— Coitada de vovó! – disse um dia Narizinho. De tanto contar histórias ficou
que nem bagaço de caju; a gente espreme e não sai mais nem um pingo.
Era a pura verdade aquilo – tão verdade que a boa senhora teve de escrever
a um livreiro de São Paulo, pedindo que lhe mandasse quanto livro fosse aparecendo.
O livreiro assim fez. Mandou um e depois outro e depois outro e por fim mandou
o Pinóquio.
— Viva! – exclamou Pedrinho quando o correio entregou o pacote. Vou lê-lo
para mim só, debaixo da jabuticabeira.
— Alto lá! – interveio dona Benta. Quem vai ler o Pinóquio para que todos
ouçam, sou eu, e só lerei três capítulos por dia, de modo que o livro dure e
nosso prazer se prolongue. A sabedoria da vida é essa.
— Que pena! – murmurou o menino fazendo bico. Não fosse a tal sa-be-do-ri-a
da vida, que nunca vi mais gorda, e hoje mesmo eu dava conta do livro e ficava
sabendo toda a história do Pinóquio. Mas não! Temos de ir na toada de carro de
boi em dia de sol quente – nhen, nhen, nhen...
Sua zanga, porém, não durou muito, e assim que chegou a noite e tia
Nastácia acendeu o lampião e gritou o “É hora!”, ninguém se mostrava
mais assanhado que ele.
— Leia da sua moda, vovó! – pediu Narizinho.
A moda de dona Benta ler era boa. Lia “diferente” dos livros. Como quase
todos os livros para crianças que há no Brasil são muito sem graça, cheios de termos
do tempo da onça ou só usados em Portugal, a boa velha lia traduzindo aquele
português de defunto em língua do Brasil de hoje. Onde estava, por exemplo,
“lume”, lia “fogo”; onde estava “lareira” lia “varanda”. E sempre que dava com
um “botou-o” ou “comeu-o”, lia “botou ele”, “comeu ele” – e ficava o dobro mais
interessante.
LOBATO,
Monteiro. Reinações de Narizinho, in Obra Infantil Completa. Vol. 1. Ed.
Centenário
(1882-1982).
São Paulo: Brasiliense, p.102.
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