- Pai, o que é cornita?
- Como é que se
escreve?
- Ce, o, erre, ene, i, te, a.
O pai pensou um
pouco. Não podia dizer que não sabia. O garoto há muito tempo descobrira que o
pai não era o homem mais forte do mundo. Precisava mostrar que, pelo menos, não
era dos mais burros. Perguntou como é que a palavra estava usada.
- Aqui diz, “a cornita da igreja...” –
respondeu o garoto.
- Ah, esse tipo de
cornita. É um ornamento, na forma de corno, que fica do lado do altar.
- Pra que que serve?
- Pra, ahn, nada.
É um símbolo.
- Ah.
- Pai, usei “cornita” numa redação e a
professora disse que a palavra não existe.
- O que? Mas que
professora é essa?
- Ela diz que nunca ouviu falar.
- Pois diga a ela
que ―cornita, embora não faça mais parte da arquitetura canônica, era muito
usada nas igrejas medievais.
- Tá.
- Pai,
a professora continua dizendo que “cornita” não existe. E diz que também não se
diz “arquitetura canônica”.
- Preciso ter uma conversa com essa professora.
Essa educação de hoje...
- Não quero discutir com a senhora. Mas também
não quero ver meu filho duvidando do próprio pai. Para começar, minha senhora,
aqui está o livro que meu filho estava lendo. E aqui está a palavra. ―Cornita‖.
- Deixa
eu ver. Obviamente, era pra ser “cornija”. É um erro de imprensa.
- O quê?
- Um
erro de revisão. “Cornija”. Ornamentação muito usada na arquitetura antiga.
“Cornita” não existe.
- Pai,
vamos pra casa...
- Um momentinho. Um momentinho! Claro que eu
sei o que é ―cornija. Mas existem as duas palavras. ―Cornija e ―cornita.
Duas coisas completamente diferentes.
- Então
me mostre “cornita” no dicionário.
- Ora, no dicionário. E a senhora ainda confia
nos nossos dicionários?
- Pai,
vamos embora...
- O que
é isso, pai?
- Um pequeno tratado que fiz para a sua
professora, aquela mula, ler. Dezessete páginas. Pouca coisa. Nele, traço desde
a origem etimológica da palavra ―cornita, no sânscrito, até a sua simbologia
no ritual da igreja antes do concílio de Trento, incluindo o número de vezes em
que o termo aparece na obra de Vouchard de Mesquieu sobre a arquitetura
canônica, para a mula aprender a jamais desmentir um pai.
- Certo, pai.
- Pai...
- O que é?
- A
professora leu o seu tratado.
- E então?
- Mandou
pedir desculpas. Diz que o senhor é um homem muito etudito.
- Erudito.
- Erudito.
Mandou pedir desculpas. A burra era ela.
- Está bem, meu filho. Pelo menos agora ela
sabe com quem está tratando.
Valera a pena. Valera até as noites perdidas inventando os
dados do tratado. Sabia que acabaria convencendo a mulher com um ataque maciço
de erudição, mesmo falsa. Vouchard de Mesquieu. Aquele fora o golpe de mestre.
Vouchard de Mesquieu. Perdera uma hora só para encontrar o nome certo. Mas
estava redimido.
Luís Fernando Veríssimo
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