Meu
irmão chegou em casa com um embrulhão. Gritou da porta:
—
Pacote da tia Brunilda!
Todo
mundo correu, minha irmã falou:
—
Olha como vem coisa.
Rebentaram
o barbante, rasgaram o papel, tudo se espalhou na mesa. Aí foi aquela confusão:
—
O vestido vermelho é meu.
—
Ih, que colar bacana! Vai combinar com o meu suéter.
—
Vê se veio alguma camisa do tio Júlio pra mim.
—
Que sapato alinhado, tá com jeito de ser meu número.
Eu
fico boba de ver como a tia Brunilda compra roupa. Compra e enjoa. Enjoa tudo:
vestido, bolsa, sapato, blusa. Usa três, quatro vezes e pronto: enjoa. Outro
dia eu perguntei:
—
Se ela enjoa tão depressa, pra que que ela compra tanto? É pra poder enjoar
mais?
Ninguém
me deu bola. Fiquei pensando no tio Júlio. Meu pai diz que ele dá um duro
danado pra ganhar o dinheiro que ele ganha. Se eu fosse ele, eu ficava pra
morrer de ver a tia Brunilda gastar o dinheiro numas coisas que ela enjoa logo.
Mas ele não fica. Eu acho isso tão esquisito! Outra coisa um bocado esquisita é
que, se ele reclama, ela diz logo: “Vou arranjar um emprego.” Aí ele fala: “De
jeito nenhum!” E dá mais dinheiro. Pra ela comprar mais. E pra continuar
enjoando. Vou ver se um dia eu entendo essa jogada. Não parava de sair coisa do
pacote. Minha mãe falou:
—
Que boazinha que é a tia Brunilda: sabe como a gente vive apertada e cada vez
manda mais roupa.
Eu
parei de fazer o dever e fiquei olhando. Vi aparecer uma bolsa; todo mundo
pegou, examinou, achou feia e deixou pra lá. Antes, quando chegavam os pacotes
da tia Brunilda e não sobrava nada pra mim, eu ficava numa chateação daquelas.
E se eu pedia qualquer coisa, o pessoal falava logo:
—
Ora, Raquel, a tia Brunilda só manda roupa de gente grande, não serve pra você.
—
É só cortar, diminuir.
—
Não adianta; mesmo diminuindo, tudo fica com cara de roupa de gente grande.
—
Roupa não tem cara.
—
Tem, sim senhora.
E
nunca fiquei com nada. Num instantinho sumiam com tudo, e usavam, usavam,
usavam até pifar. Aí, no dia que a roupa pifava, a gente ajeitava daqui e dali,
e a roupa ficava pra mim. Eu não dizia nada. Até que uma vez não resisti e
perguntei:
—
Quer dizer que quando a roupa pifa, pifa também a tal cara de roupa de gente
grande?
E
o pessoal falou que sim, que era isso mesmo. (É por causa dessas transas que eu
queria tanto crescer: gente grande tá sempre achando que criança tá por fora.)
Aí
aconteceu uma coisa diferente; de repente sobrou uma coisa pra mim.
—
Toma Raquel, fica pra você.
Era
a bolsa.
A
bolsa por fora:
Era
amarela. Achei isso genial: pra mim, amarelo é a cor mais bonita que existe.
Mas não era um amarelo sempre igual: às vezes era forte, mas depois ficava
fraco; não sei se porque ele já tinha desbotado um pouco, ou porque já nasceu
assim mesmo, resolvendo que ser sempre igual é muito chato.
Ela
era grande; tinha até mais tamanho de sacola do que de bolsa. Mas vai ver ela
era que nem eu: achava que ser pequena não dá pé.
A
bolsa não era sozinha: tinha uma alça também. Foi só pendurar a alça no ombro
que a bolsa arrastou no chão. Eu então dei um nó bem no meio da alça. Resolveu
o problema. E ficou com mais bossa também.
Não
sei o nome da fazenda que fez a bolsa amarela. Mas era uma fazenda grossa, e se
a gente passava a mão arranhava um pouco. Olhei bem de perto e vi os fios da
fazenda passando um por cima do outro; mas direitinho; sem fazer bagunça nem
nada. Achei legal. Mas o que eu achei ainda mais legal foi ver que a fazenda
esticava: “vai dar pra guardar um bocado de coisa aí dentro”.
A
bolsa por dentro:
Abri
devagarinho. Com um medo danado de ser tudo vazio. Espiei. Nem acreditei.
Espiei melhor.
—
Mas que curtição! — berrei. E ainda bem que só berrei pensado: ninguém escutou
nem olhou.
A
bolsa tinha sete filhos! (Eu sempre achei que bolso de bolsa é filho da bolsa.)
E os sete moravam assim:
Em
cima, um grandão de cada lado, os dois com zipe; abri-fechei, abri-fechei,
abri-fechei, os dois funcionando bem que só vendo. Logo embaixo tinha mais dois
bolsos menores, que fechavam com botão. Num dos lados tinha um outro — tão
magro e tão comprido que eu fiquei pensando o que é que eu podia guardar ali
dentro (um guarda-chuva? um martelo? um cabide em pé?). No outro lado tinha um
bolso pequeno, feito de fazenda franzidinha, que esticou todo quando eu botei a
mão dentro dele; botei as duas mãos: esticou ainda mais; era um bolso com mania
de sanfona, como eu ia dar coisa pra ele guardar! E por último tinha um bem
pequenininho, que eu logo achei que era o bebê da bolsa.
Comecei
a pensar em tudo que eu ia esconder na bolsa amarela. Puxa vida, tava até parecendo
o quintal da minha casa, com tanto esconderijo bom, que fecha, que estica, que
é pequeno, que é grande. E tinha uma vantagem: a bolsa eu podia levar sempre a
tiracolo, o quintal não.
O
fecho:
A
bolsa amarela não tinha fecho. Já pensou? Resolvi que naquele dia mesmo eu ia
arranjar um fecho pra ela.
Peguei
um dinheiro que eu tinha economizado e fui numa casa que conserta e reforma
bolsas. Falei que queria um fecho e o vendedor me mostrou um, dizendo que era o
melhor que ele tinha. Custava muito caro, meu dinheiro não dava.
—
E aquele? — apontei. — Era um fecho meio pobre, mas brilhando que só vendo.
O
homem fez cara de pouco caso, disse que não era bom. Experimentei.
—
Mas ele abre e fecha tão bem.
O
homem disse que o fecho era muito barato: ia enguiçar. Vibrei! Era isso mesmo
que eu tava querendo: um fecho com vontade de enguiçar. Pedi pro vendedor
atender outro freguês enquanto eu pensava um pouco. Virei pro fecho e passei
uma cantada nele:
—
Escuta aqui, fecho, eu quero guardar umas coisas bem guardadas aqui dentro
desta bolsa. Mas você sabe como é que é, não é? Às vezes vão abrindo a bolsa da
gente assim sem mais nem menos; se isso acontecer, você precisa enguiçar, viu?
Você enguiça quando eu pensar “enguiça”, enguiça?
O
fecho ficou olhando pra minha cara. Não disse que sim nem que não. Eu vi que
ele tava querendo uma coisa em troca.
—
Olha, eu já vi que você tem mania de brilhar. Se você enguiçar na hora que
precisa, eu prometo viver polindo você pra te deixar com essa pinta de espelho.
Certo?
O
fecho falou um tlique bem baixinho com toda cara de “certo”. Chamei o vendedor
e pedi pra ele botar o fecho na bolsa.
Cheguei
em casa e arrumei tudo que eu queria na bolsa amarela. Peguei os nomes que eu
vinha juntando e botei no bolso sanfona. O bolso comprido eu deixei vazio,
esperando uma coisa bem magra pra esconder lá dentro. No bolso bebê eu guardei
um alfinete de fralda que eu tinha achado na rua, e no bolso de botão escondi
uns retratos do quintal da minha casa, uns desenhos que eu tinha feito, e umas coisas
que eu andava pensando. Abri um zíper; escondi fundo minha vontade de crescer;
fechei. Abri outro zíper; escondi mais fundo minha vontade de escrever; fechei.
No outro bolso de botão espremi a vontade de ter nascido garoto (ela andava
muito grande, foi um custo pro botão fechar).
Pronto!
a arrumação tinha ficado legal. Minhas vontades tavam presas na bolsa amarela,
ninguém mais ia ver a cara delas.
Continua...
Lygia
Bojunga
A bolsa amarela
Rio de Janeiro, Casa Lygia Bojunga Lda., 2004
A bolsa amarela
Rio de Janeiro, Casa Lygia Bojunga Lda., 2004
Bem complexo
ResponderExcluirMoral da história
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