A BOA MULHER












Pancrácio do Morro, era assim conhecido por toda a gente o velho Pancrácio, porque habitava no alto de um morro, em sítio completamente isolado.

Tinha ele excelente esposa, o que é raro acontece; mas, o que é mais raro, conhecia o valor de semelhante tesouro.

Assim viviam em profunda paz os dois, desfrutando a sua felicidade, sem curarem da fortuna, nem do tempo. Tudo quanto Pancrácio fazia, a mulher já tinha pensado e desejado, de sorte que em nada podia mexer na casa sem que a consorte lhe agradecesse o ter-lhe adivinhado e prevenido as vontades.

Amena se lhe deslizava a existência. Era deles a fazendola, tinham dinheiro na gaveta e duas vacas no curral. Sossegados podiam ir vivendo, sem temor da fadiga e da miséria, sem que precisassem da simpatia ou compaixão dos outros.

Uma noite conversando acerca de seus trabalhos e projetos, disse Gerturudes a seu esposo:

— Tenho uma ideia: bem poderia você tomar uma das vacas e ir vendê-la na cidade; a que conservarmos chegará para nos dar manteiga e leite. Que necessidade há de nos fatigarmos para os outros? O dinheiro dorme na gaveta, não temos filhos e não seria melhor pouparmos estes braços que vão cansando?

Pancrácio achou que a mulher tinha razão, como sempre; e, logo no dia seguinte, foi à cidade com a vaca, para vendê-la. Mas não era dia de feira, e não encontrou quem lhe quisesse comprar.

— Bem, — disse — todo o mal se resume na massada de tornar a levar a vaca! Felizmente não falta capim e o bicho não morrerá no caminho.

Ao cabo de algumas horas, sentia-se um tanto fatigado e topou com um homem que conduzia o seu cavalo.

— O caminho é comprido e a noite está a cair, — pensou — no fim de contas é uma amolação ir puxando pela vaca e ter novamente de trazê-la amanhã. Este cavalo é um achado. Vendo-me nele encarapitado como um imperador romano, bem contente ficará minha mulher.

Assim refletido, fez parar o homem do cavalo e concluiu uma barganha, dando em troca a vaquinha.

Logo que montou, principiou a arrepender-se. Pancrácio era velho e pesado, o cavalo era novo, esperto e passarinheiro; meia hora depois o cavaleiro caminhava a pé, puxando com grande esforço o animal, que de vez em quando empinava.

— Ruim negócio, — murmurou consigo o Pancrácio.

E tal dizia, quando deu com os olhos em um camponês, que tocava diante de si um porco muito gordo.

— Mais vale um prego inútil do que um diamante que para nada serve, — ponderou — minha mulher sempre repete.

E trocou o cavalo pelo porco.

Era feliz a ideia, porque o bicho estava gordo, porém, de tal maneira, que nem queria andar. Pancrácio, falou, chorou, praguejou e... nada.

Estava desesperado, quando passou por outro camponês com uma cabra que, o úbere repleto de leite, saltava, corria, cabriolava com a maior vivacidade.

— Eis o que me convém! — exclamou — Vou trocar por este alegre e petulante animal e enorme ignóbil massa de banha que tão penosamente me faz sentir a sua inércia.

E realmente efetuou a troca. Tudo foi às mil maravilhas. A cabrita levava após si o Pancrácio, obrigando-o a trepar nos rochedos, o que ele fazia com joviais gargalhadas. Contudo, não tardou que o aborrecessem tais extravagâncias, e então lhe acudiu a ideia de realizar uma permuta — a da cabrita por uma ovelha.

Mais adiante, se lhe deparou o desejo de o fazer.

— Bem, — pensava.

Mas a ovelha, separada do rebanho, porfiou por voltar ao meio das companheiras, e berrava desesperadamente.

— Quem me livrará desta estúpida e aborrecida alimaria? Barato a venderia, só para me ver livre dela! — gritava.

— Vamos com isso, amigo, — interveio um transeunte — Aqui está um ganso magnífico, e que vale mais do que esse carneiro, que não tarda a rebentar.

— Está feito, — disse — Antes o ganso vivo do que carneiro morto.

E tomou o ganso debaixo do braço.

Que péssimo companheiro de viagem! Agitava pés e asas e machucava com bico o pobre Pancrácio, que chegando à primeira fazenda, deu o ganso em troca de um bonito galo, de crista rubra e variada plumagem.

Parecia tudo arranjado; mas, caindo a noite, entrou o viajante a sentir fome e frio. Urgia adotar heroica resolução. Em uma taverna vendeu o galo por um escudo, e tudo gastou em comer e beber.

— Para que me servia o galo — refletiu — se morresse faminto ou resfriado?

Perto de casa passou revista aos seus feitos daquele dia, em antes de entrar, parou à porta do vizinho Rodolfo.

— Compadre, — perguntou-lhe este — como lhe foram os negócios lá pela cidade?

Pancrácio, meio envergonhado, relatou a sua trite história.

— Vizinho, você está em apuros! Aposto como vai receber da comadre a mais terrível descalçadeira — disse o outro.

— Engana-se. Minha mulher é tão boa, que dará por bem feito tudo o que fiz.

— Duvido!

— Garanto-lhe!

Teimaram os dois e terminaram apostando cinto escudos. Rodolfo em como pela mulher seria mal recebido o esposo, e este em sentido contrário.

Entrou Pancrácio em casa, e à porta, espreitando e ouvindo, fitou o amigo.

— Mulher, — disse o marido — não achei quem me comprasse a vaca e troquei-a por um cavalo.

— Fizeste muito bem. — respondeu Gertudes.

— Não o trouxe, pois o barganhei por um belo porco...

— Exatamente como eu o faria! A vizinhança havia de dizer que o cavalo era luxo. O porco sim, diz melhor com gente da nossa condição. É preciso metê-lo já no chiqueiro.

— Mas, é que em lugar dele arranjei uma cabra.

— Uma cabra! Melhor ainda. o porco somente serveria para se comer, e poderia alguém roubar... a cabra, não; produzirá cabritinhos e há de aumentar-nos a fortuna. Onde está ela?

— Ficou a meio caminho, porque a substituí por uma ovelha...

— Que é ainda mais útil, pois fornece lã, que tecerei para fazer-te roupa.

— É verdade; mas também troquei-a por um ganso.

— Bom marido! receaste dar-me que fazer com tanta lã. Ao ganso basta arrancar a penugem e, mas tarde, comê-lo com arroz.

— Sim, mas é que em vez do ganso, deliberei trazer-te um galo.

— Excelente para as nossas galinhas! Acordar-nos-á de madrugada, e só isto dispensa o relógio...

— Também não tenho mais o galo,mulher... Vendi-o para comer no meio da jornada.

— Louvado seja Deus, que bem fizeste! — retorquiu a caseira — não cantando o galo, dormiremos mais um pouquinho pela manhã... além de que, a tua saúde antes de tudo.

Então Pancrácio abriu a porta.

— Compadre, — disse a Rodolfo — venham de lá os vinte escudos.

— É verdade! Quem tem uma boa mulher nunca se julga desgraçado... Em casa e com meigas palavras pode remediar todos os contratempos e dissabores de que pelos caminhos da vida um homem se vê acometido.


(Padilha, Viriato. Histórias do arco da velha; livro para crianças. Nova edição. Rio de Janeiro, Livraria Quaresma, 1959. Biblioteca Infantil da Livraria Quaresma, p.128-133)

NINI E AS CHUVAS DE MARÇO








Desde que tivera a ajuda dos meninos morcegos, a vida da Joaninha Nini, mudara completamente.
Antes do ocorrido, fora um pequeno ser sem gosto por viver.Nascera sem bolinhas na sua carapaça. Foram Zico e Zica que lhe devolveram a felicidade ao colarem confetes vermelhos as suas asas.
Os morceguinhos tinham desaparecido.Nini ouvira falar que tinham desmanchado o velho casebre.Ela ficara triste, pois ambos tinham mostrado-se verdadeiros amigos para ela.
Na vida, como na natureza, existem seres das mais variadas espécies, com os mais diferentes tipos de sentimentos.
No jardim, onde vivia a nossa joaninha, quase todos já tinham percebido que suas bolinhas não eram naturais.Afinal, não existem joaninhas pretas com bolinhas vermelhas.Mas como ela, mostrava-se feliz, muito feliz assim, todos os animais fizeram um pacto de silêncio e nada disseram a ela.
Passaram-se os dias e Nini era só felicidade.Cantava lindas canções, voava de flor em flor exibindo sua nova roupagem.
Março chegou e com ele mais alguém apareceu de mudanças para o jardim – Zuzu, uma joaninha muita exibida e cheia de si.Tinha uma bela carapaça vermelha com exuberantes bolinhas pretas.
Samuel, um grilo muito amigo de Nini, foi o primeiro que viu a nova moradora do jardim.
_ Boa tarde! – disse ele _ Tu és nova por aqui?
Zuzu mediu o grilo dos pés à cabeça com o olhar.Como uma criatura tão feia dignava-se lhe dirigir a palavra.
_ Quem tu és, criatura feiosa? – resmungou ela.
Samuel levou um susto, nunca fora tratado daquele jeito, mas mesmo assim, mostrou sua educação.
_ Senhora Joaninha, eu sou Samuel! Eu estou sendo educado e quero dar-lhe as boas vindas ao nosso jardim!
_ Criatura feiosa! Eu não preciso da sua atenção! Sou Zuzu, a joaninha mais linda do mundo.Todos admiram a beleza da minha cor a das minhas bolinhas. Não há ninguém mais bonita do que eu!
Samuel deu ás costas e saiu.Nunca vira uma criatura tão

petulante.Pensou em Nini.Como as duas eram tão diferentes! Esta Zuzu poderia fazer mal a sua boa amiga.
Zuzu instalou-se sob um pé de roseira.Era a flor ideal para servir-lhe de morada, pois as rosas eram tão belas quanto ela.
Dias depois. Nini voava tranquilamente, quando viu a figura de Zuzu próxima à roseira. Desceu até ela e de pronto, encantou-se com aquela exuberante figura.
Zuzu, ao contrário, ao avistar Nini, desmanchou-se numa risada sarcástica.
_ O que és tu, criatura esdrúxula?
_ Eu sou a Joaninha Nini? – respondeu, humildemente.
_ Joaninha? Não sejas ridícula! Onde já se viu uma joaninha preta com bolinhas vermelhas.Tu és uma aberração da natureza!
Após dizer, estas duras palavras, Zuzu, afastou-se voando.
Nini ficou paralisada, sentia-se em estado de choque. Como uma criatura tão bonita como Zuzu poderia ter dito aquilo. Ela sabia que suas bolinhas não eram verdadeiras, mas sentia-se feliz com elas...Bolinhas vermelhas...Bolinhas pretas...Afinal, como era ser uma joaninha de verdade?
Com o coração cheio de tristeza, Nini pôs-se em direção da casa de Samuel.Seus olhos estavam marejados de lágrimas.


_ O que houve, Nini? Por que tanta triste?
_ Eu encontrei uma linda joaninha...
_ Já sei! A tal Zuzu, aquela que é bonita, mas perversa. O que ela disse a ti?
_ Eu sou uma aberração da natureza! Não existem joaninhas pretas com bolinhas vermelhas!
Nini chorou, chorou cada vez mais.Samuel esperou que ela se acalmasse e depois lhe falou:
_ Escute, Nini! Tu és uma joaninha muito boa, amiga de todos. Nós gostamos muito de ti, assim do jeito que és!
_ Mas eu não tenho carapaça vermelha e bolinhas pretas!
_ Isto não importa! Tu és feliz da maneira que és!Sempre acompanhamos a tua vida. Eras tristes até o dia que aqueles morceguinhos colocaram em ti as bolinhas de confete.Hoje, és alegre e assim que deves ser! Não importa o que os outros dizem.
_ Tens razão, Samuel! Devo fazer ouvido mouco a essa tal Zuzu. Obrigada, meu amigo!
Assim, a Joaninha Nini, voltou para sua casinha sob a folha de Monstera.
Estamos no mês de março, época de muitas chuvas.
Os moradores do jardim resolveram fazer uma festa ao ar livre.Todos foram convidados, até mesmo Zuzu, que resolveu aceitar. Andava sentindo-se uma tanto entediada. Era muito chato ser linda, lustrosa e brilhante.
A festa corria maravilhosa, muita música, muita comida, muita dança. A animação era geral, Zuzu estava, realmente, empolgada... Aqueles feiosos podiam ser divertidos.
Em meio à folia, as águas de março abalaram-se dos céus sobre nossos dançarinos. Foi um corre – corre geral.


De repente, ouve-se uma sonora gargalhada. Era Samuel e Nini.
A chuva caira sobre Zuzu, lavando toda tinta com a qual ela pintara as suas asas.Era um mosaico de vermelho e preto que escorria pelas asas da pretensiosa joaninha - que era tão bela.
Zuzu voou para longe e ninguém nunca mais ouviu falar dela.
Nini continuou sendo uma joaninha feliz e acreditando num velho ditado – “Nem tudo o que reluz é ouro!”.





Denise de Souza Severgnini