Foi assim. Escute:
Tio João, açoriano por parte de pai e mãe, louro, de olhos azuis,
parecia um alemão. Mas não era. Português puro. Das Ilhas. Casou com uma
ruivinha de origem alemã, dona Olga, trabalhadeira e buenacha como só ela.
Depois de um ano de casados, nasceu o primeiro filho — o Joãozinho, lindo e
gorducho que até parecia um anjo do céu de tão mimoso! E vivo como quê.
Pois essa criança quase que se foi, junto com a mãe, semanas depois de
nascido, por causa da tal cobra.
Tio João morava numa casa de santa fé, legítima casa de gaúcho, paredes
de torrão, quando nasceu o piá, e isto porque estava esperando que lhe
aprontassem a casa que mandara construir pelo "dr." Pedreira, velhote
curioso que enriquecera levantando casas pros moradores em terrenos da
companhia das Minas de carvão...
Cinco dias depois de nascido, o guri acordou, de madrugada, chorando que
dava pena. A mãe, que acordara sem leite, não sabia porque a criança chorava
daquele modo. Chamaram o doutor. Veio, examinou e nada encontrou na criança.
Tudo bem. Durante o dia mamava, dormia e ficava sossegada. Mas de noite, era
aquele berbezum. Acordava de madrugada chorando que era um desespero.
E o tempo foi passando, sempre no mesmo. Fizeram tudo, até benzedura.
Nada adiantou. E a criança ia emagrecendo dia a dia, e a mãe também.
No fim de seis semanas a criança estava que era pele e osso e dona Olga
parecia cair de magra. Um horror! E olhe que ela era uma mulher e tanto.
Remédio e mais remédio. Benzedura e mais benzedura. Simpatias e outras
coisas. Tudo em vão.
O desespero invadiu a casa e todo o vizindário estava alarmado com o
causo.
O verão chegara e o calor era intenso. Uma noite, como não aguentasse
mais dentro do rancho, tio João, lá pelas tantas, acordou e resolveu chegar à
janela. A lua brilhava com intensidade. A noite, de tão clara parecia dia. Tio
João pensou em dar uma volta pelo terreiro. E ao voltar-se um raio lindo da lua
batia em cheio na cama do casal, onde dona Olga, fraca e esgotada dormia ao lado
do pequeno. Olhou o quadro e duas lágrimas lhe rolaram, dos olhos muitos azuis,
cor daquele céu que a lua prateava. Ia sair do quarto quando uma coisa
qualquer, escura, se mexeu de mansinho em cima do alvo lençol. Assustado,
inclinou-se sobre o leito e viu, estarrecido enorme cobra que se afastava
serenamente! gorda e lustrosa! Tinha, ainda, na boca da criança, a ponta do
rabo. E viu, também, que Joãozinho chupava-o para valer!
Devagarinho, pra não acordar a dona e assustá-la, tio João, que então
compreendeu a causa daquela definhação toda, afastou-se um pouco para dar tempo
a que a cobra descesse e seguisse seu caminho.
Desceu pelo pé do leito e, rastejado preguiçosamente, desapareceu por um
buraco da parede junto ao chão de terra batida. Chegando à janela, viu-a no
terreiro. De mansinho por ali mesmo e, armando-se de uma acha de lenha,
esmagou-a com fúria.
Mas como dizem que quando se mata uma cobra a companheira aparece alguns
dias depois, à procura do matador, tio João nada disse à esposa, nem a ninguém.
Ficou esperando a companheira. Na noite seguinte ela apareceu, que de certo
eram sócias no leite de dona Olga, as malvadas! — e sem cerimônia atravessou o
terreiro e rumou direitinho pro buraco! E foi logo entrando. Então tio João
agarrou-a pelo rabo e — zás! — deu com ela no terreiro como se fosse açoiteira
de velho, espatifando-a. Fechou o buraco com todo o cuidado e foi dormir.
E dormiu como um justo.
No outro dia contou tudo.
E o mistério se explicou.
Daí por diante a coisa endireitou de novo. Dona Olga recuperou a saúde e
a disposição e o piasote engordou outra vez que era um gosto. Tornou-se o mais
lindo e robusto guri da zona. E teve mais quatro irmãos, dois homens e duas
mulheres. Lindos todos!
Por isso tomem cuidado! Mulher que amamenta, mesmo nas cidades, deve
dormir em quarto bem fechado. Não vá alguma "cobra sabida" entrar e
fazer as suas...
Cobra, seu moço, é o diabo. E isto desde que o mundo é mundo...
(Spalding, Walter.
"Cobra sabida". Jornal do Dia. Porto Alegre, 07 de abril de
1957)
Nenhum comentário:
Postar um comentário