A Bolsa Amarela - Capítulo IX







COMECEI A PENSAR DIFERENTE
Enquanto eu escrevia a “História de um Galo de Briga e de um Carretel de Linha Forte”, a vontade de escrever andou tão magrinha que já não pesava quase nada. Que alívio. Acabei até mudando de ideia: resolvi que se eu queria escrever qualquer coisa eu devia escrever e pronto. Carta, romancinho, telegrama, o que me dava na cabeça. Queriam rir de mim? Paciência. Melhor rirem de mim do que carregar aquele peso dentro da bolsa amarela.
O Afonso andava muito pensativo. Saía todos os dias, ficava fora um tempão.
— Onde é que você andou, hem, Afonso?
— Procurando uma ideia por aí.
Achou?
— Não.
Falava pouco, nem com a Guarda-Chuva ele conversava.
Quando acabei de escrever a história do Terrível, eu dei pra ele ler. Aí ele ficou ainda mais pensativo. Perguntou:
— Você acha que foi isso mesmo que aconteceu?
— Acho.
— Então de vez em quando é bom a gente ir na Praia das Pedras ver se o barco aparece de novo.
— Vamos hoje?
Fomos. Mas não tinha barco nenhum. Quando a gente ia voltando, de repente o Afonso berrou:
— Achei!
— O quê?
— A ideia.
— Onde?
— Dentro da tua história! — E ficou alegre que só vendo, desatou até a cantar:
“Achei, tá achado,
Não vou mais desachar.
Achei, tá achado,
Agora é começar.”
— Mas qual é a ideia, Afonso?
— Vou sair pelo mundo lutando pra não deixarem costurar o pensamento de ninguém. — E começou logo a fazer planos: ia aqui, ia ali, ia fazer, ia acontecer, ia atravessar o mar, ia achar o Terrível e não sei que mais. Aí parou e franziu a crista: — Só tem um problema: o mundo é grande demais, se eu saio lutando a pé vou ficar muito cansado.
— Ué, você não sabe voar?
Ele torceu o bico, fez cara de pouco caso:
— Voo de galo é voinho à toa. De voinho em voinho eu não vou longe.
— Você é um galo diferente, por que que você não experimenta voar mais alto?
— Pois é, aí é que está. — E então ele me contou que toda a vida teve mania de voar bem alto. Mas nunca experimentou porque tinha um medo danado de cair. Até que um dia tomou coragem e voou pro telhado de uma casa. E depois pra folha mais alta de um coqueiro. E aí saiu voando pra ver se chegava numa nuvem. Quando já ia chegando, perdeu a força e começou a cair. Foi caindo cada vez mais depressa. E se não é a sorte de um urubu ir passando e perguntar “quer carona?”, era um galo morto. — Fiquei apavorado, sabe Raquel? Daí pra frente toda semana eu resolvo: segunda-feira bem cedo vou experimentar outra vez. Mas na hora eu não tenho coragem e deixo pra outra segunda-feira.
— Há quanto tempo?
— Desde pequeno.
A Guarda-Chuva quis saber que tanto o Afonso falava. Ele contou os planos todos na língua dela. Pra quê! Ela falou, falou, falou, e no fim chorou.
— Que que há, Afonso? Por que é que ela tá chorando desse jeito?
O Afonso tava com uma cara tão triste que eu pensei que ele ia chorar também.
— Ela quer ir comigo; disse que não vai aguentar a saudade. Mas a questão é que ela não pode ir.
— Por quê?
— Ué, ela tá toda quebrada, não pode nem se mexer.
O Alfinete de Fralda saltou do bolso bebê e a pontinha dele riscou na fazenda da bolsa:
— No dia que eu saí da fábrica, eu vi uma casa que consertava tudo. Consertava guarda-chuva também.
O Afonso se animou:
— Vamos lá!
Botei o Alfinete na palma da minha mão e quando cheguei na rua pedi pra ele mostrar o caminho. A pontinha dele foi riscando:
— Em frente. Dobra. Esquerda. Vai. Direita. Segue. Atravessa. Vira. Toda vida. Vai. Aqui, é aqui!
A loja se chamava:

A Casa dos Consertos 

Entrei. A Casa dos Consertos se dividia em quatro partes. Na primeira tinha uma menina assim da minha idade; na outra tinha um homem; na outra, uma mulher, e na outra, um velho. A menina estava estudando, a mulher cozinhando, o homem consertando um relógio, o velho consertando uma panela.
Tossi — pra ver se eles olhavam pra mim. Mas os quatro estavam tão interessados nas coisas que eles tavam fazendo que nem me viram nem nada.
A mulher cozinhava cantando baixinho. Uma música boa mesmo da gente ouvir. Volta e meia ela provava a comida, e aí ficava com uma cara ainda mais feliz.
Tinha um bolo assando no forno; a casa toda cheirava a bolo. Um cheiro tão bom, que o Afonso, as minhas vontades, o Alfinete, todo mundo resolveu espiar pela janela pra ver a cara do cheiro. Falei:
— Hmm, que delícia! — Mas os quatro não ouviram.
A menina estava fazendo o mapa do mundo. Caprichava nas cores pra ver se cada país ficava tão bom quanto o outro, escrevia nome de capital, de cidade, parava pra pensar, olhava nos livros, escrevia de novo, desenhava outra vez.
O homem botou o relógio no ouvido e ficou todo satisfeito:
— Ah, agora sim, o tique-taque tá bom, agora sim!
E o velho espiou o fundo da panela e falou:
— Vou soldar essa panela tão bem soldada que ela ainda vai cozinhar muitos anos. — Deu uma risada. — Bobalhona! Pensou que só porque estava velha não servia pra mais nada.
E os quatro pararam o que estavam fazendo só pra rir da panela, que era tão boba, coitada, que achava que só porque era velha não servia pra mais nada.
A parede dos fundos da Casa dos Consertos só tinha livro. Livro do chão até o teto.
O Afonso achou que tinha que dizer alguma coisa e disse:
— Oi. — Mas bem baixinho. Acho que de propósito pra ninguém ouvir.
O homem pendurou o relógio na parede:
— Pronto, você já tá curado. — Pegou um vaso quebrado e fez uma festinha nele: — Agora vamos ver como é que eu colo você. — Examinou ele bem. —Você vai ficar novo. Ninguém vai pensar que já quiseram até te jogar fora.
Tinha milhões de coisas penduradas na parede: cadeira, roupa, caneta, rádio, bicicleta, tinha até um cachorro de verdade com a boca amarrada. Fiquei boba: será que ele também tava ali pra consertar?
Aí eles me viram. Deram um oi superlegal.
Peguei a Guarda-Chuva e mostrei pro homem:
— O senhor podia consertar essa guarda-chuva pra mim?
Ele examinou a Guarda-Chuva com muito cuidado:
— Puxa, ela deve ter levado cada tombo!
— Se levou. E agora não pode nem abrir nem passar pra grande nem nada. Tem conserto?
— Claro que tem. Quase tudo tem conserto.
— E o cachorro? Também tá ali pra consertar?
Quando ele ia responder, o relógio começou a bater. Era um relógio grandão. Pendurado na parede. E batia hora tocando música. Mas não era música antiga não: era uma música tão quente que todo mundo ficou logo ligado e deixou tudo que estava fazendo pra ir pro meio da casa dançar. Faziam uns passos bacanas, riam, cantavam, cada um curtindo a farra mais que o outro. Me chamaram pra dançar. Fiquei assim meio sem jeito, sem saber se ia ou não. Mas o relógio tocava cada vez mais gostoso, e o Afonso foi ficando tão animado que pulou pra fora da bolsa e gritou;
— Vamos lá, Raquel!
E aí eu fui também. O Afonso dançava em frente da menina e eu dançava em frente do velho. Ele fazia os passos mais incríveis que eu já vi. Quis copiar, errei tudo, dei pra rir, todo mundo riu também. Mas não era só dos erros que a gente ria; era de tudo: volta e meia o Afonso berrava um cocoricó genial, o velho não parava de inventar passo maluco, o relógio balançava certinho com a música; era tudo tão bom, tão gozado, que era mesmo pra gente rir.
Nem sei quanto tempo durou a curtição. Só sei que, de repente, a música parou. Tudo quanto é música que acaba vai ficando mais devagar, mais isso, mais àquilo, e a gente vê que ela tá chegando no fim. Mas a música do relógio não. Parou de estalo, sem nenhum aviso. E aí a menina, o homem, o velho e a mulher também pararam de estalo. Juntinho com a música. Olharam pra ver onde é que tinham parado. O homem tinha parado junto do fogão, o velho junto do mapa, a menina junto da Guarda-Chuva, e a mulher perto da panela e da solda. Nem olharam outra vez: o homem foi logo cozinhando, o avô abriu uns livros e começou a estudar, a mulher desatou a soldar a panela, e a menina examinou a Guarda-Chuva com jeito de quem entende de guarda-chuva e me perguntou:
— Você tem pressa?
— Hmm-hmm.
— Então amanhã tá pronto.
Mas eu fiquei parada, querendo entender melhor a gente daquela casa. Apontei o homem:
— Ele é teu pai?
— E. — E aí ela apresentou os três: — Meu pai, minha mãe e meu avô,
Eles me deram um sorriso legal e eu cochichei pra menina:
— Por que é que ele tá cozinhando?
Ela me olhou espantada:
— O quê?
Perguntei ainda mais baixo:
— Por que é que ele tá cozinhando e tua mãe tá soldando panela?
— Porque ela hoje já cozinhou bastante e ele já consertou uma porção de coisas; e eu também já estudei um bocado e meu avô soldou muita panela: tava na hora de trocar tudo.
— Por quê?
— Pra ninguém achar que tá fazendo uma coisa demais. E pra ninguém achar também que está fazendo uma coisa menos legal do que o outro.
— Teu avô tá estudando?
— Tá.
— Velho daquele jeito? (Era meio chato conversar com ela: só eu que cochichava; ela falava normal, todo mundo ouvia.)
— Ele só é velho por fora. O pensamento dele tá sempre novo.
— Por quê?
— Porque ele tá sempre estudando. Que nem meu pai e minha mãe.
— Eles também estudam?
— Aqui em casa a gente não vai parar de estudar.
— Toda a vida?
— Tem sempre coisa nova pra aprender.
— E quem é que resolve o que cada um estuda?
— Como é?
— Quem é que resolve as coisas? quem é o chefe?
— Chefe?
— É, o chefe da casa. Quem é? Teu pai ou teu avô?
— Mas pra que que precisa chefe?
— Pra resolver os troços, ué; pra resolver o que é que cada um vai estudar.
— Cada um estuda o que gosta mais. Tem livro aí; a gente escolhe o que quer. O vovô agora tá estudando teatro de bonecos; ele vai fazer um lá na praça.
— Mas… e o resto?
— Que resto?
— Não tem sempre uma porção de coisas pra resolver? Quem é que resolve?
— Nós quatro. Pra isso todo dia tem hora de resolver coisa. Que nem ainda há pouco teve hora de brincar. A gente senta aí na mesa e resolve tudo que precisa. Resolve como é que vai enfrentar um caso que a vizinha criou; resolve se vai brincar mais do que trabalhar; resolve o que é que vai comer; quanto é que vai gastar em roupa, em comida, em livro; resolve essas transas todas. Cada um dá uma ideia. E fica resolvido o que a maioria acha melhor.
— Você também pode achar?
— Claro! eu também moro aqui, eu também estudo, eu também cozinho, eu também conserto. Aqui todo mundo acha igual.
— Mas pode?
— Por que é que não pode?
Aí o relógio bateu outra vez. O pai ficou ainda mais animado e gritou:
— Almoço! A comida tá pronta. — Abriu o forno, tirou o bolo, perguntou se eu queria comer com eles, eu aceitei correndo. E perguntei pra menina:
— Como é que você se chama, hem?
— Lorelai.
Fiquei na Casa dos Consertos nem sei quanto tempo. Pra contar a verdade, não vi o tempo passar. O avô da Lorelai me contou como é que ia fazer o teatro de bonecos; o pai da Lorelai me ensinou a fazer umas panquecas geniais; e a mãe da Lorelai conversou tanto tempo comigo que parecia até que ela não tinha nada que fazer. Contei pra ela como é que as minhas vontades engordavam; contei do quintal da minha casa; e quando eu mostrei os retratos ela achou o quintal tão bonito que eu resolvi dar os retratos pra ela.
— E como é que vai ser quando você quiser olhar os retratos?
— Eu venho aqui. É uma boa desculpa pra vir sempre. — Ela riu. E eu fiquei achando que gente grande não era uma turma tão difícil de entender que nem eu pensava antes.
Aí o Afonso falou:
— Olha só Raquel, já é de noite.
— Xi!! — Me apavorei toda; eu tinha saído de manhã, o meu pessoal já devia estar um bocado nervoso, como é que eu nem tinha visto o tempo passar? Me despedi correndo de todo mundo, a Lorelai foí comigo até a esquina, a gente combinou ficar amiga pra sempre, e ela já ia voltando quando o Afonso enfiou a cabeça na janela e perguntou:
— E o cachorro pendurado? também tá lá pra consertar?
— Tá sim.
— O que é que ele tem?
— Um grilo esquisito: só pensa em morder os outros. A gente vai ver se conserta o pensamento dele pra fazer ele pensar outros troços também. Tchau!
No caminho, o Afonso falou:
— Aposto que costuraram o pensamento daquele cachorro. Viu só quanta gente de pensamento costurado? Eu tenho mesmo que sair pelo mundo lutando pela minha ideia.
O pessoal em casa já estava nervoso. Contei da Casa dos Consertos, mas não adiantou: levei castigo: ia ficar uma semana sem poder sair. Justinho minha última semana de férias.
Não sei se foi a chateação do castigo ou o que foi: me deitei e não dormi.
Apagaram a luz. Fiquei pensando na Casa dos Consertos. Todo mundo dormiu, só pra mim é que o sono não chegava.
Antes, me dava uma aflição danada quando o pessoal todo dormia e só eu ficava acordada. Pra me distrair do escuro eu ficava fazendo de conta que eu não era mais eu. Ia inventando como é que eu me chamava: Reinaldo Arnaldo Aldo Geraldo.
Eu era um deles. Jogando futebol, trepando em árvore, soltando pipa, sendo escritor (quem sabe era melhor ser médico?), resolvendo sozinho, ninguém me dizendo:
— É pra homem.
— Por quê?
— Porque sim.
— Porque sim não explica nada. Me explica!
— Depois.
— Quando?
— Depois.
Pedro
Antônio
Pedro Antônio ou só Antônio?
Pedro só
Mas o depois demorava, demorava, quem diz que chegava? e eu continuava inventando:
Roberto
Alberto
Norberto
Gilberto
pra ver se acabava dormindo e a noite passando.
Mas isso era antes. Naquela noite fiquei pensando na Casa dos Consertos e não liguei a mínima de perder o sono. Pra ser franca, até que curti. E por falar em curtição, puxa vida, como a mãe da Lorelai curtia ser mulher; e como a Lorelai curtia ser menina. Ela achava que ser menina era tão legal quanto ser garoto. Quem sabe era mesmo? Quem sabe eu podia ser que nem a Lorelai?
Quando eu estava no melhor do pensamento, o Afonso me chamou baixinho:
— Ei! Como é que vai ser, hem?
— O quê?
— A Guarda-Chuva fica pronta amanhã, mas você tá de castigo uma semana. Como é que vai ser?
— Você vai lá sozinho, apanha a Guarda-Chuva, leva uma carta que eu vou escrever pra Lorelai, e diz que quando o meu castigo acabar eu apareço.
— Mas eu não tenho dinheiro pra pagar o conserto.
— Nem eu.
— Então como é que vai ser?
Pensei.
— Leva a “História de um Galo de Briga e de um Carretel de Linha Forte”. Vê se eles trocam a história pelo conserto.
O pessoal da bolsa amarela estava louco pra ver se na hora da Guarda-Chuva desenguiçar, a história dela desenguiçava também.
Depois do almoço o Afonso saiu na moita com a minha carta e com a história do Terrível debaixo da asa. Demorou. Demorou toda a vida. Quando ele e a Guarda-Chuva chegaram, eu já tava aflita:
— O que é que aconteceu, Afonso?
— Olha aí como ela tá novinha em folha!
A Guarda-Chuva estava com a cara mais feliz do mundo. Abriu, fechou, tossiu, espirrou, passou de pequena pra grande e de grande pra pequena, riu e mostrou as varetas novas.
— E a história dela? também desenguiçou?
— Foi por isso que eu demorei: ela ficou até agora lembrando o resto da história.
— Ah, conta! Conta pra gente!
E o Afonso então contou:
— No dia que a Guarda-chuva enguiçou, tinham saído com ela debaixo de uma chuva danada. Chegaram em casa e deixaram ela aberta junto da janela pra secar. Ela ficou com frio e, pra ver se esquentava, começou a passar de pequena pra grande, de grande pra pequena, até que estalou, enguiçou, não passou pra mais nada. Foi nessa hora que bateu um vento forte. O vento levou a chuva embora, trouxe uma tarde bonita, passou rentinho da janela e vuuuuuuuuu! carregou a Guarda-Chuva pelos ares. Ela morava no oitavo andar, tá bem?
— Ah, coitada! caiu lá de cima?
— Coitada coisa nenhuma: desceu no macio, devagarinho, voando um pouco pra cá, pra lá, vendo a vista, sentindo o vento na cara; desceu que nem pára-quedas. E a-do-rou! Achou tão gostoso que já no meio do caminho resolveu que ia mudar de vida: queria ser pára-quedas.
— É mesmo?
— É. Mas não deu pé: caiu de mau jeito e quebrou quatro costelas.
— Desde quando guarda-chuva tem costela?
— Tem vareta: dá no mesmo. Aí eles levaram ela pro hospital. Mas se enganaram de médico e ela foi cair na mão de um dentista.
Ele obturava cárie o dia inteiro, só via cárie na frente dele, nem reparou que ela era guarda-chuva, obturou as varetas e pronto. Nunca mais a Guarda-Chuva funcionou: vareta é o tipo da coisa que a gente não pode obturar. Então ninguém mais usava a Guarda-Chuva. Ela ficava pendurada o tempo todo num cabide que tinha perto da janela. Se alguém dizia: “esse guarda-chuva…”
— Eles não sabiam que ela era mulher?
— Ela não conversava com ninguém: sabia que não adiantava, eles não iam entender nada. Então se alguém dizia: “esse guarda-chuva não serve mais”, tinha logo um que falava: “serve sim! serve pra enfeitar; ele é tão bonitinho!”. E a Guarda-Chuva ficava triste que só vendo.
— Por quê? Ela não gostava de ser bonitinha?
— Gostava. Mas ela achava que ser bonitinha só era muito pouco; se de repente ela desbotasse, ela deixava de ser bonitinha; aí ela não ia servir pra mais nada, porque a única coisa que ela era, ela deixava de ser. Tá entendendo como é que é?
— Mais ou menos. Depois eu vejo se entendo melhor. Continua.
— Tinha também outra coisa que deixava a Guarda-Chuva na fossa: ela ficava olhando pra fora, pensando na curtição de ser pára-quedas, querendo tanto curtir outra vez! Voar devagar; o vento na cara; cair de levinho no chão… Até que um dia não resistiu mais: pulou pra janela, quase se arrebentou de fazer força, e aí abriu um pouquinho. Esperou um vento passar e lá se foi. Achou que no caminho ia abrir mais.
— Ui, Afonso! É mesmo? Despencou lá de cima sem saber se ia abrir ou não?
— Arriscou.
— Mas que risco!
— Riscão. Grande que nem a chateação de viver sempre ali parada só sendo bonitinha e mais nada.
— E aí?
— Não abriu.
— Xi!
— Se esborrachou no chão, quebrou mais três costelas, não aguentou nem levantar. Foi quando eu passei por ela. Lembra? Naquele dia que a gente tava voltando da escola e eu fui procurar uma ideia.
Foi só o Afonso acabar de contar a história, que a Guarda-Chuva desatou a falar pelos cotovelos.
— O que é que ela tá dizendo?
— Tá louca pra dar outra de pára-quedas.
— Quando?
— Agora.
E aí a Guarda-chuva já queria sair da bolsa amarela e se jogar pela janela. Foi um custo pra ela entender que tinha que curtir um pouco as costelas novas antes de se arriscar outra vez. Mas acabou entendendo. E todo mundo então foi dormir.
Eu já tava ferrada no sono quando o Afonso me acordou:
— Esqueci de contar, Raquel! O nome da Guarda-Chuva também desenguiçou. Sabe como é que ela se chama? Nakatar Companhia Limitada.
— O quê?!
— É o nome da fábrica onde ela foi feita. Tudo que sai de lá sai com esse nome.
— Que horror.
— Pois é.
No dia seguinte a gente começou a chamar a Guarda-Chuva de Nakatar Companhia Limitada. Mas não deu pé. E então ela continuou Guarda-Chuva mesmo.

Continua...
 
Lygia Bojunga
A bolsa amarela
Rio de Janeiro, Casa Lygia Bojunga Lda., 2004

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