Mamãe tinha cinco
filhos e um marido que amava, mas nunca associara amor de casamento com os
frutos dessa união. Não tinha um dedinho de consideração por nós. O Kiko ficou
reprovado pela segunda vez na mesma série, e ela disse apenas folheando o
jornal: é novo, ano que vem passa.
Eu pequena, olhava
aquela hereditariedade de desafeto, aqueles irmãos vindo antes de mim sem afago
de mãe. Eu caçula, observava e pensava: qual será a escala para escalá-la?
Nada. Era sempre uma mãe distante, mãe montanha, mãe gigante, mãe longe, não
imbuída de nos amar, não incumbida dos mais naturais cuidados: merenda, beijo,
histórias na hora de dormir, preocupações pentelhas – Não suba no muro, não
caia daí!
Ai, era uma mãe extra mater. Parecia que estivéramos todos fora dela quando dentro.
Até que um dia o irmão do meio adoeceu sinistramente na sexta e no domingo definitivamente nos deixou. Eu mal chorava. Tudo em mim eram olhos espantados de ver minha mãe assolada de uma ternura mórbida, porém ternuríssima, sobre o corpo: meu filho, meu amado, meu preferido, minha vida. Proferia ela amorosos impropérios destoantes do que eu entendia como real até então. Na dor da perda, minha mãe amava mais aquele filho do que a todos quando nasceram: filho meu, bendito filho meu, o que será de mim?
Ai, era uma mãe extra mater. Parecia que estivéramos todos fora dela quando dentro.
Até que um dia o irmão do meio adoeceu sinistramente na sexta e no domingo definitivamente nos deixou. Eu mal chorava. Tudo em mim eram olhos espantados de ver minha mãe assolada de uma ternura mórbida, porém ternuríssima, sobre o corpo: meu filho, meu amado, meu preferido, minha vida. Proferia ela amorosos impropérios destoantes do que eu entendia como real até então. Na dor da perda, minha mãe amava mais aquele filho do que a todos quando nasceram: filho meu, bendito filho meu, o que será de mim?
Compreendi que a
culpa disparava nela um amor retroativo, forte, maravilhoso que, se não
ressussitara meu irmão, tamanha sua força, em mim produzira uma extensa lavoura
de esperança de afeto.
E fora assim desde
então. Se algum adoecia, minha mãe fechava as portas dos jornais, da televisão,
do marido, do mundo, pra ser só mãe daquele filho enfermo. Cabeceiras insones,
histórias contadas até a febre se render, beijos longos que diziam: não me
deixe amado, não me deixe.
E eu? Eu tinha era
uma filha da puta de uma saúde que teimava em não me largar. Todo mundo lá em
casa pegava gripe forte, porque ainda não existia dengue, pegava hepatite tipo
analfabeta, porque ainda não havia classificação, caxumba, catapora e infecções
sucessivas de garganta. E eu, boinha da silva! Me encostava em todos, me
oferecia para cuidar; pequenina ainda, queria respirar o ar contaminado do
sangue irmão. E nada. Ela mesmo dizia: essa não precisa de mim. E eu precisava.
Então passei a perseguir acidentes naturais, árvores altas, bombas proibídas em São João, altas velocidades em carrinhos de rolimã, mãos perto demais das fogueiras, mas nenhum galho fraco era meu cúmplice, nenhuma bomba amiga minha, explodira, nenhuma ladeira era minha companheira, nenhuma chama minha irmã.
Então passei a perseguir acidentes naturais, árvores altas, bombas proibídas em São João, altas velocidades em carrinhos de rolimã, mãos perto demais das fogueiras, mas nenhum galho fraco era meu cúmplice, nenhuma bomba amiga minha, explodira, nenhuma ladeira era minha companheira, nenhuma chama minha irmã.
Um dia, tinha só
cinco, fui na gráfica do meu pai. Pensei, vou machucar um pedacinho do
meu dedo, vai doer, vai ter sangue, curativo, lágrimas de minha desejada
mãe, alguma febre, choro meu, colo, colo, colo e, só depois, muito depois,
conserto. Só que a máquina era lâmina e minha matemática, pouca. Calculei mal.
Pus o mindinho na guilhotina e fechei os olhos pensando nos olhos de minha
adorada mãe que eu ainda não havia experimentado acolhedores sobre mim.
Eu era a última, a menorzinha, a despedida da prole, carregava a impressão de
ter nascido e ouvido um adeus ao mesmo tempo. A máquina decepara meu dedo.
Deixara apenas uma falange-cotoco primeira, uma base de dedo. Foi rápido.
Sangue, muito mais sangue do que eu previa. Torpor.
Meu pai desesperado trazido amparado pelos empregados eu não vi. Vi só minha mãe morrendo de dor pelo dedinho meu que perdi e que em mim não doía e nem fazia falta.
- Minha filha, minha filhinha adorada, minha preferida, minha garotinha amada, mamãe tá aqui, tá doendo? Responde, tá doendo? E, eu mentindo: muito mamãe, muito. Mas, não doía nada. Se doía, o amor de minha mãe vindo assim em lufadas inéditas sobre mim que era um machucado só, estancava qualquer dor. Se confessasse, poderia perdê-la de novo. Então perdi um dedinho, um mísero dedinho pra ganhar uma mãe.
Meu pai desesperado trazido amparado pelos empregados eu não vi. Vi só minha mãe morrendo de dor pelo dedinho meu que perdi e que em mim não doía e nem fazia falta.
- Minha filha, minha filhinha adorada, minha preferida, minha garotinha amada, mamãe tá aqui, tá doendo? Responde, tá doendo? E, eu mentindo: muito mamãe, muito. Mas, não doía nada. Se doía, o amor de minha mãe vindo assim em lufadas inéditas sobre mim que era um machucado só, estancava qualquer dor. Se confessasse, poderia perdê-la de novo. Então perdi um dedinho, um mísero dedinho pra ganhar uma mãe.
Fui crescendo feliz
com mimo por aquela mãozinha manca. Na escola, no primeiro dia de aula, me
divertia em enfiar essa falange vitoriosa no nariz para que a professora
de estreia pensasse que havia todo o dedo dentro dele. Ela repreendia: o que
é isso Cristina? Tira o dedo do nariz! Que coisa feia, menina feia que você é.
Vai se machucar assim. Então, eu tirava a falange mínima, quebrando a ilusão
ótica no nariz da mestra. E ela: ô, desculpa querida, me perdoa, a titia não
sabia...
E olhava com olhos de se olhar com pena sobre os aleijados e muito arrependimento daquela gafe. Eu gostava da cena. Repeti isso por todo primeiro grau, a cada primeiro dia de aula. Era uma beleza.
Nunca mais perdi
minha mãe. Nunca mais fiquei boa do dedo e nem ruim dele. Nunca quis ele de
volta. Quem quis ele era a minha mãe. Por muito tempo, fiquei dando meus
pedaços para ser amada. Agora não.E olhava com olhos de se olhar com pena sobre os aleijados e muito arrependimento daquela gafe. Eu gostava da cena. Repeti isso por todo primeiro grau, a cada primeiro dia de aula. Era uma beleza.
Minha mãe ainda quer meu dedo de volta. Eu não quero mais nada. Tenho mãe. Dar um dedinho por uma mãe é muito pouco.
Antes de mim, ela não tinha um dedinho de consideração por ninguém dos filhos. Agora tem.
Elisa Lucinda
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