A Manhã vem chegando devagar, sonolenta; três quartos de hora de atraso,
funcionária relapsa. Demora-se entre as nuvens, preguiçosa, abre a custo os
olhos sobre o campo, ai que vontade de dormir sem despertador, dormir até não
ter mais sono! Se lhe acontecer arranjar marido rico, a Manhã não mais acordará
antes das onze e olhe lá. Cortinas nas janelas para evitar a luz violenta, café
servido na cama. Sonhos de donzela casadoira, outra a realidade da vida, de uma
funcionária subalterna, de rígidos horários.
Obrigada a acordar cedíssimo para apagar as estrelas que a Noite acende com
medo do escuro. A Noite é uma apavorada, tem horror às trevas.
Com um beijo, a Manhã apaga cada estrela enquanto prossegue a caminhada
em direção ao horizonte. Semi-adormecida, bocejando, acontece-lhe esquecer
algumas sem apagar. Ficam as pobres acesas na claridade, tentando inutilmente
brilhar durante o dia, uma tristeza. Depois a Manhã esquenta o Sol, trabalho
cansativo, tarefa para gigantes e não para tão delicada rapariga. É necessário
soprar as brasas consumidas ao passar da Noite, obter uma primeira, vacilante
chama, mantê-la viva até crescer em fogaréu. Sozinha, a Manhã levaria horas
para iluminar o Sol, mas quase sempre o Vento, soprador de fama, vem ajudá-la.
Por que o bobo faz questão de dizer que estava passando ali por acaso quando
todos sabem não existir tal casualidade e sim propósito deliberado? Quem não se
dá conta da secreta paixão do Vento pela Manhã? Secreta? Anda na boca do mundo.
A respeito do Vento circulam rumores, murmuram-se suspeitas, dizem-no
velhaco e atrevido, capadócio a quem é perigoso dar ousadia. Citam-se as brincadeiras
habituais do irresponsável: apagar lanternas, lamparinas, candeeiros, fifós
para assombrar a Noite; despir as árvores dos belos vestidos de folhagens,
deixando-as nuinhas. Pilhérias de evidente mau gosto; no entanto, por incrível
que pareça, a Noite suspira ao vê-lo e as árvores do bosque rebolam-se
contentes à sua passagem, umas desavergonhadas.
A caçoada predileta do Vento é meter-se por baixo da saia das mulheres,
suspendendo--as com malévola intenção exibicionista. Truque de seguríssimo
efeito nos tempos de antanho, traduzindo-se em risos, olhares oblíquos e
cobiçosos, contidas exclamações de gula, ahs! e ohs! entusiásticos.
Antigamente, porque hoje o Vento não obtém o menor sucesso com tão gasta demonstração:
exibir o quê, se tudo anda à mostra e quanto mais se mostra menos se quer ver?
Quem sabe, as gerações futuras lutarão contra o visível e o fácil, exigindo, em
passeatas e comícios, o escondido e o difícil.
Um tanto quanto louco, decerto; não vamos esconder os defeitos do Vento.
Mas por que não falar também de inegáveis qualidades? Alegre, ágil, dançarino
de fama, pé-de-valsa celebrado, amigueiro, sempre disposto a ajudar os demais,
sobretudo em se tratando de senhoras e donzelas.
Por mais cedo fosse, mais frio fizesse, estivesse onde estivesse, cruzando
distantes e íngremes caminhos, pela madrugada arribava ele em casa do Sol para
cooperar com a Manhãzinha. Sopra que sopra com a imensa bocarrona de ar. Apenas
porém a brasa crescia em labareda, o Vento deixava por conta da Manhã atiçar a
chama com o abanador das brisas e começava a recordar aventuras, a contar de
coisas vistas nas caminhadas sem destino: nevados topos de montanhas muito
acima das nuvens ou abismos tão profundos que jamais a Manhã conseguiria
enxergar.
Bisbilhoteiro e audacioso, rei dos andarilhos, rompendo fronteiras, invadindo
espaços, vasculhando esconderijos, o Vento carrega um alforje de histórias para
quem queira ouvir e aprender.
Fanática por uma boa história, a Manhã se atrasa ainda mais, atenta ao
falatório do Vento, casos ora engraçados, ora tristes, alguns longos, prolongando-se
em capítulos de folhetim. Pouco dada ao trabalho, a Manhã deixa-se ficar
embevecida a escutar. Risonha, melancólica, debulhada em lágrimas - quanto mais
comovente, melhor a novela - causando irremediável transtorno aos relógios,
obrigados a diminuir o ritmo dos pêndulos e ponteiros, na dependência da
chegada da Manhã para marcar as cinco horas
em ponto. Muitos relógios enlouqueceram, não voltaram jamais a marcar a hora
certa, atrasados ou adiantados, trocando o dia pela noite. Outros detiveram-se
de vez e para sempre. Certo relógio universalmente famoso, colocado na torre da
universalmente famosa fábrica dos universalmente famosos relógios (os mais
pontuais do mundo), ele próprio campeão olímpico da hora exata, suicidou-se,
enforcando-se nos ponteiros, por não mais suportar a lentidão da Manhã e o
atraso geral da produção. Era um relógio suíço com exemplar senso de responsabilidade
e imenso patriotismo industrial.
Não só os relógios, também os galos perdiam a cabeça, embrulhando o
canto, anunciando a aparição do Sol enquanto a Manhã ainda o acendia, atenta às
tiradas do Vento. Viviam de crista baixa, desmoralizados. Relógios e galos
fizeram uma denúncia ao Tempo - senhor de todos eles -, protesto em oito itens
e vinte e seis razões irrespondíveis, mas o Tempo é infinito, não ligou muito -
essa coisa de uma hora a mais, uma hora a menos é tolice com a qual não paga a
pena preocupar-se quando se tem a eternidade pela frente. Até serve para
quebrar a monotonia. Ademais, o Tempo não escondia certa fraqueza pela Manhã.
Risonha e inconsequente, jovem e aloucada, pouco afeita a regras e códigos, ela
o fazia esquecer por alguns momentos a suprema chateação da eternidade e a
bronquite crônica.
Dessa vez, porém, a vadia ultrapassou todos os limites da tolerância.
O Vento tentara dividir o longo enredo em dois ou três episódios mas ela
exigira a narrativa detalhada e inteira, até o lance final. Já o Sol abrasava quando
se despediram.
Vestida de luz branca com salpicos de flores azuis e vermelhas, a Manhã
atravessa por entre as nuvens, distraída, pensativa, refletindo sobre o caso
que o Vento viera de lhe contar. Sonhadora ao recordar detalhes, ligeiramente
melancólica. Um autor erudito falaria em confusão de sentimentos.
Gostaria de não ser a Manhã, a própria, com obrigações estritas, para estender-se
nos campos da madrugada a pensar nas intenções do Vento.
Por que escolhera ele exatamente aquela história? Haveria uma moral a retirar
do relato? Ou o Vento o fizera apenas pelo gosto da narrativa, gratuitamente? A
Manhã suspeita de intenção oculta, razão secreta a se denunciar no olhar
entornado do parceiro, em inesperado suspiro na hora do desfecho.
Suspira o Vento por ela, como rumorejam as comadres? Pensa pedir sua mão
em casamento? Casar com o Vento não é má ideia, se bem a Manhã prefira um
milionário. 0 Vento a ajudaria a apagar as estrelas, a acender o Sol, a secar o
orvalho e a abrir a flor denominada Onze Horas que a Manhã, só de ranheta, para
contrariar, abre todos os dias entre as nove e meia e as dez. Se casasse com o
Vento sairia com o marido mundo afora, sobrevoando o cimo altíssimo das
montanhas, esquiando nas neves eternas, correndo sobre o dorso verde do mar,
saltando com as ondas, repousando nas cavernas subterrâneas onde a escuridão se
esconde durante o dia para descansar e dormir.
Livre e inconstante, solteirão profissional, pensaria o Vento realmente em
se casar? Contavam-se às dezenas as paixões, os casos, as aventuras, os
escândalos em que ele se vira envolvido. Citam-se raptos, perseguições, maridos
em cólera, juras de vinganças. A Manhã balança a cabeça: o Vento não pensa em
casar coisa nenhuma, são outras suas intenções, nefandas intenções, como se
dizia naquele tempo de atraso e cafonice.
Mesmo assim, vale a pena sonhar. Envolta em tais pensamentos vai a Manhã
devaneando, esquecida das horas. Os relógios, todos eles, parados à espera; os
galos, sem exceção, roucos de tanto cantar anunciando o Sol e cadê o Sol? Ao
canto dos galos os homens acordam, confirmam na montra dos relógios as cinco
horas precisas, para constatar em seguida a ausência do Sol. No céu a luz fosca
da madrugada se confunde com a gaze cinzenta da cauda da noite. Terá chegado o
fim do mundo? Um deus-nos-acuda nunca visto.
Tantas queixas recebidas, tão grande atraso, o Tempo sente-se obrigado a
ralhar com a Manhã, se bem, ao lhe chamar a atenção e ameaçar castigo, esconda
um sorriso cúmplice no rosto solene de barbas e rugas. A Manhã confessa a
verdade, num gorjeio de pássaro: - Meu Pai, fiquei ouvindo o Vento contar uma
história. Perdi a hora. - Uma história? - interessou-se o Tempo, sempre em
busca do que lhe fizesse menos pesada a eternidade, droga de eternidade! -
Conta-me e, se for realmente uma boa história, não só te desculparei como te
darei uma rosa azul que medrou há muitos séculos e hoje não se encontra mais
pois tudo mudou, minha filha, mudou para pior, nada é mais como antes,
acabaram-se as boas coisas da vida, ah! – um saudosista, o Tempo.
Senta-se a Manhã aos pés do Mestre, agita as fraldas do vestido de claridade,
começa a contar. No meio da história o Tempo adormece mas a Manhã não se
interrompe pois ao debulhar a narrativa parece-lhe escutar a voz cariciosa do
Vento, vê a expressão de súplica nos olhos malandros.
Vento vagabundo e sem pouso, onde andará? Em que recanto do mundo, bisbilhotando,
desnudando árvores, varando nuvens, perseguindo a Chuva em correrias pelo céu
para derrubá-la por fim no pasto verde? Íntimos, demasiadamente íntimos, o
Vento e a Chuva, companheiros de vadiagem. Somente companheiros? A Manhã franze
a testa, de repente preocupada.
O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá
Jorge Amado
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