ao campo, à casa de um meu compadre que mora daqui a três
léguas.
Era uma sexta-feira, ainda me lembro, como se fosse hoje.
Quando montei no meu burro para vir-me embora, já o sol estava baixinho; quando cheguei na mata, já estava escuro; fazia um luar manhoso, que ainda atrapalhava mais a vista da gente.
Já eu ia entrando na mata, quando me lembrei que era sexta-feira. Meu coração deu uma pancada e a modo que estava me pedindo que não fosse para diante. Mas fiquei com vergonha de voltar. Pois um homem, já de idade como eu, que desde criança estou acostumado a varar esses matos a toda hora do dia ou da noite, hei de agora ter medo? de quê?
Encomendei-me de todo o coração à Nossa Senhora da Abadia, tomei um bom trago na guampa que trazia sortida na garupa, joguei uma masca de fumo na boca, e toquei o burro para diante. Fui andando mas sempre cismado; todas as histórias que eu tinha ouvido contar da cova de Joaquim Paulista estavam representando na ideia: e, ainda por meus pecados, o diabo do burro não sei o que tinha nas tripas, que estava a refugar e a passarinhar numa toada.
Mas, a poder de esporas, sempre vim varando. A proporção que ia chegando perto do lugar onde está a sepultura, meu coração ia ficando pequenino. Tomei mais um trago, rezei o Creio em Deus Padre, e toquei para diante. No momento mesmo que eu ia passar pela sepultura, que eu queria passar de galope e voando se fosse possível, aí é que o diabo do burro dos meus pecados empaca de uma vez, que não houve forças de esporas que o fizesse mover.
Eu já estava decidido a me apear, largar no meio do caminho burro com sela e tudo, e correr para casa; mas não tive tempo. O que eu vi, talvez vosmicê não acredite, mas eu vi, como estou vendo este fogo: vi com estes olhos que a terra há de comer, como comeu os do pobre Joaquim Paulista... mas os dele não foi a terra que comeu, coitado! foram os urubus, e os bichos do mato. Dessa feita acabei de acreditar que ninguém morre de medo; se morresse, eu lá estaria até hoje fazendo companhia ao Joaquim Paulista. Cruz!... Ave Maria.
Aqui o velho fincou os cotovelos nos joelhos, escondeu a cabeça entre as mãos e pareceu-me que resmungou uma Ave Maria. Depois acendeu o cachimbo e continuou:
- Vosmicê se reparasse, havia de ver que aí o mato faz uma pequena aberta de banda, em que está a sepultura do Joaquim Paulista.
A lua batia de chapa na areia branca do meio da estrada. Enquanto eu estou esporeando com toda a força a barriga do burro, salta lá, no meio do caminho, uma cambada de ossinhos brancos, pulando, esbarrando uns nos outros, e estalando uma toada certa, como gente que está dançando ao toque da viola. Depois, de todos os lados, vieram vindo outros ossos maiores, saltando e dançando da mesma maneira.
Por fim de contas, veio vindo lá de dentro da sepultura, uma caveira branca como papel, e com os olhos de fogo; e dando pulos como sapo, foi-se chegando para o meio da roda. Daí começaram aqueles ossos todos a dançar em roda da caveira, que estava quieta no meio, dando de vem em quando pulos no ar, e caindo no mesmo lugar, enquanto os ossos giravam num corrupio, estalando uns nos outros, como fogo de queimada, quando pega forte num sapezal.
Eu bem queria fugir, mas não podia; meu corpo estava como estátua, meus olhos estavam pregados naquela dança dos ossos, como sapo quando enxerga cobra; meu cabelo enroscado como vosmicê está vendo, ficou em pé como espetos.
Daí a pouco os ossinhos mais miúdos, dançando sempre, batendo uns nos outros, foram-se ajuntando e formando dois pés de defunto.
Estes pés não ficam quietos, não; começam a sapatear com os outros ossos numa roda viva. Agora são os ossos das canelas que lá vêm saltando atrás dos pés, e de um pulo, trás!... se encaixam em cima dos pés. Daí a um nada vêm os ossos das coxas, dançando em roda das canelas, até que, também de um pulo, foram-se encaixar direitinho nas juntas dos joelhos. Toca agora as duas pernas que já estão prontas a dançar com os outros ossos.
Os ossos dos quadris, as costelas, os braços, todos esses ossos que ainda agora saltavam espalhados no caminho, a dançar, a dançar, foram pouco a pouco se ajuntando e embutindo uns nos outros, até que o esqueleto se apresentou inteiro, faltando só a cabeça. Pensei que nada mais teria que ver; mas ainda faltava o mais feio. O esqueleto pega na caveira e começa a fazê-la rolar pela estrada, e a fazer mil artes e piruetas; depois entra a jogar peteca com ela, e a atirá-la pelos ares mais alto, mais alto até o ponto de fazê-la sumir-se lá pelas nuvens; a caveira gemia zunindo pelos ares, e vinha estalar nos ossos da mão do esqueleto, como uma espoleta que rebenta. Afinal o esqueleto escanchou as pernas e os braços, tomando toda a largura do caminho, e esperou a cabeça, que veio cair direto no meio dos ombros, como uma cabeça oca que se rebenta em uma pedra, e olhando para mim com os olhos de fogo!...
Ah! meu amo!... eu não sei o que era feito de mim... eu estava sem fôlego, com a boca aberta, querendo gritar e sem poder, com os cabelos espetados; meu coração não batia, meus olhos não pestanejavam. O meu burro mesmo estava a tremer e encolhia-se todo, como quem queria sumir-se debaixo da terra. Oh! se eu pudesse fugir naquela hora, eu fugia ainda que tivesse de entrar pela goela de um sucuri adentro.
Mas ainda não contei tudo. O maldito esqueleto do inferno - Deus me perdoe! - não tendo mais nem um ossinho com quem dançar, assentou de divertir-se comigo, que ali estava sem um pingo de sangue, e mais morto do que vivo, e começava a dançar defronte de mim, como essas figurinhas de papelão que as crianças, com uma cordinha, fazem dar de mão e de pernas, vai-se chegando cada vez mais para perto, dá três voltas em roda de mim, dançando e estalando as ossadas, e, por fim de contas, de um pulo, encaixa-se na minha garupa...
Eu não vi mais nada depois; fiquei atordoado. Pareceu-me que o burro saiu comigo e com o maldito fantasma, zunindo pelos ares, e nos arrebatava por cima das mais altas árvores.
Valha-me Nossa Senhora da Abadia e todos os santos da corte celeste! gritava eu dentro do coração, porque a boca essa nem podia piar. Era à toa; desacorçoei, e pensando que ia por esses ares nas unhas de Satanás, esperava a cada instante ir estourar nos infernos. Meus olhos se cobriam de uma nuvem de fogo, minha cabeça começou a andar a roda, e não sei mais o que foi feito de mim.
Quando dei acordo de mim, foi no outro dia, na minha cama, a sol alto.
Quando a minha velha, de manhã cedo, foi abrir a porta, me encontrou no terreiro, estendido no chão, desacordado, e o burro selado perto de mim.
A porteira da manda estava fechada; como é que esse burro pôde entrar comigo para dentro, é que não sei. Portanto ninguém me tira da cabeça que o burro veio comigo pelos ares.
Acordei com o corpo moído, e com os miolos pesados como se fossem de chumbo, e sempre com aquele maldito estalar de ossos nos ouvidos, que me perseguiu por mais de um mês.
Mandei dizer duas missas pela alma de Joaquim Paulista, e jurei que nunca mais havia de por meus pés fora de casa em dia de sexta-feira.
(GUIMARÃES, Bernardo. Lendas e romances. São Paulo, Livraria Martins, sd. Em LACERDA, Regina (org.). Estórias e lendas de Goiás e Mato Grosso)
Era uma sexta-feira, ainda me lembro, como se fosse hoje.
Quando montei no meu burro para vir-me embora, já o sol estava baixinho; quando cheguei na mata, já estava escuro; fazia um luar manhoso, que ainda atrapalhava mais a vista da gente.
Já eu ia entrando na mata, quando me lembrei que era sexta-feira. Meu coração deu uma pancada e a modo que estava me pedindo que não fosse para diante. Mas fiquei com vergonha de voltar. Pois um homem, já de idade como eu, que desde criança estou acostumado a varar esses matos a toda hora do dia ou da noite, hei de agora ter medo? de quê?
Encomendei-me de todo o coração à Nossa Senhora da Abadia, tomei um bom trago na guampa que trazia sortida na garupa, joguei uma masca de fumo na boca, e toquei o burro para diante. Fui andando mas sempre cismado; todas as histórias que eu tinha ouvido contar da cova de Joaquim Paulista estavam representando na ideia: e, ainda por meus pecados, o diabo do burro não sei o que tinha nas tripas, que estava a refugar e a passarinhar numa toada.
Mas, a poder de esporas, sempre vim varando. A proporção que ia chegando perto do lugar onde está a sepultura, meu coração ia ficando pequenino. Tomei mais um trago, rezei o Creio em Deus Padre, e toquei para diante. No momento mesmo que eu ia passar pela sepultura, que eu queria passar de galope e voando se fosse possível, aí é que o diabo do burro dos meus pecados empaca de uma vez, que não houve forças de esporas que o fizesse mover.
Eu já estava decidido a me apear, largar no meio do caminho burro com sela e tudo, e correr para casa; mas não tive tempo. O que eu vi, talvez vosmicê não acredite, mas eu vi, como estou vendo este fogo: vi com estes olhos que a terra há de comer, como comeu os do pobre Joaquim Paulista... mas os dele não foi a terra que comeu, coitado! foram os urubus, e os bichos do mato. Dessa feita acabei de acreditar que ninguém morre de medo; se morresse, eu lá estaria até hoje fazendo companhia ao Joaquim Paulista. Cruz!... Ave Maria.
Aqui o velho fincou os cotovelos nos joelhos, escondeu a cabeça entre as mãos e pareceu-me que resmungou uma Ave Maria. Depois acendeu o cachimbo e continuou:
- Vosmicê se reparasse, havia de ver que aí o mato faz uma pequena aberta de banda, em que está a sepultura do Joaquim Paulista.
A lua batia de chapa na areia branca do meio da estrada. Enquanto eu estou esporeando com toda a força a barriga do burro, salta lá, no meio do caminho, uma cambada de ossinhos brancos, pulando, esbarrando uns nos outros, e estalando uma toada certa, como gente que está dançando ao toque da viola. Depois, de todos os lados, vieram vindo outros ossos maiores, saltando e dançando da mesma maneira.
Por fim de contas, veio vindo lá de dentro da sepultura, uma caveira branca como papel, e com os olhos de fogo; e dando pulos como sapo, foi-se chegando para o meio da roda. Daí começaram aqueles ossos todos a dançar em roda da caveira, que estava quieta no meio, dando de vem em quando pulos no ar, e caindo no mesmo lugar, enquanto os ossos giravam num corrupio, estalando uns nos outros, como fogo de queimada, quando pega forte num sapezal.
Eu bem queria fugir, mas não podia; meu corpo estava como estátua, meus olhos estavam pregados naquela dança dos ossos, como sapo quando enxerga cobra; meu cabelo enroscado como vosmicê está vendo, ficou em pé como espetos.
Daí a pouco os ossinhos mais miúdos, dançando sempre, batendo uns nos outros, foram-se ajuntando e formando dois pés de defunto.
Estes pés não ficam quietos, não; começam a sapatear com os outros ossos numa roda viva. Agora são os ossos das canelas que lá vêm saltando atrás dos pés, e de um pulo, trás!... se encaixam em cima dos pés. Daí a um nada vêm os ossos das coxas, dançando em roda das canelas, até que, também de um pulo, foram-se encaixar direitinho nas juntas dos joelhos. Toca agora as duas pernas que já estão prontas a dançar com os outros ossos.
Os ossos dos quadris, as costelas, os braços, todos esses ossos que ainda agora saltavam espalhados no caminho, a dançar, a dançar, foram pouco a pouco se ajuntando e embutindo uns nos outros, até que o esqueleto se apresentou inteiro, faltando só a cabeça. Pensei que nada mais teria que ver; mas ainda faltava o mais feio. O esqueleto pega na caveira e começa a fazê-la rolar pela estrada, e a fazer mil artes e piruetas; depois entra a jogar peteca com ela, e a atirá-la pelos ares mais alto, mais alto até o ponto de fazê-la sumir-se lá pelas nuvens; a caveira gemia zunindo pelos ares, e vinha estalar nos ossos da mão do esqueleto, como uma espoleta que rebenta. Afinal o esqueleto escanchou as pernas e os braços, tomando toda a largura do caminho, e esperou a cabeça, que veio cair direto no meio dos ombros, como uma cabeça oca que se rebenta em uma pedra, e olhando para mim com os olhos de fogo!...
Ah! meu amo!... eu não sei o que era feito de mim... eu estava sem fôlego, com a boca aberta, querendo gritar e sem poder, com os cabelos espetados; meu coração não batia, meus olhos não pestanejavam. O meu burro mesmo estava a tremer e encolhia-se todo, como quem queria sumir-se debaixo da terra. Oh! se eu pudesse fugir naquela hora, eu fugia ainda que tivesse de entrar pela goela de um sucuri adentro.
Mas ainda não contei tudo. O maldito esqueleto do inferno - Deus me perdoe! - não tendo mais nem um ossinho com quem dançar, assentou de divertir-se comigo, que ali estava sem um pingo de sangue, e mais morto do que vivo, e começava a dançar defronte de mim, como essas figurinhas de papelão que as crianças, com uma cordinha, fazem dar de mão e de pernas, vai-se chegando cada vez mais para perto, dá três voltas em roda de mim, dançando e estalando as ossadas, e, por fim de contas, de um pulo, encaixa-se na minha garupa...
Eu não vi mais nada depois; fiquei atordoado. Pareceu-me que o burro saiu comigo e com o maldito fantasma, zunindo pelos ares, e nos arrebatava por cima das mais altas árvores.
Valha-me Nossa Senhora da Abadia e todos os santos da corte celeste! gritava eu dentro do coração, porque a boca essa nem podia piar. Era à toa; desacorçoei, e pensando que ia por esses ares nas unhas de Satanás, esperava a cada instante ir estourar nos infernos. Meus olhos se cobriam de uma nuvem de fogo, minha cabeça começou a andar a roda, e não sei mais o que foi feito de mim.
Quando dei acordo de mim, foi no outro dia, na minha cama, a sol alto.
Quando a minha velha, de manhã cedo, foi abrir a porta, me encontrou no terreiro, estendido no chão, desacordado, e o burro selado perto de mim.
A porteira da manda estava fechada; como é que esse burro pôde entrar comigo para dentro, é que não sei. Portanto ninguém me tira da cabeça que o burro veio comigo pelos ares.
Acordei com o corpo moído, e com os miolos pesados como se fossem de chumbo, e sempre com aquele maldito estalar de ossos nos ouvidos, que me perseguiu por mais de um mês.
Mandei dizer duas missas pela alma de Joaquim Paulista, e jurei que nunca mais havia de por meus pés fora de casa em dia de sexta-feira.
(GUIMARÃES, Bernardo. Lendas e romances. São Paulo, Livraria Martins, sd. Em LACERDA, Regina (org.). Estórias e lendas de Goiás e Mato Grosso)
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