Vovó Candinha é outra figura que nunca se apagou de minha
recordação.
Não havia, realmente, mulher que tivesse mais prestigio para as crianças
da minha idade. Para nós, era um ser à parte, quase sobrenatural, que se
não confundia com as outras criaturas. É que ninguém no mundo contava melhor
histórias de fadas do que ela.
Devia ter seus setenta anos, rija, gorda, preta, bem preta e cabeça
branca como algodão em pasta.
Morava distante. Vinha ao povoado, de quando em quando, visitar a Luzia,
sua filha caçula, casada com o Lourenço Sapateiro.
E quando corria a noticia de que ela ia chegar, a meninada se assanhava
como se ficasse à espera de uma festa. Não saíamos da porta da Luzia,
perguntando insistentemente:
- Quando ela chega?
- Traz muitas histórias bonitas?
- Traz muitas novas?
Era pela manhã que vovó Candinha costuma chegar. O dia nem sempre havia
acabado e já a pequena estava à beira do rio para recebê-la. Mal ia saltando da
canoa, nós corríamos a abraçá-la com tanta afoiteza e tanta efusão que havia
perigo de lhe rasgarmos o vestido rodado, de chita ramulhada.
- Quantas histórias a vovó traz? Perguntávamos.
- Um bandão delas, respondia a velha.
De dia não conseguíamos que ela nos contasse história nenhuma.
- Quem conta história de dia, dizia, negando-se, cria rabo de macaco.
Mal a noite começava a cair, a meninada caminhava para casa de Luzia,
como se dirigisse para um teatro. Após o jantar, vovó Candinha vinha então
sentar-se ao batente da porta que dava para o terreiro.
Enquanto se esperavam os retardatários, ela fumava pachorrentamente o
seu cachimbo.
Sentávamo-nos em derredor, caladinhos, de ouvido atento, como não fora
tão atento o nosso ouvido na escola.
Ela começava:
- Era uma vez uma princesa muito orgulhosa, que fez grande má-criação à
fada sua madrinha...
Acendiam-se os nossos olhos, batiam emocionados os nossos corações...
Não sei se é impressão de meninice, mas a verdade é que até hoje, não
encontrei ninguém que tivesse mais jeito para contar histórias infantis.
Na sua boca, as coisas simples e as coisas insignificantes tomavam um
tom de grandeza que nos arrebatava; tudo era surpresa e maravilha que nos
entrava de um jacto na compreensão e no entusiasmo.
E não sei onde ela ia buscar tanta coisa bonita. Ora, eram princesas
formosas, aprisionadas em palácios de coral, erguidos no fundo do oceano ou das
florestas; ora reis apaixonados que abandonavam o trono para procurara pelo
mundo a mulher amada, que as fadas invejosas tinham transformado em coruja ou
rã.
Não perdíamos uma só de suas palavras, um só dos seus gestos.
Ela ia contando, contando... Os nossos olhinhos nem piscavam...
A lua, como se fosse princesa encantada, ia vagando pelo céu, toda
vestida de branco, a mandar para aterra a suavidade dos seus alvos véus de
virgem.
Lá pelas tantas, um de nós encostava a cabeça no companheiro mais
próximo e fechava os olhos cansado. Depois outro;depois outro.
E quando vovó Candinha acabava a
história, todos nós dormíamos uns encostados aos outros, a sonhar com os
palácios do fundo do mar, com as fadas e as princesas.
(autor
nordestino anônimo)
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