Buiú é um guri que anda pelas ruas da cidade ajudando seu pai e sua mãe a catar papel, latas de alumínio e tudo que pode ser vendido e reaproveitado. Gosta muito de correr pela calçada com seu amigo Biguá. Este é um cachorrinho muito esperto que um dia resolveu abandonar sua casa, que era muito grande e bonita, para acompanhar Buiú pelas ruas da cidade.
Biguá é um cachorro muito esperto, gosta de correr por entre os carros, árvores, postes e pessoas que encontra pelo caminho.
Um dia, enquanto brincava de esconder ossos de galinha que havia encontrado ao lado de um carrinho de pipoca, descobriu uma minhoca que muito brava lhe disse:
- Pare com isso cachorrinho. Eu gosto de sossego e você está me perturbando. O sol está quente e eu preciso me acomodar neste cantinho úmido. De noite preciso cavar os buraquinhos na terra para torna-la mais fértil.
Bigua ficou assustado. Latiu duas vezes, rodopiou e ficou olhando desconfiado para aquele bichinho comprido e mal humorado.
Buiú correu para ver o que estava acontecendo.
-Biguá, o que aconteceu? Venha, temos muito que andar. Não pense que posso ficar te esperando. Papai tem pressa, o sol já vai dormir e muito papel ainda está pelo caminho.
Biguá ficou pensando, "como pode um bichinho tão comprido e birrento morar embaixo da terra e ainda trabalhar o tempo todo fazendo túneis para por ovos e criar seus filhos? Será que eu faço alguma coisa importante? Preciso pensar em algo para me tornar útil e assim todos reconhecerem o meu esforço e inteligência."
Depois de muito andar chegaram em casa.Enquanto papai descarregava os papeis, os jornais velhos e o resto todo, Buiú foi para seu cantinho fazer os deveres da escola. Mamãe foi esquentar a comida para todos. Era apenas um caldo com verduras e arroz. Buiú pegou seu prato e foi se acomodar na soleira da porta. Papai entrou e em silêncio comeu um pedaço de pão com a sopa. Biguá estirado ao lado do fogão de lenha. Observava enquanto esperava sua vez de comer. Percebeu então, que mamãe raspou duas colheradas da sopa que restou na panela e escondendo o rosto chorava em silêncio. A noite escura e a economia de querosene fizeram com que todos fossem dormir mais cedo. Biguá lambeu algumas migalhas de pão caídas no chão e se encolheu no seu cantinho.
No outro dia bem cedinho Biguá já corria no terreiro enquanto Buiú se aprontava para a escola. Papai saiu com o carrinho vazio, carregando em cima Buiú e Biguá até a escola. O menino ia estudar e o cachorrinho ficava no portão esperando por ele. Buiú sempre dava um jeito de lhe trazer um pouco da merenda. O tempo demorava a passar e Biguá ficava ansioso para voltar a correr pelas ruas atrás do carrinho que eles iam encontrar sempre que terminavam as aulas. Buiú saiu mais cedo. O sol estava lindo e a cidade muito movimentada.Buiú estava feliz e Biguá pulava alegremente.
Era sexta feira, o final de semana os deixava cheios de alegria, pois teriam muito tempo para brincar e imaginar aventuras. Também era dia do papai vender a coleta de papeis e latas de toda a semana e quem sabe com o dinheiro no bolso não se tornasse mais amigo e brincalhão como era antes, quando trabalhava na fábrica.
Buiú encontrou seu pai na praça sentado no banco que ficava em frente da sorveteria. Achou estranho:
-Papai o que aconteceu? Está com dor na memória novamente? Deixe, eu empurro o carrinho. Venha papai, mamãe faz remédio de ervas, o senhor vai melhorar.
Buiú empurrava o carrinho com muita dificuldade e esforço. Biguá pressentindo problemas baixou as orelhas e seguiu cabisbaixo seu amiguinho. O menino olhava para traz esperando pelo seu pai. Pensava: "justo hoje que mamãe não acompanha o serviço, papai teve que passar mal. Sempre que ele entrava naquele bar saía com dor na memória, segundo dizia.
- Meu filho, o homem de bem e fracassado, que perde a dignidade sofre de dor na memória. Tudo que o torna infeliz é a memória. É nela que a gente guarda tudo que a vida nos deu e tudo que a vida nos tirou. Depois de algum tempo, quando o sonho de mãos dadas com esperança parte numa viagem sem promessa de voltar, sobra o ressentimento e a gente sente pena de nós mesmos.
-Vamos para casa papai, Seu Chico ajuda. Vamos vender a produção da semana. Mamãe vai à vendinha, ela compra linguiça e macarrão. A gente faz um bom almoço domingo, depois da missa. A memória vai ficar boa, nós vamos brincar de futebol no campinho.Seus amigos vão estar lá, vamos paizinho, por favor.
Seu Antonio estava realmente alterado. De repente aquele homem que dava duro e embora catando papeis nunca perdera e esperança de voltar e exercer sua profissão de ferramenteiro na indústria de automóvel, sentia-se desesperançado. Dois anos de busca e espera pelo emprego que perdera o qual sabia exercer com competência. A família que sonhara, a mulher que amava, o filho querido e inteligente que tiveram se tornavam uma carga pesada para sua dignidade humilhada. Tá certo, ele também não teve uma infância fácil. Mas pôde sonhar. Sua realidade na infância foi o céu sempre sem nuvens, o vento constante, a plantação de macaxeira, os pés descalços, a fumaça da lata com carvão ou gravetos que esquentava a farinha com caldo de feijão e carne salgada. Aos domingos no lombo do jumento tudo que a família conseguia produzir para vender na feira da cidade. Quando lá chegava, Tonho corria para frente do cinema e se permitia sonhar com os heróis dos filmes americanos em que todos os justos sempre venciam. Algumas vezes, burlando a vigilância dos porteiros, conseguiam assistir Zorro defendendo os pobres e injustiçados dos mal feitores, geralmente apoiados por políticos, fazendeiros e banqueiros.
Buiú levou seu pai para casa. Mamãe com um ar de cansaço e resignação colocou-o na cama. Biguá ressabiado pegou um pé de chinelo e se aconchegou embaixo da rede. Buiú sentou aos pés da cama e com segurança comentou com mamãe:
-Mamãe, os papéis, as latas e tudo o mais precisam ser vendidos. Vamos pegar o dinheiro e levar papai ao postinho. O Dr Felipe disse que podia ir à qualquer hora. E foram.
Papai tomou injeção na veia. Chorou bastante. Depois deu risada, pegou Buiú pela mão e já refeito ia dizendo:
- Meu filho, amanhã depois do almoço vamos bater uma bolinha. Vou fazer um gol para você, pode esperar.
Buiú ficou contente, esqueceu rapidamente o acontecido.
No domingo, depois da missa, almoçaram linguiça frita com macarrão, beberam refrigerante de limão e deram risada com os pulos de Biguá que com o chinelo na boca estava feliz com a felicidade de todos.
Buiú sentou na beirada de um barranco. Biguá encostou-se no menino, esticou um olhar de sono e dormiu ao sol. A tarde estava quente e papai corria pelo campo de terra perseguindo o gol prometido. De repente o juiz marcou um pênalti. Os jogadores discutem. Buiú se levanta gritando:
-Pai, você vai bater. Bate papai.
Realmente seu pai foi incumbido de chutar. Buiú sente o coração descompassado. Papai chuta, Buiú fecha os olhos. Biguá que acordara com tanta gritaria cobre os olhos com as duas patinhas da frente. Buiú retirou lentamente as mãos do rosto e viu seu pai caído. Os outros jogadores, tentavam reanima-lo, alguns gritavam desesperados por socorro, outros sentados escondiam o rosto e soluçavam. Papai havia morrido. Buiú correu para o seu lado. Biguá ficou cavando o chão sem parar como se tivesse procurando na terra a explicação para tudo aquilo. Mamãe chegou correndo e gritando. Ajoelhou-se, e muito tempo ficou olhando o rosto de seu marido. Seus pensamentos retrocederam e um filme de toda a sua vida com aquele homem passou pele sua cabeça.
Escurecia, mamãe levantou, pegou Buiú pela mão, andou até sua casa, esquentou o que restou do almoço serviu seu filho, sentou-se na cama e disse:
-Seu pai marcou aquele gol Buiú. Toda a vida dele foi um gol de placa, não se esqueça disso.
Quando amanheceu Buiú pegou o carrinho e saiu para catar papel como seu pai fazia todas as manhãs. Olhou para trás e viu mamãe abanando com um sorriso de orgulho e esperança nos lábios e a certeza de que seu filho seria um homem de verdade, talvez um doutor.
Biguá sumira. A noite toda passou escondido por entre um monte de pneus velhos. Não sabia se comportar perante tanta tristeza. Durante a noite as estrelas o ouviram chorar baixinho bem daquele jeito que os cachorros choram quando não querem que percebam. O vento mais frio invadiu seu abrigo e Biguá pensou em voltar para a sua casa rica. Mas, quando pela manhã viu ao longe Buiú e seu carrinho indo para o trabalho esqueceu de tudo e correu para junto de seu amigo. Enquanto corria pensava: " será que a amizade a lealdade e o amor é que vão me tornar importante e útil como aquela minhoca que encontrei aquele dia? "
O Sol brilhava contente, o menino e seu cachorro foram desaparecendo no meio do trânsito e das pessoas mas uma luz azul muito brilhante marcava o caminho que eles percorriam.
Humberto Bley Menezes
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