Poucas, as pessoas cuja vida tenha deslizado serena sempre, como um dia
de sol sem nuvens; raros, aqueles que valeram sempre ao abrigo da luta pela
existência; e se esses assim postos ao abrigo, por uma circunstância toda
especial da fortuna ganha pelos seus progenitores, se esses, digo, fossem de
momento lançados àquela luta, provavelmente nela sucumbiriam, por entrarem na
liça muito tarde, sem preparo algum nem o hábito da peleja e dos seus rigores
nem a utilização das próprias faculdades. A necessidade é uma grande mestra, e
é sempre preferível que os homens moços aprendam com ela.
Houve um tempo em que eu caçei - não como amador, por simples recreio -
mas por necessidade, para ganhar a vida, como negócio, em suma.
Poucas, as pessoas cuja vida tenha deslizado serena sempre, como um dia
de sol sem nuvens; raros, aqueles que valeram sempre ao abrigo da luta pela
existência; e se esses assim postos ao abrigo, por uma circunstância toda
especial da fortuna ganha pelos seus progenitores, se esses, digo, fossem de
momento lançados àquela luta, provavelmente nela sucumbiriam, por entrarem na
liça muito tarde, sem preparo algum nem o hábito da peleja e dos seus rigores
nem a utilização das próprias faculdades.
A necessidade é uma grande mestra, e é sempre preferível que os homens
moços aprendam com ela.
É claro que não ia perder as minhas horas à espera de preás nem
tuco-tucos, nem tampouco a levantar bem-te-vis ou pica-paus. Nada: procurava
caça redonda, de poder até fazer fortuna com ela, pois já não podia atender às
encomendas que de toda parte chegavam.
Cada dia mais avultavam os pedidos: os compradores pairavam à vista e
sem regatear, por vezes, para ver-me livre deles, pedia preços loucos nem
assim!
É que eu tinha uma especialidade! - mas que especialidade! - só, somente
vendia peles de onças, muito bem tiradas - oom rabo, cabeça e garras - tudo
perfeito, sem um talho, um fuio, sem um buraco!
Todos podem matar - e alguns, matam - onças a tiro, como eu; mas por
melhor que seja esse atirador, ele estragará sempre - o couro da presa, porque
usa balas ou balins, ou pelo menos, chumbo grosso.
Eu, não: só empregava. Esperem um pouco.
Parece até que tomava minha caça em urupuruca, inteirinha, sem um
arranhão, e esfolavas tranquilamente, como se depenasse um perdigão.
Era isso o que encantava os compradores dos meus couros de onças.
Vários bisbilhoteiros acompanharam-me ao mato para verem o meu sistema;
deixava-os ir, convidava-os mesmo, porém despistava-os facilmente.
Como conhecia os paradouros das onças, encaminhava-me para lá.
Afoutamente.
Assobiando.
Mal os bichos pressentiam a aproximação de gente, principiavam a urrar,
já assustados, mas para assustar!
Eu, então, para fingir medo, punha-me em altos brados, a chamar pelos
tais fulanos e quanto maior a gritaria, mais urravam as onças e mais fugiam os
bisbilhoteiros! Então ficava só em campo, ou antes, no mato, a muito a meu
gosto.
Outros, invejosos, diziam que eu tinha um - breve - contra onça; outros,
que rezava a oração de São Cogominho, que é muito forte contra os perigos do
mato.
Diziam, porém tudo pura invenção.
O meu segredo era simplíssimo.
Como se sabe, é o homem o único animal capaz de respirar pela boca;
todos os demais bichos respiram unicamente pelas ventas: quem lhes tapar,
mata-os. Fiz centenas de verificações, por isso afirmo.
E mais, todo o bicho preso pelo focinho é bicho dominado.Veja-se o
touro, por bravo que seja, uma vez tendo argola passada nas ventas, já está
dominado; o potro, com um cachimbo bem passado, está entregue; e assim outros.
Foi partindo desta certeza que pus em prática o meu processo, mesmo
porque naquela época eu não tinha ainda descoberto a minha futura famosa
essência - de cachorro - que tão notáveis vitórias granjeou-me.
Quando ia para o mato levava duas espingardas - das marrequeiras - de
carregar pela boca, e de munição de guerra apenas espoletas, pólvoras e buchas.
Em vez de balas espere um pouco!
No que descobria a onça, fazia barulho, assanhava-a!
Ela pulava, encastelava-se numa forquilha de qualquer árvore, agitando a
cauda, lambendo as barbas, miando rouco, afiando as unhas.
Eu, parava-me bem em frente - que é a regra porque se você dá costas, a
onça pula-lhe em cima, e, adeus! era um dia.
Carregava a matrequeira com a sua espoleta, sua carga de pólvora e uma
bucha, de sabugo de milho; depois então é que metia-a. Espere um pouco!
Mas não despregava os olhos da fera.
De tal forma a gente acostuma-se a estes perigos que chega a carregar a
arma simplesmente de tato e de ouvido.
Quando estava preparado enfiava na mira a racha do focinho da onça e
pum!
O bicho recebia a carga bem nas fuças; roncava, sufocado, e vinha ao chão,
tonto, inconsciente, mortalmente batido, com as ventas entupidos e com o atilho
pendurado no focinho.
Lentamente corria, por ele amarrava a fera a qualquer ramo e já
carregava a segunda espingarda - pra dar a primeira o tempo de esfriar - e
assim, ia-me à segunda, terceira, sétima onça, etc..
Caçado o número marcado, sangrava cada uma e tirava-lhe o couro, sem um
talho, sem um furo, um buraco: perfeito, sem avaria!
Em lugar de balas eu comprava velas de sebo, já preparadas pelo calibre
das armas; em cada ponta do pavio ia preso um forte anzol.
Com o calor da pólvora, no tiro o sebo saía derretido, e dando bem pela
frente nas ventas da onça, entrava por elas a dentro, enchendo-as e
entupindo-as; a fera mesmo espirrando não mais podia expelir aqueles batoques,
que, endurecendo, asfixiavam-na.
O pavio também seguia o seu caminho: um dos anzóis fisgava certo, no
focinho; o outro, quase sempre pegava na língua, outra vez numa das beiçolas ou
no céu da boca e cravava-se fortemente.Assim, firmado pelas duas pontas, o
pavio formava uma alça.
O...
A...
Nem é preciso explicar.
As cousas mais simples são sempre as que parecem mais difíceis.
Desvendado, o meu segredo é como o ovo de Colombo; agora todos dizem:
- Ora, que milagre! Assim, Romualdo, assim eu também faço!
Livro "Casos do Romualdo", de João Simões Lopes Neto. Martins
Livreiro Editora.
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