A Bolsa Amarela - Capítulo III






O GALO 
Acordei de repente com um barulho esquisito. Olhei pra janela e vi o dia nascendo. Outra vez o barulho. Quase morro de susto: era um canto de galo; e ali bem perto de mim.
Olhei minhas irmãs. Elas continuavam dormindo igualzinho, nem tinham ouvido canto nenhum. Espiei debaixo da cama, atrás da cadeira, dentro do armário — nada. Mas aí o galo cantou muito aflito: um canto assim de gente que tá presa e quer sair. “Tá dentro da bolsa amarela!” Abri a bolsa correndo. O galo saiu lá de dentro.
— Puxa, se você não abre essa bolsa eu morria sufocado. Tinha pedido pro fecho ficar meio aberto pra eu poder respirar, mas ele acabou dormindo e fechou. — Voou pra janela, aterrissou na beirada e ficou respirando fundo.
Eu estava de boca aberta: nunca tinha visto um galo usando máscara. Ele usava. Preta. Tapando a cara todinha. Só dois furos prós olhos. Ele andou de um lado pro outro na beirada da janela.
Eu fiquei pensando quando é que eu tinha visto alguém andar bonito assim. Ele abriu as asas e voou pra junto da bolsa. Achei melhor fingir que nem tinha visto: ele podia ler no meu olho que eu tinha vidrado no voo e aí ficar prosa demais. As penas do corpo dele brilhavam que nem o fecho; a gente usa anel no dedo, mas ele usava na perna e usava dois: um azul e outro vermelho. Foi quando eu olhei pros anéis que de repente me assustei: “Ué, como é que pode?!” O rabo do galo era a coisa mais genial que eu já vi, porque de repente dava um troço nas penas, e em vez delas ficarem certinhas que nem no resto do corpo, elas ficavam com uma cara zangada, se arrepiavam, mudavam de cor (tinha pena vermelha, marrom, laranja, dourada, tinha até uma peninha branca não sei se de idade ou de bossa), e cada movimento que o galo fazia, elas todas se sacudiam, parecia até que elas tavam sambando, e quando ele parava, elas ainda ficavam dançando. Quanto mais eu olhava pras penas, mais eu me assustava: “Puxa, mas como é que pode?!” Até que não resisti mais e falei:
— Sabe? Você é tão parecido com um galo que eu conheço, mas tão parecido mesmo…
Ele tirou a máscara e olhou pra mim. Parecido coisa nenhuma. Era ele mesmo. O Rei. O galo do romance que eu tinha inventado.
— O que é que você tá fazendo aqui?!
— Psiu! fala baixo, tô fugido.
— Isso eu sei, ué, fui eu que fiz você fugir do galinheiro.
— Mas a questão é que eles me pegaram.
— Não brinca!
— Me levaram de volta. Pra tomar conta daquelas galinhas todas outra vez.
— Ai!
— Você não sabia?
— Não. O meu romance acabava no dia que você fugia. Foi até aí que eu inventei você.
— Pois é. Mas aí eu fiquei inventado e tive que resolver o que é que eu ia fazer da minha vida. Pensei pra burro. Acabei resolvendo que ia lutar pelas minhas ideias.
Achei aquilo tão bacana! Na escola, quando a gente lê a vida de Tiradentes e desse pessoal importante, vem sempre essa frase junto: “homens que lutaram por suas ideias”.
— Que legal, Rei. E você lutou?
— Não, foi só eu resolver lutar que eles me levaram de volta pro galinheiro. Então eu chamei as minhas quinze galinhas e pedi, por favor, pra elas me ajudarem. Expliquei que vivia muito cansado de ter que mandar e desmandar nelas todas noite e dia. Mas elas falaram: “Você é o nosso dono. Você é que resolve tudo pra gente.” Sabe, Raquel, elas não botavam um ovo, não davam uma ciscadinha, não faziam coisa nenhuma, sem vir me perguntar: “Eu posso? Você deixa?” E se eu respondia: “Ora, minha filha, o ovo é seu, a vida é sua, resolve como você achar melhor”, elas desatavam a chorar, não queriam mais comer, emagreciam, até morriam. Elas achavam que era melhor ter um dono mandando o dia inteiro: faz isso! faz aquilo! bota um ovo! pega uma minhoca! do que ter que resolver qualquer coisa. Diziam que pensar dá muito trabalho.
— Ué.
— Pois é.
— Quer dizer que elas não te ajudaram?
— Se ajudaram? Ah! Quando eu expliquei que desde pequenininho eu sonhava com um galinheiro legal, todo mundo dando opinião, resolvendo as coisas, achando furada essa história de um galo mandar e desmandar a vida toda, sabe o que é que elas fizeram? Chamaram o dono do galinheiro e deram queixa de mim.
— No duro?
— Fiquei danado. Subi no poleiro e berrei: “Não quero mandar sozinho! Quero um galinheiro com mais galos! Quero as galinhas mandando junto com os galos!”
— Que legal!
— Legal coisa nenhuma; me levaram preso.
— Mas por quê?
— Pra eu aprender a não ser um galo diferente. Me botaram num quartinho escuro. Tão escuro que quando eu saí de lá tava todo preto. Só depois é que a cor foi voltando. Fiquei preso um tempão; sofri à beca. Aí, um dia, eles me soltaram. E foram logo dizendo: . “Daqui pra frente você vai ser um tomador-de-conta-de-galinha como o seu pai era, como o seu avô era, como o seu bisavô era, como o seu tataravô era — senão volta pra prisão.” E as galinhas disseram: “Deixa com a gente: se ele não se comportar direito a gente avisa.” Mas eu não era que nem meu avô, que nem meu bisavô, que nem meu tataravô, o que é que eu podia fazer? Eu sei que ia ser muito mais fácil eu continuar pensando igualzinho a eles. Mas eu não pensava, e daí? Um dia botaram outro galo junto comigo. Só pra ver o que é que eu fazia. Eles estavam crentes que eu ia armar um barulho e dizer: “Ou você ou eu mandando no galinheiro! Vamos brigar pra resolver qual de nós dois é o dono dessas galinhas todas!” Mas em vez disso eu falei: “Oi, colega. Me ajuda a acabar com a mania da gente ter que mandar nelas todas?” Pra quê! Todo mundo foi correndo fazer queixa de mim. — Parou de falar e ficou olhando a bolsa amarela de crista franzida.
— Aí prenderam você de novo?
— Não deu tempo: eu fugi.
— Você veio logo pra cá?
— Não.
— O que é que você fez?
— Hem? Ah, eu… eu andei me escondendo numa porção de lugares, mas… sabe? nenhum assim bom como a bolsa amarela.
— Por quê?
Ele não parava de olhar pra bolsa.
— Não chove, não tem vento, ninguém se lembra de procurar a gente aí…
Fiquei sem saber o que é que eu falava. Tava na cara que o Rei queria um convite pra morar na bolsa amarela. Mas como é que ia ser? Eu carregava a bolsa pra tudo quanto é canto; quando as vontades engordavam, ela ficava superpesada; com o Rei lá dentro eu não ia nem aguentar. Resolvi ser franca;
— Sabe, Rei? Já tem muita coisa na bolsa amarela: não dá pra você também.
— Nern por uma temporadinha?
— Acho que não.
— Ih, Raquel, mas se eles me pegam de novo vai ser fogo.
— Você arranja outro esconderijo.
— Tá difícil: cada vez tem menos lugar pra gente se esconder.
— É que, sabe, eu guardo muita coisa aí dentro.
— Eu sei, já examinei tudo. Mas achei que ainda sobrava um lugarzinho pra mim.
Fingi que não tinha ouvido. Ele suspirou:
— Aí dentro é tão sossegado. Eu precisava um lugar assim pra poder pensar com calma nas minhas ideias.
Quem sabe ele falava nas ideias dele e acabava esquecendo de morar na bolsa amarela?
— Me conta uma coisa; quais são as suas ideias, hem?
— Pois aí é que está: ainda não deu pra ter nenhuma ideia.
— Ué! Se você não tem nenhuma idéia, como é que você vai lutar por uma ideia?
— Bom, primeiro eu preciso ter a ideia. Depois eu saio lutando.
— Puxa! Você nunca bolou nada lá no galinheiro?
— Não dava jeito. Cada vez que eu começava a bolar um troço qualquer, vinha uma galinha perguntar o que é que ela ia fazer.
— E depois que você fugiu?
— Também não dava: eu vivia apavorado, achando que iam me pegar.
Fui ficando sem jeito de não deixar ele morar na bolsa amarela. Mas de repente me lembrei de outra coisa:
— Se descobrem que eu tô escondendo você, eu fico numa situação um bocado ruim.
— Bom, isso é mesmo… — E aí ele ficou quieto pensando. Depois botou a máscara e falou: — Então até qualquer dia. — E foi indo embora.
Fiquei numa aflição danada. E se pegavam ele lá fora? E se ele não encontrava outro esconderijo bom? Aí mesmo é que ele nunca mais encontrava a tal idéia pra poder lutar por ela.
— Ei, Rei! — Ele parou e olhou pra mim. Abri a bolsa: — Pode entrar.
Ele nem esperou outro convite: deu um voo espetacular, passou rentinho do nariz das minhas irmãs e aterrissou dentro da bolsa. Mas deixou um pé no ar. Com jeito de entra-não-entra.
— Não faz cerimônia, entra logo.
— É que… sabe? Tem uma coisa que desde o princípio eu tô querendo dizer e ainda não disse. — E ficou me olhando.
— O que é que é, Rei?
— É isso mesmo: Rei. Não repara não, foi você que escolheu meu nome, mas eu não gosto dele.
Ah não?
— Não. Eu sou um cara igual, gosto de sossego, sou um sujeito muito simples: esse nome não combina comigo. E tem outra coisa também: fica tão esquisito quando você diz: “Ei, Rei!” Parece que você tá dizendo que errou. Você se importa se eu pego aí no bolso sanfona um outro nome pra mim?
Fico sempre chateada quando eu dou uma coisa e a pessoa não gosta. Mas fingi que não tava ligando:
— Claro, pode pegar.
Mais que depressa ele sumiu dentro da bolsa. Ficou lá dentro um tempão. Depois apareceu todo satisfeito:
— Peguei o Afonso.
— Afonso?!
— É.
Achei que ele e Afonso não combinavam de jeito nenhum.
— Mas você não tem cara de Afonso.
— Posso não ter cara, mas tenho certeza que o meu coração é um coração de Afonso. — Bocejou, disse que tava morrendo de sono, e eu então fechei a bolsa pra ele dormir. Mas fiquei pensando uma pergunta que não queria sair da minha cabeça. Lá pelas tantas não aguentei mais e abri a bolsa:
— Ei, Afonso! — Ele meio que acordou. — Como é que você veio parar aqui dentro da bolsa amarela, hem?
— Entrei na tua casa, comecei a procurar um lugar bom pra me esconder, vi a bolsa debaixo da cama e pronto.
— Mas como é que você entrou aqui? Você voou?
— Vim de elevador.
— Sozinho?
— Não, tinha mais gente.
— E ninguém viu que você era um galo fugido?
— Eu tava de máscara.
— Ah é! Então boa noite.
— Dorme bem.
Lygia Bojunga
A bolsa amarela
Rio de Janeiro, Casa Lygia Bojunga Lda., 2004

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