Sacristão aposentado, e lavrador nas horas vagas, o Azambuja vivia num casebre no Rincão das Pulgas e era figura bastante popular na vila de Canguçu. Havia começado ainda mui guri a profissão de auxiliar eclesiástico, como uma espécie de ordenança do Padre Pâncaro. Quando da Revolução de 1893, esse sacerdote permanecera firme em seu posto na Região Sul enquanto a maioria dos vigários se mandava para cidades mais seguras, e muitas vezes os dois tiveram de levar pistola à cintura para garantir o batismo de uma criança ou a extrema-unção de um moribundo. Mais que padre, o finado Pâncaro tinha sido um herói.
As tantas peripécias por que passara
numa atividade fora do comum faziam do Azambuja um papo apreciado não só nos
humildes galpões e na venda do Jango Torto mas, inclusive, na sala de cidadãos
letrados, como o Dr. Teófilo, advogado residente na vila e talvez o seu maior
amigo. Da vida das igrejas ele trouxera não só causos de que participara
pessoalmente mas, também, histórias que ele ouvira nas sacristias - tais como
aquela façanha do vigário do Alegrete que havia encomendado de Portugal, sua
terra, um riquíssimo trajo para a imagem de Nosso Senhor; e como erraram nas
medidas e a veste chegara muito curta, não vacilara em passar o serrote nas
pernas do Santo - daí resultando um Cristo com jeito de anão e um ruidoso
processo canônico contra o pobre português.
Numa época em que não havia rádio nem
televisão, e quando o Almanaque do Biotônico e outros almanaques anuais eram o
único sinal de comunicação em massa naqueles cafundós, não havia quem se
igualasse ao Azambuja na animação dos auditórios campeiros.
Mas não se limitava a contar causos.
Após vinte e tantos anos de sacristanagem, sabia batizar em língua de padre,
fazia benzeduras de água benta, mais de uma vez realizou o santo sacramento do
matrimônio para tranquilizar a alma dos casais juntados. Do pobrerio das
Pulgas, e mesmo de rincões mais afastados, era sem conta o número de pessoas
que vinham bater à porta do seu rancho. Prestativo, jamais negava auxílio aos
necessitados de Deus. E se acaso o devoto trouxesse o pedido acompanhado por
algum presente, ele logo desfiava a reza em Latim - o que correspondia a uma
confortadora certeza de ser atendido:
Ave Maria, gratia plena, Dominus
tecum, benedicta...
... e com os presentes dos fiéis ia
vivendo.
Uma tarde de sábado, meados de
dezembro. Na venda do Jango Torto estavam proseando o Gaudêncio Terres, o Raul
Silveira, o Azambuja e mais meia dúzia de companheiros, mas os assuntos se
arrastavam com inusitada frouxidão. Até que alguém tomou coragem e referiu-se
ao problema que a todos vinha preocupando: a estiagem. Temiam que se repetisse,
agora, aquela terrível seca de dois anos antes. Açudes transmudados em torrões
estéreis. Capinzal amarelado e ralo tentando em vão amparar as reses trôpegas
que vagueavam na busca contínua de alimento. O sol torrando os pés de milho,
que a vida abandonava nos cercados. E o sol torrando as assadas que a morte ia
semeando junto aos banhados enxutos. E o sol alongando, pela estrada poeirenta,
a sombra do gaúcho pobre que - com um filho nos braços e a mulher ao lado -
fugia para campear serviço (procurar emprego) na cidade. Quase seis meses a
terra sofrera até que as chuvas chegassem copiosamente. E tanta história triste
se contou, daquela feita, que o povo sentia um arrepio de terror só em imaginar
a vinda de outra Seca Braba.
- Quando eu vinha vindo para cá -
disse o Gaudêncio - estive olhando, ali na beira do açude, os ninhos de
quero-quero (uma ave pernalta). Nada melhor que esse bicho para anunciar bom ou
mau tempo. Ele não arrisca filhote na enchente. Ninho feito no alto, longe do
banhado (Pãntano, terreno alagadiço), é aguaceiro se espalhando no baixio. E
ninho na beira d'água... como eu vi... Nem precisou completar a frase.
- A minha última esperança estava na
mudança de lua acrescentou o Raul Silveira. - Não hai quem não saiba que lua
nova trovejada, todos quartos são molhados. Pois agora, nos dias da nova,
trovejou como turco caloteado e, no fim, não deu em nada. Quando o tempo não
quer chover, mesmo, não tem sinal que dê certo.
Outros foram dando um talho nessa
prosa, mas sem nenhum otimismo. Dois anos passados, parece que iriam novamente
comer o pão que o diabo amassou.
Caiu pesado silêncio. E foi aí que o
Azambuja entrou, de mansinho:
- Por falar em diabo... Eu lá com
Deus chego com a confiança de peão antigo, que conhece as manhas do patrão. Se
a chuva já está fazendo tanta falta assim, eu posso entrar com as rezas, o
vizindário contribui com os competentes óbolos, e Nosso Senhor se encarrega da
água.
- Como é mesmo?!
- A gente faz uma baital procissão
até a igreja matriz.
Um lampejo de esperança percorreu o
grupo. E o Azambuja, dono da situação, foi escolhendo os termos mais empolados
do seu vocabulário:
- Eu me encarregarei das preces. Se
alguém tiver retrato de santo é bom levar; sempre ajuda. Quem souber rezar, me
auxiliará nesse mister. E quem não souber, basta recolher-se em piedade,
contrito, de quando em vez erguendo o olhar aos céus para clamar proteção à
Divina Providência.
Vencido o minuto de surpresa, foi
Gaudêncio o primeiro a expressar que estava meio acreditando no possível
milagre.
- Mas será que chove mesmo, seu
Azambuja?
Muito sério, ele respondeu sacudindo
a cabeça num sinal de garantia absoluta.
Daí a pouco um já prometia dar como
óbolo uma galinha e, outro, uma barriguinha de erva-mate. Até que o Jango Torto
entrou nos finalmentes:
- Marque logo o dia da procissão, seu
Azambuja. Quanto antes, melhor; não é mesmo?
- Bueno... Por ora, o essencial é que
seja convocado o maior número possível de devotos. Que fiquem aguardando minha
conclamação. No dia fixado, dirijam-se todos ao meu rancho. De lá até a vila,
na calma, é no máximo hora e pico (uma hora e tantos minutos) de marcha. A
marcha da Fé!
- Mas qual será, mesmo, o dia?
- Bueno... Por causa dos preparativos
necessários, e até mesmo porque preciso entrar em profunda concentração
espiritual, o dia exato ainda não sei ao certo. Mas...
E o Gaudêncio encefou o assunto:
- Hoje mesmo eu começo a avisar de
casa em casa.
A notícia de que iria haver procissão
correu pela vizinhança e logo ecoou na sede do município. Depois, se soube a
data: ia ser no primeiro domingo de janeiro. Ora, qualquer fato fora do comum,
num domingo em cidadezinha pacata, põe em rebuliço as horas de vadiagem devidas
ao Senhor. É hoje! A chegada do préstito estava prevista para as quatro horas,
mas desde o começo daquela tarde ensolarada já havia um mundaréu de gente na ponta
da vila. Fugindo ao castigo do solaço, buscaram acolhida à sombra dos
eucaliptos da chácara do seu Félix Goulart. Chimarrão correndo na volta,
criançada brincando solta. Mais gente e mais gente chegando. A bem da verdade
seja dito que poucos eram movidos por um espírito realmente religioso: o que
buscavam, mesmo, era a oportunidade de um divertimento à custa do compenetrado
ex-sacristão.
Quando alguém notou que uma poeira
mais densa vinha subindo lá por detrás da curva do caminho, foi aquela corrida
alvissareira para uma barranco mais alta. Cada qual procurava avistar por
primeiro a procissão do Azambuja.
- Olha lá! Já estou enxergando os
trouxas! - gritou alguém num grupo de rapazotes que havia planejado ir ao
encontro dos romeiros com o único fito de ridicularizá-los.
Era pouco mais de uma centena de
homens e mulheres, ao tranquito do cavalo (em calma andadura) ou a pé,
cerimoniosamente avançando sob a mais compenetrada devoção. Alguns,
cabisbaixos. Outros poucos, fitando as contas do rosário que traziam às mãos. A
maioria, de olhar grudado no Azambuja. Este, imponente, dirigindo as orações e
de vez em quando erguendo as mãos ao alto para bradar a plenos pulmões:
- Mandai-nos chuva, Senhor!
... ao que o povo respondia a uma
voz:
- Chuva, Senhor!
À sombra dos eucaliptos da chácara do
seu Félix Goulart, todos os olhares voltados para a procissão se aproximando.
Mas, com a atenção voltada para lá, ninguém se apercebia do que estava
acontecendo aqui: a sombra, antes tão nítida sob o arvoredo, empalidecia
gradativamente e já se espalhava pela serrania afora. Uma estranha fumaceira,
em espessas camadas, começava a cobrir todo aquele céu desanuviado e
mormacento...
Antes ninguém havia percebido isso,
mas, agora quando o Azambuja e sua comitiva já vinham pertinho, todo mundo
atentou para o negro paredão de nuvens que se alteavam do horizonte e todo
mundo sentiu a leve aragem sacudindo a atmosfera até então paralisada e
esbraseante. Tão profunda impressão causou essa metamorfose - sublinhada pelo
coral das preces - que muita gente que pretendera ser mero espectador já agora
se incorporava, com contrição, ao préstito. E aquele próprio grupo de
rapazotes, pacholas, ao se dar conta já estava também implorando, ao lado dos
mais fiéis:
- Chuva, Senhor!
Ao faltar umas quatro quadras para
chegar-se à praça central e à matriz da Conceição, já um tropilha de nuvens
carregadas passava galopando baixinho, baixinho, enchendo de profundas sombras
o ar saturado de aromas que a terra enviava, febril, de suas entranhas. Então a
voz do Azambuja parecia confundir-se com o matracar surdo da tormenta que vinha
chegando, e somente se sobrepunha àquele ruído no estribilho altissonante:
- Mandai-nos chuva, Senhor!
Com uma resposta salpicado de
sorrisos de alívio e arrepios de emoção:
- Chu... u-va... Se... enhor...
A procissão nem pôde completar em
ordem seu roteiro. Desabou um aguaceiro torrencial, e cada um tratou de chegar
o mais depressa possível aos resguardados portais do velho templo de Nossa
Senhora da Conceição.
O Azambuja, entretanto, parecia nem
se dar conta do que estava acontecendo. Rodeado apenas por um último punhado de
companheiros - a velha Quinota sempre ao lado, com a imagem da Virgem à ponta
de um bambu - ele seguia imperturbável seu caminho, a passos calmos, mãos
firmes desfiando as derradeiras contas do rosário. Somente ao chegar à porta da
igreja, onde o povaréu se apinhava, é que pareceu voltar a si. Tombou de
joelhos ao chão e, erguendo o rosto para o alto, molhou seu largo sorriso na
chuvarada e exclamou num gargarejo forçado:
- Obrigado, Senhor!
Havia gente que chorava de
felicidade.
A maioria dos romeiros não pôde
voltar para os ranchos, naquele dia, pois a chuva continuou se esforçando para
corresponder plenamente ao peditório; não faltaram amigos, porém, ou simples
conhecidos, para oferecer pouso numa noite de tanta glória. Tranqüilamente o
Azambuja dirigiu-se à morada do amigão Dr. Teófilo, onde dona Alice
recepcionou-o com os olhos manejados de emoção e a empregada Zulmira fez
questão de beijar as mãos do santo herói do dia.
No comecinho da noite apareceu na
casa do Dr. Teófilo um emissário do major Alteçor Almeida dizendo que este e
outros fazendeiros fortes - agora aliviados da ameaça de uma nova Seca Braba -
haviam carneado uma novilha e estavam assando um grande churrasco de
confraternização comunitária em homenagem ao Azambuja. Com a mais tocante
humildade cristã, porém, o homem declinou da homenagem, dizendo-se sobejamente
brindado pela bondade divina e alegando que o cansaço produzido pela longa e
tensa cerimônia o aconselhava a recolher-se ao leito bem mais cedo. Que o
desculpassem.
Após o jantar, quando estavam meio a
sós, o anfitrião lascou a pergunta que o vinha intrigando:
- Entre velhos amigos não se deve guardar
nenhum segredo. Escuta aqui, Azambuja. Responde com toda a sinceridade.
Acreditavas, mesmo, que as tuas orações iam dar ponto?
Durante dois ou três minutos o
Azambuja ficou silenciosamente com o olhar posto nos olhos do amigo, como se
avaliasse até que ponto deve chegar uma obrigação de fidelidade, um
demonstração de lealdade. Depois olhou em redor, para se certificar de onde
estavam dona Alice e a Zulnúra. Tranquilizou-se ao perceber que elas deviam
estar lá dentro, na cozinha, e que certamente não iriam escutá-lo.
- Bueno... a reza sempre ajuda, como
não! Mas... mas...
Hesitava, ainda. Por fim enfiou a mão
no bolso interno do casaco e dele retirou um livretozinho cuidadosamente
dobrado. Desdobrou-o e mostrou a capa ao Dr. Teófilo: Almanaque Regional.
- Assim para os primeiros dias do ano
ele nunca negou fogo.
E leu:
Dia 4 - Região Sul - Fortes
chuvaradas, com queda de temperatura.
Livro "Histórias para
sorrir", de Luiz Carlos Barbosa Lessa. Editora Alcance.
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