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Não há gente que sofra mais terríveis molejos por parte do nordestino
do que a do fisco e do foro, visto como está convencido de ser por ela
esfolado por todas as formas.
A propósito de tabeliães e escrivães, conta que um destes, depois de
morto, foi bater à porta do céu. São Pedro negou-se a deixá-lo entrar; mas
tantas lamúrias fez e misérias contou que o santo, penalizado e, ao mesmo
tempo, sem querer voltar atrás do que dissera, lhe impôs uma condição:
— Só te deixo entrar se vieres montado a cavalo.
O escrivão, muito atrapalhado, desceu a imensa ladeira que levava do
céu ao inferno, matutando onde encontraria um cavalo por aqueles ermos. De
repente, quando já desesperava de achar um, avistou o juiz com quem servira
no mundo e sob cuja alçada e vara roubara a valer a clientela, o qual
era por ele, no íntimo, considerado uma cavalgadura. Perguntou-lhe aonde se
dirigia, depois de se admirar que também tivesse morrido. O outro respondeu
com ênfase que subia para o céu.
— Não perca seu tempo, — aconselhou-lhe o ex-serventuário público. —
Se eu não entrei, que fui somente escrivão, como há de entrar o senhor, que
foi o juiz? Estou voltando do portão lá de cima e São Pedro me declarou que
só nos deixa entrar, se formos juntos e eu montado no senhor. É uma simples
questão de prática de humildade, para dar exemplo ao pessoal do foro.
O juiz acreditou na lábia do subordinado e permitiu que o cavalgasse.
Quando chegaram à porta do céu, São Pedro ordenou, ríspido:
— Aqui só entra o escrivão. O cavalo dele fica do lado de fora.
Vingativa ironia popular, mostrando que, se o escrivão é capaz de
montar no juiz no outro mundo, que não será neste!...
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(BARROSO, Gustavo. Ao som da viola (folclore); nova edição correta e
aumentada. Rio de Janeiro, 1949, p.515-516)
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