Um casal teve um filho tão
grande que era uma coisa por demais. Meses depois o homem e a mulher morriam e
a criança foi criada por uma burra. O menino formou, botou corpo, e só o
chamavam Filho da Burra.
Já grande, Filho da Burra foi
ganhar a vida e empregou-se num reinado onde mandou fazer uma bengala de ferro.
O ferreiro fez uma bengala da grossura de um braço e Filho da Burra quando
experimentou dobrou o ferro como se fosse um fio de arame. Mandou fazer outra,
mais grossa, que ficou do seu gosto.
Como o seu patrão não o podia
sustentar, porque ele comia dois bois por dia e quatro sacas de farinha, o
rapaz largou o emprego e saiu pelo mundo. Encontrou um homem arrancando pé de
pau com raízes e tudo e rolando para um lado.
— Como você se chama?
— Me chamo Rola-Pau!
— Vamos ganhara vida
juntos?
— Vamos!
Saíram os dois e lá adiante
viram outro camarada que empurrava as pedras como se fosse brinquedo, tirando
todas do lugar.
— Como se chama você?
— Me chamo Rola-Pedra.
— Vamos ganhar a vida juntos?
— Vamos!
Foram os três andando até que
pararam numa campina bonita e aí ficaram. Fizeram uma casinha de palha e todo
dia, dois iam caçar e um ficava para fazer a comida num tacho bem grande. Ficou
Rola-Pau e os companheiros foram para os matos.
Quando o almoço ia ficando
pronto apareceu um bicho enorme roncando e pedindo todo de comer.
— Ou como o almoço ou como você!
Rola-Pau trepou-se na cocuruta
da casinha, com um medo doido e o bichão devorou o almoço todo. Quando Filho da
Burra e Rola-Pedra voltaram e não viram a comida, ficaram para morrer de raiva.
Ficou então Rola-Pedra e, nas horas costumeiras, o bicho chegou e Rola-Pedra
botou-se a ele brigando. Brigaram muito tempo e Rola-Pedra vendo que morria,
largou e deu uma carreira de levantar poeira. Filho da Burra, quando chegou e
não teve almoço, teve uma raiva danada.
No terceiro dia ficou ele
preparando a comida. O bicho apareceu com a mesma conversa. Filho da Burra
largou-lhe uma bengalada com a bengala de ferro que pegou bem no focinho do
bicho e este não quis mais peleja. Ganhou os matos e Filho da Burra foi atrás,
pega aqui, pega acolá, até que o bicho pulou num buraco e sumiu-se de terra a
dentro. Filho da Burra marcou bem o canto e voltou para a casinha.
No outro dia veio com os dois
companheiros e trouxeram o tacho amarrado numas cordas compridas. Filho da
Burra meteu-se no tacho e os dois arriaram até embaixo. Lá no fundo da terra
era espaçoso e tinha casas. Na primeira casa que Filho da Burra bateu apareceu
uma moça bonita e disse que, pelo amor de Deus, ele fosse embora porque ali
vivia uma serpente que matava toda a gente. O rapaz respondeu que viera para
lutar com a serpente e matá-la. A moça explicou:
— Não pode ser. Quando ela cansa
de brigar e cai para uma banda, pede pão e vinho. Come e bebe e fica de novo
forte, vencendo todo o mundo.
— Pois a senhora, se quiser
ficar livre, em vez de dar o vinho e o pão à serpente, dê a mim!
A moça prometeu. A serpente foi
chegando, quebrando árvores e fazendo um barulho de ventania. O rapaz
escondeu-se detrás da porta. A serpente foi entrando e fungando:
— Aqui me cheira a sangue real!
Aqui me cheira a sangue real!
A moça dizia que não havia
ninguém mas a serpente tanto procurou que viu Filho da Burra e voou em cima
dele para matá-lo. Filho da Burra passou-lhe a bengala de ferro que saía
fumaça. Foi uma briga que não tinha fim, até que caíram, um para cada lado, sem
forças. A moça, mais que depressa, trouxe pão e vinho que a serpente estava
pedindo, e deu ao rapaz que comeu e bebeu, tornando a ficar forte. Levantou-se
e sentou a bengala na cabeça da serpente esbandalhando-a. A moça ficou
satisfeita e disse que tinha mais duas irmãs encantadas, morando em duas casas
adiante.
Filho da Burra foi para a
segunda e lá a moça contou a mesma coisa. O rapaz fez a mesma proposta de comer
o pão e beber o vinho e a moça aceitou. Escondeu-se e esperou o bicho-feroz que
chegou como um pé-de-vento, derribando tudo:
— Aqui me cheira a sangue real!
Aqui me cheira a sangue real!
A moça negou, negou, mas o bicho
caçou o rapaz e o encontrou, botando-se a ele e brigando com vontade. O bicho
era terrível, mas a bengala de ferro não fazia graça e os dois inimigos
terminaram sem força para acabar o combate, caindo no chão os dois. O bicho pediu
o vinho e o pão, e a moça foi buscar mas entregou ao rapaz que esmagou a cabeça
do monstro.
Passou para a terceira casa e lá
era um macacão que morava com a pobre moça. Aconteceu o mesmo. O macacão quando
chegou farejando:
— Aqui me cheira a sangue real!
Aqui me cheira a sangue real!
Foi procurando e achou o rapaz,
partindo para cima dele. Filho da Burra enfincou-lhe a bengala com vontade.
Briga lá e briga cá, até que uma bengalada raspou a cabeça do macacão e uma
orelha caiu no chão. Filho da Burra agarrou a orelha e meteu-a no bolso porque
o macacão sumiu-se, correndo como um condenado.
O rapaz juntou as três moças e
os tesouros que elas tinham e foi para onde estava o tacho. Balançou na corda e
o tacho foi puxado por Rola-Pau e Rola-Pedra, cheio de dinheiro. Depois subiram
as três moças e o tacho desceu. Imaginando que os dois camaradas tivessem
maldando a morte dele para ficar com as moças e o tesouro, Filho da Burra botou
uma pedra bem grande no tacho e balançou a corda. Subiram o tacho até quase em cima
e depois cortaram as cordas, despencando tudo para baixo.
Rola-Pau e Rola-Pedra já tinham
escolhido as duas moças para noivas e acharam que deviam deixar Filho da Burra
no buraco para gozarem a riqueza que tinham ganho. Foram para o reinado do pai
das três moças.
Ficando lá embaixo, Filho da
Burra estava meio triste quando apareceu o diabo, que era o macacão, gritando e
saltando:
— Filho da Burra, me dá minha
orelha!
— Não dou.
— Filho da Burra, me dá minha
orelha que eu te tiro daqui!
— Tire primeiro.
O diabo virou-se numa árvore e o
rapaz subiu por ela até fora do buraco. Quando ficou livre, voltou o diabo
pedindo a orelha.
— Só dou a orelha se você me
levar para o reinado!
— Levo. Vou me virar num cavalo
e você monte, feche os olhos e só abra quando eu parar!
Virou-se num cavalo, selado, e
Filho da Burra montou, fechou os olhos. Quando o cavalo parou, ele abriu e
estava no reinado do pai das moças.
Rola-Pau e Rola-Pedra, numa
carruagem, tinham ido casar na igreja. No palácio só ficara o rei e a princesa
mais moça. Filho da Burra, quando o diabo tornou a pedir a orelha, disse que
queria se encontrar dentro do palácio real:
— Feche os olhos!
Ele fechou e quando abriu,
estava no salão do rei.
Chamou o rei e contou toda a sua
história. O rei não queria acreditar na malvadeza dos futuros genros. O rapaz
tirou do bolso um lenço e mostrou a ponta da língua da serpente que vivia com a
princesa mais velha, a orelha da fera que estava com a do meio e a orelha do
macacão que prendera a caçula. O rei chamou a princesa e esta confirmou tudo.
Mandaram buscar Rola-Pau e Rola-Pedra que voltaram com os convidados. Quando
foram vendo Filho da Burra no salão, correram para a janela e saltaram do
sobrado abaixo, quebrando a cabeça nas pedras do calçamento, morrendo imediatamente.
Filho da Burra casou com a princesa mais moça e viveu muito feliz. E a orelha
do macacão? O diabo recebeu e voltou para os infernos.
(Informante: Cícero Salvino de
Oliveira. Alexandria, Rio Grande do Norte)
(Cascudo, Luís da Câmara. Contos
tradicionais do Brasil. Belo Horizonte, Editora Itatiaia; São Paulo,
Editora da Universidade de São Paulo, 1986, p.77-80 (Reconquista do Brasil, 2ª
série, v.96))
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