Há muito, muito tempo, quando
eu era criança, o meu avô levou-me a visitar o seu pomar.
- É o último bocadinho de terra que possuo, desde que vim viver para a cidade - disse-me, enquanto cumprimentava toda a gente.
- Avô, como fazes para conhecer tanta gente? - perguntei-lhe, enquanto corria para o acompanhar.
Ele parou para esperar por mim.
- Não os conheço pelo nome, conheço-os pelo coração. Sabes, Honey, não há estranhos para mim.
- Porquê? - perguntei, dando-lhe a mão.
Sorriu alegremente e respondeu:
- Porque eu e o meu coração somos livres.
Depois de caminharmos um pouco, disse:
- Minha querida, sabias que nos tempos tristes da escravatura eu costumava andar com sementes de macieira no bolso, e acreditava que, quando fosse livre, haveria de as plantar no meu próprio pedacinho de terra?
- Não, não sabia.
- Um dia dei-me conta de que isso só aconteceria quando nós mesmos lutássemos pela liberdade. Então, uma noite, nós fugimos.
- Quem é "nós"?
- Eu, a tua avó Polly, e a tua mãe, que era bebê na altura - respondeu, acariciando os meus caracóis. - Tínhamos medo, claro, mas fomos cuidadosos.
Parou de falar, enquanto relembrava aqueles tempos…
- Quando chegamos ao Norte, já tínhamos passado por muitos estranhos e por muitos perigos. Estávamos junto ao rio Ohio e éramos quase livres, quando nos demos conta de que a fome e o cansaço eram demasiado grandes para continuarmos a andar. Então, escondemo-nos num celeiro ali perto. Dormimos toda a noite, como há muito não fazíamos. De madrugada, um homem veio mungir as vacas, e a nossa bebê chorou. Ficamos petrificados. O nosso desespero era tanto que nos sentíamos capazes de atravessar o rio a nado, só para sermos livres! Nunca voltaríamos para trás!
Passados todos estes anos, o meu avô ainda tremia só de pensar naqueles tempos. Peguei-lhe na mão com força.
- O homem percebeu que não estava sozinho. Mas não olhou para a nossa cor; olhou para a nossa aflição. Era branco, mas ajudou-nos. Nunca me perguntou o nome, embora me dissesse o dele. Chamava-se James Stanton e era membro do Caminho-de-Ferro Clandestino.
- Oh! - exclamei. - Aquelas pessoas que ajudavam os escravos a viajar para o Norte?
- Aqueles que nos ajudaram quando mais precisávamos. James e a mulher, Sarah, não viram na tua mãe uma menina negra, apenas um bebê com fome. Deram-nos de comer e ajudaram-nos a atravessar o rio na noite seguinte.
- Isso é que foi sorte, avô! - alegrei-me, agarrando-lhe a mão com força.
- Não sei se foi sorte, Honey. Tínhamos de confiar em Deus. Tínhamos tomado uma resolução correta e nunca nos faltou a ajuda. E conseguimos. Sei o que é precisar de ajuda e recebê-la. Por mim, nenhum estranho ficará caído no chão sem que eu lhe estenda a mão.
Caminhamos em silêncio e o ar primaveril trazia até nós o cheiro fresco e doce das macieiras em flor.
- Quando chegamos ao Norte, a tua avó e eu trabalhamos arduamente para quem nos quisesse contratar. Aramos a terra, apanhamos fruta, mungimos vacas, cosemos, ferramos cavalos, até termos dinheiro suficiente para comprarmos um pedaço de terra. Este!
E mostrou-me um belo pomar, cheio de macieiras em flor.
- Lembras-te das sementes com que eu andava sempre no bolso? Peguei nelas e plantei-as no nosso pedacinho de terra. De cada vez que plantava uma, lembrava-me de uma pessoa que me tinha ajudado. Olha para todas estas flores!
O meu avô tirou uma maçã de cada bolso.
- Essas vieram da tua terra, avô?
- Vieram. Guardei-as para as comermos juntos.
Sentámo-nos a comer.
- Avô, será que um dia poderei plantar uma semente de memória aqui?
O meu avô sorriu, comovido:
- Podes fazê-lo agora mesmo.
Plantei as sementes da maçã que comera. Enquanto isso, o meu avô observava os meus gestos, relembrando, sem dúvida, o que fizera muitos anos atrás.
- Não me esquecerei do que fizeste hoje - disse o meu avô, levando a mão ao peito.
- E eu não esquecerei o que me contaste, avô.
E nunca esqueci.
- Então agora percebes por que razão não há estranhos para mim - disse o avô, com uma alegria imensa estampada no rosto, enquanto acenava para o céu.
- É o último bocadinho de terra que possuo, desde que vim viver para a cidade - disse-me, enquanto cumprimentava toda a gente.
- Avô, como fazes para conhecer tanta gente? - perguntei-lhe, enquanto corria para o acompanhar.
Ele parou para esperar por mim.
- Não os conheço pelo nome, conheço-os pelo coração. Sabes, Honey, não há estranhos para mim.
- Porquê? - perguntei, dando-lhe a mão.
Sorriu alegremente e respondeu:
- Porque eu e o meu coração somos livres.
Depois de caminharmos um pouco, disse:
- Minha querida, sabias que nos tempos tristes da escravatura eu costumava andar com sementes de macieira no bolso, e acreditava que, quando fosse livre, haveria de as plantar no meu próprio pedacinho de terra?
- Não, não sabia.
- Um dia dei-me conta de que isso só aconteceria quando nós mesmos lutássemos pela liberdade. Então, uma noite, nós fugimos.
- Quem é "nós"?
- Eu, a tua avó Polly, e a tua mãe, que era bebê na altura - respondeu, acariciando os meus caracóis. - Tínhamos medo, claro, mas fomos cuidadosos.
Parou de falar, enquanto relembrava aqueles tempos…
- Quando chegamos ao Norte, já tínhamos passado por muitos estranhos e por muitos perigos. Estávamos junto ao rio Ohio e éramos quase livres, quando nos demos conta de que a fome e o cansaço eram demasiado grandes para continuarmos a andar. Então, escondemo-nos num celeiro ali perto. Dormimos toda a noite, como há muito não fazíamos. De madrugada, um homem veio mungir as vacas, e a nossa bebê chorou. Ficamos petrificados. O nosso desespero era tanto que nos sentíamos capazes de atravessar o rio a nado, só para sermos livres! Nunca voltaríamos para trás!
Passados todos estes anos, o meu avô ainda tremia só de pensar naqueles tempos. Peguei-lhe na mão com força.
- O homem percebeu que não estava sozinho. Mas não olhou para a nossa cor; olhou para a nossa aflição. Era branco, mas ajudou-nos. Nunca me perguntou o nome, embora me dissesse o dele. Chamava-se James Stanton e era membro do Caminho-de-Ferro Clandestino.
- Oh! - exclamei. - Aquelas pessoas que ajudavam os escravos a viajar para o Norte?
- Aqueles que nos ajudaram quando mais precisávamos. James e a mulher, Sarah, não viram na tua mãe uma menina negra, apenas um bebê com fome. Deram-nos de comer e ajudaram-nos a atravessar o rio na noite seguinte.
- Isso é que foi sorte, avô! - alegrei-me, agarrando-lhe a mão com força.
- Não sei se foi sorte, Honey. Tínhamos de confiar em Deus. Tínhamos tomado uma resolução correta e nunca nos faltou a ajuda. E conseguimos. Sei o que é precisar de ajuda e recebê-la. Por mim, nenhum estranho ficará caído no chão sem que eu lhe estenda a mão.
Caminhamos em silêncio e o ar primaveril trazia até nós o cheiro fresco e doce das macieiras em flor.
- Quando chegamos ao Norte, a tua avó e eu trabalhamos arduamente para quem nos quisesse contratar. Aramos a terra, apanhamos fruta, mungimos vacas, cosemos, ferramos cavalos, até termos dinheiro suficiente para comprarmos um pedaço de terra. Este!
E mostrou-me um belo pomar, cheio de macieiras em flor.
- Lembras-te das sementes com que eu andava sempre no bolso? Peguei nelas e plantei-as no nosso pedacinho de terra. De cada vez que plantava uma, lembrava-me de uma pessoa que me tinha ajudado. Olha para todas estas flores!
O meu avô tirou uma maçã de cada bolso.
- Essas vieram da tua terra, avô?
- Vieram. Guardei-as para as comermos juntos.
Sentámo-nos a comer.
- Avô, será que um dia poderei plantar uma semente de memória aqui?
O meu avô sorriu, comovido:
- Podes fazê-lo agora mesmo.
Plantei as sementes da maçã que comera. Enquanto isso, o meu avô observava os meus gestos, relembrando, sem dúvida, o que fizera muitos anos atrás.
- Não me esquecerei do que fizeste hoje - disse o meu avô, levando a mão ao peito.
- E eu não esquecerei o que me contaste, avô.
E nunca esqueci.
- Então agora percebes por que razão não há estranhos para mim - disse o avô, com uma alegria imensa estampada no rosto, enquanto acenava para o céu.
Ann Grifalconi; Jerry Pinkney
Ain’t nobody a stranger to me
New York, Hyperion Books for Children, 2007
(tradução e adaptação)
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