Era uma vez uma galinha que estava mariscando debaixo duma pimenteira.
Nisso, cai-lhe sobre o cocuruto uma pimentinha madura. Ela, assustada com o
ardor na crista, saiu em louca disparada, esvoaçando as asas. Mais adiante,
encontrou o galo e disse, cacarejando: "Corre, corre, dom Galo, que o
mundo está pra se acabar! Quem disse a dona Galinha foi o cocuruque dela que
tanto adivinha!" Saíram os dois na carreira, até encontrarem com o pato. E
disse-lhe o galo: Corre, corre, dom Pato, que o mundo está pra se acabar! Quem
disse a dom Galo foi dona Galinha, quem disse a dona Galinha foi o cocuruque
dela que tanto adivinha!" E saíram os três a correr, desatinados. Adiante,
encontraram o peru. E disse então o pato: Corre, corre, dom peru, que o mundo
está pra se acabar! Quem disse a dom Pato foi dom Galo, quem disse a dom Galo
foi dona Galinha, quem disse a dona Galinha foi o cocuruque dela que tanto
adivinha!" Saíram os quatro correndo quando encontraram, no caminho, o
ganso. E disse-lhe o peru: Corre, corre, dom Ganso, que o mundo está pra se
acabar! Quem disse a dom Peru foi dom Pato, quem disse a dom Pato foi dom Galo,
quem disse a dom Galo foi dona Galinha, quem disse a dona Galinha foi o
cocuruque dela que tanto adivinha!"
E lá se foram todos a correr amedrontados, estrada a fora, avisando os bichos que encontravam: dom Porco, dom Carneiro, dom Boi, dom Cachorro, dom Gato, dom Rato e outros animais, e a todos iam dando a nova apavorante: o mundo vai se acabar! Aquela multidão de bichos encontrou, afinal, um velho bem velhinho, que tropegamente, ia pela estrada. E disse-lhe o último dos bichos avisados — a andorinha: "Corre, corre, dom Velho, que o mundo está pra se acabar! Quem disse a dona Andorinha foi... quem disse a dom Ganso foi dom Peru, quem disse a dom Peru foi dom Pato, quem disse a dom Pato foi dom Galo, quem disse a dom Galo foi dona Galinha, quem disse a dona Galinha foi o cocuruque dela que tanto adivinha!" Saíram todos correndo, o velhinho à frente, quando, ao passarem por uma ponte, o velho tropeça num buraco e, coitado! quebra a perna.
(Aí, quem conta a história pergunta aos ouvintes: quem foi o culpado do velho quebrar a perna? — Quem, leitor amigo?, pergunto eu. A resposta, naturalmente, é que foi a andorinha (que falou ao velho) ou que foi a galinha, causadora do alvoroço geral. Quem foi? — a andorinha! a galinha! Então — responde quem conta a história: Ora, m... pra quem tanto adivinha...
Esta versão capixaba (mateense) que já inúmeras vezes tenho ouvido contada por gente sisuda e de respeito... No fecho dela — como se viu — se encaixa uma velha pega infantil, tirada a conhecida adivinhação (citada, por exemplo, no livro Namoros com a medicina, de Mário de Andrade (Porto Alegre, Livraria Globo, 1939, p. 90), ou nos Enigmas populares, de José Maria de Melo, de José Maria de Melo (Rio de Janeiro, sd, p.38), assim enunciada: "o que é, o que é, vai a um canto e faz có có có?" (ou "O que é que vai a um canto, faz có có có e põe um ovo?"). A resposta imediata será galinha. E a pega: "Pois m... para quem tanto adivinha..."
Conheço outra versão dessa mesma história, mas sem o final o seu tanto escatológico. Está ela no clássico livro de Basílio de Magalhães, O folclore no Brasil (Rio de Janeiro, 1939, p.194), obra que divulga uma série preciosa de contos populares, recolhidos da tradição oral pelo doutor João da Silva Campos, no Recôncavo da Bahia. A historinha tem aí o título de A raposa e as aves, e começa assim: "A galinha estava ciscando debaixo de um limoeiro, quando lhe caiu um limãozinho peco no cocuruto. A bichinha espantou e fez: — Cá, cá, cá, cá... Corra, amigo galo, que o mundo está para se acabar. — Quem lhe disse, amiga galinha? — Foi uma coisinha que caiu no meu cocurutinho. Lá saíram os dois nas carreiras. Adiante encontraram o peru, a quem disse o galo: — Corra, amigo peru, que o mundo está para se acabar." Prossegue a história no mesmo corre-corre e no mesmo diálogo, em que entram, além dos dois referidos, mais o pato, o ganso, o conquém etc., até esbarrarem com a raposa. E assim termina o conto: "Continuaram a correr, a correr, até que chegaram à casa da raposa. Então disse a raposa: — Entrem aqui em minha casa e se escondam. Entraram todos e a raposa ficou na porta. Depois de passado algum tempo, disse a raposa: Já podem sair, mas venham de um em um. Os pobres dos bichos foram saindo e a raposa passando-os no papo. Não ficou um só para remédio..."
Como se vê, as duas histórias são idênticas, embora a recolhida por Silva Campos se possa incluir no chamado "ciclo da raposa", patenteando-lhe a proverbial esperteza.
A variante capixaba substitui o fecho pela facécia mal odorante, transformando o velho conto em armadilha para... quem tanto adivinha.
Ao leitor ou leitora, escandalizados com a história que acima lhes contei, prefiro dizer, como desculpa, aproveitando uma quadrinha popular referida por mestre Câmara Cascudo (Contos tradicionais do Brasil, Rio de Janeiro, 1946, p.22):
E como encontraram
Tal qual encontrei
Assim me contaram
Assim vos contei!...
(Neves, Guilherme Santos. "Corre dom galo, que o mundo vai se acabar!". A Gazeta, Vitória, 14 de julho de 1960)
E lá se foram todos a correr amedrontados, estrada a fora, avisando os bichos que encontravam: dom Porco, dom Carneiro, dom Boi, dom Cachorro, dom Gato, dom Rato e outros animais, e a todos iam dando a nova apavorante: o mundo vai se acabar! Aquela multidão de bichos encontrou, afinal, um velho bem velhinho, que tropegamente, ia pela estrada. E disse-lhe o último dos bichos avisados — a andorinha: "Corre, corre, dom Velho, que o mundo está pra se acabar! Quem disse a dona Andorinha foi... quem disse a dom Ganso foi dom Peru, quem disse a dom Peru foi dom Pato, quem disse a dom Pato foi dom Galo, quem disse a dom Galo foi dona Galinha, quem disse a dona Galinha foi o cocuruque dela que tanto adivinha!" Saíram todos correndo, o velhinho à frente, quando, ao passarem por uma ponte, o velho tropeça num buraco e, coitado! quebra a perna.
(Aí, quem conta a história pergunta aos ouvintes: quem foi o culpado do velho quebrar a perna? — Quem, leitor amigo?, pergunto eu. A resposta, naturalmente, é que foi a andorinha (que falou ao velho) ou que foi a galinha, causadora do alvoroço geral. Quem foi? — a andorinha! a galinha! Então — responde quem conta a história: Ora, m... pra quem tanto adivinha...
Esta versão capixaba (mateense) que já inúmeras vezes tenho ouvido contada por gente sisuda e de respeito... No fecho dela — como se viu — se encaixa uma velha pega infantil, tirada a conhecida adivinhação (citada, por exemplo, no livro Namoros com a medicina, de Mário de Andrade (Porto Alegre, Livraria Globo, 1939, p. 90), ou nos Enigmas populares, de José Maria de Melo, de José Maria de Melo (Rio de Janeiro, sd, p.38), assim enunciada: "o que é, o que é, vai a um canto e faz có có có?" (ou "O que é que vai a um canto, faz có có có e põe um ovo?"). A resposta imediata será galinha. E a pega: "Pois m... para quem tanto adivinha..."
Conheço outra versão dessa mesma história, mas sem o final o seu tanto escatológico. Está ela no clássico livro de Basílio de Magalhães, O folclore no Brasil (Rio de Janeiro, 1939, p.194), obra que divulga uma série preciosa de contos populares, recolhidos da tradição oral pelo doutor João da Silva Campos, no Recôncavo da Bahia. A historinha tem aí o título de A raposa e as aves, e começa assim: "A galinha estava ciscando debaixo de um limoeiro, quando lhe caiu um limãozinho peco no cocuruto. A bichinha espantou e fez: — Cá, cá, cá, cá... Corra, amigo galo, que o mundo está para se acabar. — Quem lhe disse, amiga galinha? — Foi uma coisinha que caiu no meu cocurutinho. Lá saíram os dois nas carreiras. Adiante encontraram o peru, a quem disse o galo: — Corra, amigo peru, que o mundo está para se acabar." Prossegue a história no mesmo corre-corre e no mesmo diálogo, em que entram, além dos dois referidos, mais o pato, o ganso, o conquém etc., até esbarrarem com a raposa. E assim termina o conto: "Continuaram a correr, a correr, até que chegaram à casa da raposa. Então disse a raposa: — Entrem aqui em minha casa e se escondam. Entraram todos e a raposa ficou na porta. Depois de passado algum tempo, disse a raposa: Já podem sair, mas venham de um em um. Os pobres dos bichos foram saindo e a raposa passando-os no papo. Não ficou um só para remédio..."
Como se vê, as duas histórias são idênticas, embora a recolhida por Silva Campos se possa incluir no chamado "ciclo da raposa", patenteando-lhe a proverbial esperteza.
A variante capixaba substitui o fecho pela facécia mal odorante, transformando o velho conto em armadilha para... quem tanto adivinha.
Ao leitor ou leitora, escandalizados com a história que acima lhes contei, prefiro dizer, como desculpa, aproveitando uma quadrinha popular referida por mestre Câmara Cascudo (Contos tradicionais do Brasil, Rio de Janeiro, 1946, p.22):
E como encontraram
Tal qual encontrei
Assim me contaram
Assim vos contei!...
(Neves, Guilherme Santos. "Corre dom galo, que o mundo vai se acabar!". A Gazeta, Vitória, 14 de julho de 1960)
Muito legal! Fez-me lembrar das histórias de minha infância! Ainda bem que algumas pessoas registraram essas histórias na Internet para que as novas gerações possam conhecê-las também, e elas não se percam no esquecimento.
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