Vou contar uma história que aconteceu nos pampas do sul do país,
talvez em Pelotas. Começa não muito bem, pois nesses pampas havia um homem
muito rico, mau e sovina: nem restos de comida ele dava.
Seu filho era um guri que herdara sua ruindade. Esqueci de dizer
que a história se passa no tempo da escravidão. E vou falar de um escravinho
mais negro que carvão chamado exatamente de Negrinho. Não conhecia pai ou mãe e
dizia que Nossa Senhora era sua madrinha. Apanhava do patrão e do filho que não
era brincadeira. O homem ruim tinha um cavalo baio muito bonito e veloz e um estancieiro
vizinho desafiou-o dizendo:
- Será que esse cavalo baio é bom na corrida?
- Será que esse cavalo baio é bom na corrida?
Já se sabe quem ia montar o baio sem sela: o Negrinho, é claro. Mas infelizmente o baio perdeu na
corrida e o Negrinho levou uma surra que eu vou te contar. E como se não bastasse,
mandaram-no tomar conta da tropilha do patrão.
Era de noite, Negrinho estava todo machucado e com medo dos
bichos que pudessem se achegar. Mas Nossa Senhora ajudou-o a adormecer. Eis
senão quando ouviu- se um tiro de espingarda no ar. Os animais se assustaram e
se dispersaram pelas campinas. O estampido partira do filho do patrão. Mas quem
levou nova surra foi o Negrinho. Mandaram-no procurar os cavalos. Enquanto isso
a noite estava ainda mais fechada. E não se via cavalo nenhum. Aí o Negrinho
pegou um toco de vela que iluminava sua madrinha no oratório do homem ruim. E
correu pelas coxilhas montado no baio, à procura dos cavalos dispersos.
Aconteceu um pequeno milagre: cada vez que a vela abençoada pingava cera no
chão, milhares de velinhas iam aparecendo para iluminar a noite. Com esse
grande auxílio, o Negrinho encontrou os cavalos. E cansado adormeceu, O homem
ruim tinha raiva até do sono do Negrinho e mandou um outro escravo dar chicotadas
no garoto e colocá-lo junto de um formigueiro, só para chatear o menino.
Depois o patrão quis ver o moleque que devia estar todo roído de
formigas. Mas junto do formigueiro
estava o Negrinho perfeitamente sadio, com o baio e a tropilha.
Espantado o homem ruim, mais espantado ficou, porque viu junto do escravinho a
Nossa Senhora protegendo o Negrinho, O homem ruim se ajoelhou de medo e não de
bondade. Quanto ao Negrinho, montado no baio, seguia corrida com a tropilha
para sempre.
Para sempre quer dizer que até hoje continua a corrida.
E quem quiser, vê-lo. Quero dizer: se quiser muito mesmo. Só que
durante uns dias de cada ano Negrinho some. Deve estar conversando com suas
amigas formigas.
Quem conhece esta história e muitos acham que o Negrinho ajuda a
encontrar o que se perdeu, seja objeto, seja amor, seja felicidade sumida.
Será que a moral desta história é que o bem sempre vence? Bom,
nós todos sabemos que nem sempre. Mas o melhor é a gente ir-se arranjando como
pode e dar um jeito de ser bom e ficar com a consciência calminha.
Clarice
Lispector
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