A
Bolsa Amarela é a história de uma menina que entra
em conflito consigo mesma e com a família ao reprimir três grandes vontades
(que ela esconde numa bolsa amarela) – a vontade de crescer, a de ser garoto e
a de se tornar escritora. A partir dessa revelação – por si mesma uma
contestação à estrutura familiar tradicional em cujo meio “criança não tem
vontade” – essa menina sensível e imaginativa nos conta o seu dia a dia,
juntando o mundo real da família ao mundo criado por sua imaginação fértil e
povoado de amigos secretos e fantasias. Ao mesmo tempo que se sucedem episódios
reais e fantásticos, uma aventura espiritual se processa, e a menina segue rumo
à sua afirmação como pessoa.
A bolsa amarela
Capítulo
1
AS
VONTADES
Eu
tenho que achar um lugar pra esconder as minhas vontades. Não digo vontade
magra, pequenininha, que nem tomar sorvete a cada hora, dar sumiço da aula de
matemática, comprar um sapato novo que eu não aguento mais o meu. Vontade assim
todo mundo pode ver, não tô ligando a mínima. Mas as outras — as três que de
repente vão crescendo e engordando toda vida — ah, essas eu não quero mais
mostrar. De jeito nenhum.
Nem
sei qual das três me enrola mais. Às vezes acho que é a vontade de crescer de
uma vez e deixar de ser criança. Outra hora acho que é a vontade de ter nascido
garoto em vez de menina. Mas hoje tô achando que é a vontade de escrever.
Já
fiz tudo pra me livrar delas. Adiantou? Hmm! É só me distrair um pouco e uma
aparece logo. Ontem mesmo eu tava jantando e de repente pensei: puxa vida,
falta tanto ano pra eu ser grande. Pronto: a vontade de crescer desatou a
engordar, tive que sair correndo pra ninguém ver.
Faz
tempo que eu tenho vontade de ser grande e de ser homem. Mas foi só no mês
passado que a vontade de escrever deu pra crescer também. A coisa começou
assim:
Um
dia fiquei pensando o que é que eu ia ser mais tarde. Resolvi que eu ia ser
escritora. Então já fui fingindo que era. Só pra treinar. Comecei escrevendo
umas cartas:
Prezado
André
Ando
querendo bater papo. Mas ninguém tá a fim. Eles dizem que não têm tempo. Mas
ficam vendo televisão. Queria contar minha vida. Dá pé?
Um
abraço da Raquel.
No
outro dia quando eu fui botar o sapato, achei lá dentro a resposta:
Dá.
André.
Parecia
até telegrama, que a gente escreve bem curtinho pra não custar muito caro. Mas
não liguei. Escrevi de novo:
Querido
André
Quando
eu nasci, minhas duas irmãs e meu irmão já tinham mais de dez anos. Fico
achando que é por isso que ninguém aqui em casa tem paciência comigo: todo
mundo já é grande há muito tempo, menos eu. Não sei quantas vezes eu ouvi
minhas irmãs dizendo: “A Raquel nasceu de araque. A Raquel nasceu fora de hora.
A Raquel nasceu quando a mamãe não tinha mais condição de ter filho.”
Tô
sobrando, André. Já nasci sobrando. É ou não é?
Um
dia perguntei pra elas: Por que é que a mamãe não tinha mais condição de ter
filho?”Elas falaram que a minha mãe trabalhava demais, já tava cansada, e que
também a gente não tinha dinheiro pra educar direito três filhos, quanto mais
quatro.
Fiquei
pensando: mas se ela não queria mais filho por que é que eu nasci? Pensei nisso
demais, sabe? E acabei achando que a gente só devia nascer quando a mãe da
gente quer ver a gente nascendo. Você não acha; não?
Raquel.
Dois
dias depois chegou a resposta. Estava escrita bem no caninho do papel que
embrulhava o pão:
Acho.
André.
Não
gostei de receber de novo telegrama em vez de carta. Mas assim mesmo continuei
contando a minha vida pra ele:
Oi,
André!
O
pessoal aqui em casa até que se vira: meu pai e minha mãe trabalham, meu irmão
tá tirando faculdade, minha irmã mais velha também trabalha, só vejo eles de
noite. Mas minha irmã mais moça nem trabalha nem estuda, então toda hora a
gente esbarra uma na outra. Sabe o que é que ela diz? Que é ela que manda em
mim, vê se pode. Não posso trazer nenhuma colega aqui: ela cisma que criança
faz bagunça em casa. Não posso nunca ir na casa de ninguém: ela sai, passa a
chave na porta, diz que vai comprar comida (ela vai é namorar) e eu fico aqui
trancada pra atender telefone e dizer que ela não demora. Bem que eu queria
pular a janela, mas nem isso dá pé: sexto andar.
Essa
irmã que eu tô falando é bonita pra burro, você precisa ver. Nem sei o que é
que ela é mais: se bonita ou mascarada. Imagina que outro dia ela me disse: “Eu
sou tão bonita, que não preciso trabalhar nem estudar: tem homem assim querendo
me sustentar; posso escolher à vontade.”
Aí
eu inventei que o Roberto (um grã-fino que ela quer namorar) tinha falado mal
dela. “Sabe o que é que ele andou espalhando?” — eu falei — “que você é tão
burra que chega a meter aflição.” Levei uns cascudos que eu vou te contar. E de
noite, quando o pessoal chegou (fui cedo pra cama porque eu vi logo que ia dar
galho), ela contou que eu continuava a maior inventadeira do mundo. Aí foi
aquela coisa: o pessoal todo ficou contra mim. Fui dormir na maior fossa de ser
criança podendo tão bem ser gente grande. Não
era pra eu ter inventado nada; saiu sem querer. Sai sempre sem querer, o que
é que eu posso fazer? E dá sempre confusão, é tão ruim! Escuta aqui, André,
você me faz um favor? Pára com essa mania de telegrama e me diz o que é que eu
faço pra não dar mais confusão. POR FAVOR, sim?
Raquel.
Esperei
a resposta uma porção de dias. Até que uma tarde deu uma ventania danada. A
janela do quarto estava aberta, entrou folha de árvore, poeira, e um papel todo
escrito com a letra do André. Vibrei: era uma carta no duro, maior até do que
as minhas:
Querida
Raquel,
Pra
falar a verdade eu preferia não me meter nessa história: uma vez fui desenrolar
o problema de uma amiga minha e acabei me enrolando todo também. Mas você pediu
POR FAVOR, e fica uma coisa um bocado chata não atender um favor tão pedido com
letra grande. Então eu pensei bastante e acabei achando que pra não dar mais
confusão você tem que fazer o seguinte: daqui pra frente você só inventa
inventado, tá compreendendo como é que é? Se
você inventa uma história com gente que não existe, aposto que ninguém liga.
Teu pessoal só fica chateado porque no meio da invenção você bota o namorado da
tua irmã no meio, ou então o gato da vizinha, ou então a tia Brunilda, ou não
sei quem mais. Mas se você inventa um caso com gente inventada, com casa
inventada, com bicho inventado, com tudo inventado, aposto que não te dão mais
cascudo nem…
Eu
estava tão ligada na carta do André que nem tinha visto o meu irmão atrás de
mim lendo também. Ele me arrancou a carta:
—
Quem é o André?
—
Ninguém. O André é inventado.
Ele
me olhou com aquela cara desconfiada que eu conheço tão bem.
—
Já vai começar, é?
—
Palavra de honra. Eu tenho mania de juntar nomes que eu gosto, sabe? E eu gosto
um bocado de André. Aí, quando foi no outro dia eu estava sem ninguém pra bater
papo então inventei um garoto pro nome. Um garoto legal: dois anos mais velho
que eu, cabelo e olho preto, e pensando assim igual a mim. Aí comecei a
escrever pra ele.
—
Escuta aqui: por que é que você acha que eu vou acreditar nessa história?
—
Porque é verdade, ué.
—
Ele é teu namorado? É aluno lá da escola?
—
Que que há? Tô dizendo que ele é inventado. Invento onde é que ele vai
escrever, invento o que é que ele vai dizer, invento tudo.
Meu
irmão fez cara de gozação:
—
E por que é que você inventou um amigo em vez de uma amiga?
—
Porque eu acho muito melhor ser homem do que mulher.
Ele
me olhou bem sério. De repente riu:
—
No duro?
—
É, sim. Vocês podem um monte de coisas que a gente não pode. Olha: lá na
escola, quando a gente tem que escolher um chefe pras brincadeiras, ele sempre
é um garoto. Que nem chefe de família: é sempre o homem também. Se eu quero
jogar uma pelada, que é o tipo do jogo que eu gosto, todo mundo faz pouco de
mim e diz que é coisa pra homem; se eu quero soltar pipa, dizem logo a mesma
coisa. É só a gente bobear que fica burra: todo mundo tá sempre dizendo que
vocês é que têm que meter as caras no estudo, que vocês é que vão ser chefe de
família, que vocês é que vão ter responsabilidade, que — puxa vida! — vocês é
que vão ter tudo. Até pra resolver casamento — então eu não vejo? — a gente
fica esperando vocês decidirem. A gente tá sempre esperando vocês resolverem as
coisas pra gente. Você quer saber de uma coisa? Eu acho fogo ter nascido
menina.
Meu
irmão nem ligou. Mas também por que que ele ia ligar? Eu tava dizendo que ser
homem é bom… Aí eu pensei que ele ia curtir conversar comigo, mas ele virou e
disse:
—
Então me conta: quem é o André?
Quase
caí pra trás:
—
Mas eu já te contei!
—
Conta melhor. Eu não tô acreditando que essa transa toda é só pra ter um papo.
—
Bom, só-só não.
—
Ah!…
—
O quê?
—
Conta.
—
É o seguinte: eu resolvi que eu vou ser escritora, sabe? E escritora tem que
viver inventando gente, endereço, telefone, casa, rua, um mundo de coisas.
Então eu inventei o André. Pra já ir treinando. Só isso.
Aí
meu irmão fechou a cara e disse que não adiantava conversar comigo porque eu
nunca dizia a verdade. Fiquei pra morrer:
—
Puxa vida, quando é que vocês vão acreditar em mim, hem? Se eu tô dizendo que
eu quero ser escritora é porque eu quero mesmo.
—
Guarda essas ideias pra mais tarde, tá bem? E em vez de gastar tempo com tanta
bobagem, aproveita pra estudar melhor. Ah! e olha: não quero pegar outra carta
do André, viu?
O
que eu vi é que a gente não tinha mais papo. Nem respondi. E assim que ele saiu
escrevi correndo um bilhete:
Não
adianta, André: gente grande não entende a gente. E então é melhor eu nem te
escrever mais.
E
pronto: nunca mais escrevi.
Passei
uns tempos sem escrever carta nenhuma. Mas um dia eu não tinha nada pra fazer e
pensei: “Ah, também que que há?” Fui no meu esconderijo de nomes, peguei um
nome que eu adoro, inventei uma amiga pra ele e comecei a escrever pra ela:
Lorelai:
Era
tão bom quando eu morava lá na roça. A casa tinha um quintal com milhões de
coisas, tinha até galinheiro. Eu conversava com tudo quanto era galinha,
cachorro, gato, lagartixa, eu conversava com tanta gente que você nem imagina,
Lorelai. Tinha árvore pra subir, rio passando no fundo, tinha cada esconderijo
tão bom que a gente podia ficar escondida a vida toda que ninguém achava. Meu
pai e minha mãe viviam rindo, andavam de mão dada, era uma coisa muito legal da
gente ver. Agora tá tudo diferente: eles vivem de cara fechada, brigam à toa,
discutem por qualquer coisa. E depois, toca todo mundo a ficar emburrado. Outro
dia eu perguntei: o que é que tá acontecendo que toda hora tem briga? Sabe o
que é que eles falaram? Que não era assunto pra criança. E o pior é que esse
negócio de emburramento em casa me dá uma aflição danada. Eu queria tanto achar
um jeito de não dar mais bola pra briga e pra cara amarrada. Será que você não
acha um jeito pra mim?
Um
beijo da Raquel.
Ela
escreveu a resposta na última folha do caderno de comunicação.
Querida
amiga:
Acho
que o único jeito é você voltar pro quintal da tua casa. Lá o pessoal anda de
mão dada, não tem briga, não tem cara amarrada, e ainda por cima tem gato, rio,
galinheiro, aposto que até coelho tem.
L.
Respondi
na mesma hora dizendo que tinha coelho sim, mas que aquilo não era jeito. Como
é que eu ia voltar pro quintal? Sozinha? Então eles iam deixar? No dia
seguinte, quando entrei no elevador, encontrei um papel caído no chão. Era um
bilhete da Lorelai:
Raquel:
Você
foge e pronto.
Um
beijo da Lorelai.
A
coisa começou a esquentar. Escrevi dizendo que tá bem: eu ia: mas só se ela
fosse comigo. Ela topou. Então inventei a viagem. Foi aí que a minha irmã
cismou de fazer arrumação no armário e achou as cartas atrás da gaveta. Armou
um barulho daqueles! “Quem é essa tal Lorelai que quer te ajudar a fugir de
casa?” Comecei a explicar que ela era inventada, que a viagem era inventada,
que — mas ela não deixou eu acabar de falar. Disse que eu não tinha jeito, me
deu um puxão de orelha, fez queixa pro meu pai, o pessoal ficou de novo contra
mim, e eu comecei a desconfiar que a gente ser escritora quando é criança não
dá pé. Desisti de escrever carta.
Fiquei
uma porção de dias pensando no meu pessoal pra ver se entendia por que é que
eles zangavam tanto comigo. Acabei desistindo também: gente grande é uma turma
muito difícil de entender. Mas em compensação tive uma ideia: “E se eu escrevo
um romance? Aí ninguém mais pode ficar contra mim porque todo mundo sabe que
romance é a coisa mais inventada do mundo.”
Achei
a ideia legal e escrevi o romance. Pequeno. Achei que pra começar era bom fazer
um bem pequeno. Era a história de um galo chamado Rei — lindo de morrer — que
um dia fica louco pra largar a vida de galo. Ele morava num galinheiro com
quinze galinhas, mas ele era um cara muito igual e então achava que era galinha
demais pra um galo só. Pra contar a verdade, ele vivia até um bocado sem jeito
de ser chefe de uma família tão esquisita assim. Então ele resolve fugir do
galinheiro. Mas aí dá medo de todo mundo ficar contra ele. E então ele passa o
romance inteirinho naquela aflição de foge, não foge. Quando chega bem no fim
da história, ele resolve o seguinte: se a vida dele era furada, ele tinha mesmo
que fugir e pronto. E aí ele foge.
Era
domingo quando eu acabei a história. Me chamaram pro cinema. Saí às carreiras,
larguei o romance no quarto. Minha irmã pegou e leu. (Quando eu cheguei em casa
ela perguntou: “Como é que você pode pensar tanta besteira, hem, Raquel?”)
Achou gozado e deu pra minha mãe ler.
E
a minha mãe deu pro meu pai.
E
o meu pai deu pro meu irmão.
E
o meu irmão deu pra minha outra irmã.
E
ela deu pra vizinha.
E
a vizinha deu pro marido, que ainda por cima é síndico.
Quando
eu voltei do cinema encontrei todo mundo rindo da minha história. Era um tal de
fazer piada de galo, de galinha, de galinheiro, que não acabava mais. E o pior
é que eles não estavam rindo só da história: tavam rindo de mim também, e das
coisas que eu pensava.
Foi
me dando uma raiva de ter largado o romance no quarto que, de repente, sem
pensar no que eu estava fazendo, peguei meu romance e rasguei todinho. Rasguei
o galo chamado Rei, a família esquisita que ele tinha, rasguei o galinheiro
inteiro, e tudo que tinha lá dentro. Resolvi que até o dia de ser grande não
escrevia mais nada. Só dever de escola e olhe lá.
Foi
daí pra frente que a vontade de ser escritora desatou a engordar que nem as
outras duas.
Se
o pessoal vê as minhas três vontades engordando desse jeito e crescendo que nem
balão, eles vão rir, aposto. Eles não entendem essas coisas, acham que é
infantil, não levam a sério. Eu tenho que achar depressa um lugar pra esconder
as três: se tem coisa que eu não quero mais é ver gente grande rindo de mim.
Continua...
Lygia
Bojunga
A bolsa amarela
Rio de Janeiro, Casa Lygia Bojunga Lda., 2004
A bolsa amarela
Rio de Janeiro, Casa Lygia Bojunga Lda., 2004
queria o resumo do capítulo 1 desse livro...
ResponderExcluirmuito interesssante as ideias dessa menina ela era muito criativa kkk boa noite
ResponderExcluirTambém amei!!!
ExcluirObrigada pela visita.
Essa história é linda! Releio de vez em quando pra visitar minha menina que também tinha umas vontades assim.
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