Não havia homem mais forte
do que o Gutierres. Quem duvidasse não tinha senão que comprar um bilhete para
assistir ao espetáculo do Circo Estrelinhas & Estrelinhas, onde o
Gutierres era todas as noites apresentado como a estrela mais brilhante da
companhia.
— E agora, senhoras e senhores, meninas e meninos, tenho o prazer de vos apresentar Gutierres, o Homem Mais Forte do Mundo — gritava, numa grande fartura de gestos, o diretor do circo Estrelinhas & Estrelinhas.
Aparecia o Gutierres, mostrava os músculos batatudos, enchia o peito de ar e começava o espetáculo. Era sensacional. Sem que lhe caísse do rosto uma única gota de suor, dobrava grossas barras de ferro, partia lajes de mármore e levantava pesos de cem quilos... — levantam pesos de cem quilos com o dedo mínimo, calculem só! Claro que o público aplaudia e muito todas as habilidades do Gutierres. E pedia mais. E dava bravos. E gritava vivas.
Mas os colegas do Homem das Forças, os outros artistas do circo Estrelinhas & Estrelinhas, não gostavam dele. Achavam-no vaidoso e grosseiro, sempre a querer evidenciar as suas forças, a meter medo aos que eram mais fracos. Por coisinhas sem importância o Gutierres arremetia:
— Com um sopapo ponho-te a girar!
Ou então:
— Com um soco faço-te em pó!
E sempre a mesma ameaça:
— Que ninguém desafie a minha força...
Além disso, era pouco amigo de fazer vontades:
— Lá por ser o mais forte, não julguem que estou disposto a trabalhar para os outros. Era o que faltava!
Vai daí, um dia, o Gutierres perdeu a força. Ia a pegar numa mala com pesos dentro e não foi capaz. Tentou, voltou a tentar, mas não houve meio. Tinham-lhe fugido as forças. Para onde? Não sabia.
Nessa noite, como de costume, o diretor da Companhia, de fraque vermelho, calças azuis e grande laço, metade vermelho, metade azul, estendeu o braço direito em direção à entrada dos artistas e gritou entusiasmado:
— E agora, senhoras e senhores, meninas e meninos, tenho o prazer de vos apresentar: Gutierres, o Homem Mais Forte do Mundo.
Mas o Gutierres não apareceu. Faltavam-lhe as forças para mostrar a tanta gente que já não tinha força.
Como ninguém estava para bater palmas ao Homem Mais Fraco do Mundo, o Gutierres deixou seguir a caravana do circo Estrelinhas & Estrelinhas e ficou à beira da estrada, muito desconsolado, a pensar como teria aquilo sucedido. De olhos no chão, reparou numa formiga que empurrava a muito custo uma migalha de broa, duas vezes o tamanho dela. O Gutierres estendeu-lhe uma palhinha e ajudou-a a levar o sustento até à beira do formigueiro.
— Que força! — exclamou a formiga. — Bem hajas!
Mais adiante, uma pardoca tentava arrancar com o bico um grão maduro e apetitoso de uma espiga de trigo. Estava bem seguro à espiga o grãozinho. Que contratempo. E os pardaiss no ninho à espera do pequeno almoço...
Veio o Gutierres e, num instante, desfez a espiga em grãos, que deu à pardoca.
— Que força! — disse-lhe ela, agradecida.
Ali, para os lados do mato, uma ovelha deu de balir, como se estivesse a pedir ajuda. Tinha caído numa cova e não conseguia trepar até ao cimo. Acudiu-lhe o Gutierres, que a levantou em peso e depôs no carreiro que levava ao curral.
— Obrigada — disse a ovelha. — Que força!
Continuando o seu caminho, o Gutierres entrou na aldeia e viu uma menina curvada ao peso de um feixe de lenha.
— Eu levo isso — propôs-lhe o Gutierres e lançou o feixe ao ombro.
— Muito obrigada — disse a menina e comentou: — Que força!
Deixou o feixe de lenha à porta da menina e seguiu pela aldeia dentro. No largo, dois homens bulhavam. Palavras pesadas de mistura com socos ainda mais pesados. Rolaram pelo chão, cobertos de pó e de ódio. Veio o Gutierres e agarrou-os. Com a mão direita puxou um para um lado, com a mão esquerda puxou o outro para o outro lado. E pôs-se no meio deles.
— Então o que há? — perguntou o Gutierres, conciliador.
— Ele andava a fazer pouco de mim — queixava-se um dos homens.
— E ele dizia que eu era um medroso — queixava-se o outro.
— Vocês julgam que a vossa força é para se perder em lutas que não valem nada? Tenham juízo e, se quiserem discutir, sentem-se a conversar, com uma mesa de permeio — disse-lhes o Gutierres, enquanto os largava.
— Aquele sujeito tem força por dez. Com que facilidade ele nos apartou...
— Que força!
O Gutierres ouviu-os e encolheu os ombros:
— Hoje ainda não ouvi outra coisa. Todos me dizem que tenho força, mas, afinal, ando para aqui à procura da força que me fugiu. Quem entende isto?
Era meio-dia. Um raio de sol caiu a pique sobre a cabeça do Gutierres e aqueceu de repente uma ideia que ele lá tinha guardada, sem dar por isso.
— Pois é: a formiga, a pardoca, a ovelha, a menina e os dois homens tinham razão. Eu sou realmente forte. Aí está: enquanto ajudar os mais fracos e os que precisam da minha ajuda, serei sempre forte. É isso! É isso!
E largou a correr pelo caminho por onde tinha vindo.
A história acaba aqui. Só vale a pena saberem que, no circo Estrelinhas & Estrelinhas, o artista mais delicado e mais amigo de fazer vontades é, agora, o Gutierres, o Homem Mais Forte do Mundo.
António Torrado
Trinta por uma linha
Porto, Civilização Editora, 2008
— E agora, senhoras e senhores, meninas e meninos, tenho o prazer de vos apresentar Gutierres, o Homem Mais Forte do Mundo — gritava, numa grande fartura de gestos, o diretor do circo Estrelinhas & Estrelinhas.
Aparecia o Gutierres, mostrava os músculos batatudos, enchia o peito de ar e começava o espetáculo. Era sensacional. Sem que lhe caísse do rosto uma única gota de suor, dobrava grossas barras de ferro, partia lajes de mármore e levantava pesos de cem quilos... — levantam pesos de cem quilos com o dedo mínimo, calculem só! Claro que o público aplaudia e muito todas as habilidades do Gutierres. E pedia mais. E dava bravos. E gritava vivas.
Mas os colegas do Homem das Forças, os outros artistas do circo Estrelinhas & Estrelinhas, não gostavam dele. Achavam-no vaidoso e grosseiro, sempre a querer evidenciar as suas forças, a meter medo aos que eram mais fracos. Por coisinhas sem importância o Gutierres arremetia:
— Com um sopapo ponho-te a girar!
Ou então:
— Com um soco faço-te em pó!
E sempre a mesma ameaça:
— Que ninguém desafie a minha força...
Além disso, era pouco amigo de fazer vontades:
— Lá por ser o mais forte, não julguem que estou disposto a trabalhar para os outros. Era o que faltava!
Vai daí, um dia, o Gutierres perdeu a força. Ia a pegar numa mala com pesos dentro e não foi capaz. Tentou, voltou a tentar, mas não houve meio. Tinham-lhe fugido as forças. Para onde? Não sabia.
Nessa noite, como de costume, o diretor da Companhia, de fraque vermelho, calças azuis e grande laço, metade vermelho, metade azul, estendeu o braço direito em direção à entrada dos artistas e gritou entusiasmado:
— E agora, senhoras e senhores, meninas e meninos, tenho o prazer de vos apresentar: Gutierres, o Homem Mais Forte do Mundo.
Mas o Gutierres não apareceu. Faltavam-lhe as forças para mostrar a tanta gente que já não tinha força.
Como ninguém estava para bater palmas ao Homem Mais Fraco do Mundo, o Gutierres deixou seguir a caravana do circo Estrelinhas & Estrelinhas e ficou à beira da estrada, muito desconsolado, a pensar como teria aquilo sucedido. De olhos no chão, reparou numa formiga que empurrava a muito custo uma migalha de broa, duas vezes o tamanho dela. O Gutierres estendeu-lhe uma palhinha e ajudou-a a levar o sustento até à beira do formigueiro.
— Que força! — exclamou a formiga. — Bem hajas!
Mais adiante, uma pardoca tentava arrancar com o bico um grão maduro e apetitoso de uma espiga de trigo. Estava bem seguro à espiga o grãozinho. Que contratempo. E os pardaiss no ninho à espera do pequeno almoço...
Veio o Gutierres e, num instante, desfez a espiga em grãos, que deu à pardoca.
— Que força! — disse-lhe ela, agradecida.
Ali, para os lados do mato, uma ovelha deu de balir, como se estivesse a pedir ajuda. Tinha caído numa cova e não conseguia trepar até ao cimo. Acudiu-lhe o Gutierres, que a levantou em peso e depôs no carreiro que levava ao curral.
— Obrigada — disse a ovelha. — Que força!
Continuando o seu caminho, o Gutierres entrou na aldeia e viu uma menina curvada ao peso de um feixe de lenha.
— Eu levo isso — propôs-lhe o Gutierres e lançou o feixe ao ombro.
— Muito obrigada — disse a menina e comentou: — Que força!
Deixou o feixe de lenha à porta da menina e seguiu pela aldeia dentro. No largo, dois homens bulhavam. Palavras pesadas de mistura com socos ainda mais pesados. Rolaram pelo chão, cobertos de pó e de ódio. Veio o Gutierres e agarrou-os. Com a mão direita puxou um para um lado, com a mão esquerda puxou o outro para o outro lado. E pôs-se no meio deles.
— Então o que há? — perguntou o Gutierres, conciliador.
— Ele andava a fazer pouco de mim — queixava-se um dos homens.
— E ele dizia que eu era um medroso — queixava-se o outro.
— Vocês julgam que a vossa força é para se perder em lutas que não valem nada? Tenham juízo e, se quiserem discutir, sentem-se a conversar, com uma mesa de permeio — disse-lhes o Gutierres, enquanto os largava.
— Aquele sujeito tem força por dez. Com que facilidade ele nos apartou...
— Que força!
O Gutierres ouviu-os e encolheu os ombros:
— Hoje ainda não ouvi outra coisa. Todos me dizem que tenho força, mas, afinal, ando para aqui à procura da força que me fugiu. Quem entende isto?
Era meio-dia. Um raio de sol caiu a pique sobre a cabeça do Gutierres e aqueceu de repente uma ideia que ele lá tinha guardada, sem dar por isso.
— Pois é: a formiga, a pardoca, a ovelha, a menina e os dois homens tinham razão. Eu sou realmente forte. Aí está: enquanto ajudar os mais fracos e os que precisam da minha ajuda, serei sempre forte. É isso! É isso!
E largou a correr pelo caminho por onde tinha vindo.
A história acaba aqui. Só vale a pena saberem que, no circo Estrelinhas & Estrelinhas, o artista mais delicado e mais amigo de fazer vontades é, agora, o Gutierres, o Homem Mais Forte do Mundo.
António Torrado
Trinta por uma linha
Porto, Civilização Editora, 2008
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