A Bolsa Amarela - Capítulo II








Meu irmão chegou em casa com um embrulhão. Gritou da porta:
— Pacote da tia Brunilda!
Todo mundo correu, minha irmã falou:
— Olha como vem coisa.
Rebentaram o barbante, rasgaram o papel, tudo se espalhou na mesa. Aí foi aquela confusão:
— O vestido vermelho é meu.
— Ih, que colar bacana! Vai combinar com o meu suéter.
— Vê se veio alguma camisa do tio Júlio pra mim.
— Que sapato alinhado, tá com jeito de ser meu número.
Eu fico boba de ver como a tia Brunilda compra roupa. Compra e enjoa. Enjoa tudo: vestido, bolsa, sapato, blusa. Usa três, quatro vezes e pronto: enjoa. Outro dia eu perguntei:
— Se ela enjoa tão depressa, pra que que ela compra tanto? É pra poder enjoar mais?
Ninguém me deu bola. Fiquei pensando no tio Júlio. Meu pai diz que ele dá um duro danado pra ganhar o dinheiro que ele ganha. Se eu fosse ele, eu ficava pra morrer de ver a tia Brunilda gastar o dinheiro numas coisas que ela enjoa logo. Mas ele não fica. Eu acho isso tão esquisito! Outra coisa um bocado esquisita é que, se ele reclama, ela diz logo: “Vou arranjar um emprego.” Aí ele fala: “De jeito nenhum!” E dá mais dinheiro. Pra ela comprar mais. E pra continuar enjoando. Vou ver se um dia eu entendo essa jogada. Não parava de sair coisa do pacote. Minha mãe falou:
— Que boazinha que é a tia Brunilda: sabe como a gente vive apertada e cada vez manda mais roupa.
Eu parei de fazer o dever e fiquei olhando. Vi aparecer uma bolsa; todo mundo pegou, examinou, achou feia e deixou pra lá. Antes, quando chegavam os pacotes da tia Brunilda e não sobrava nada pra mim, eu ficava numa chateação daquelas. E se eu pedia qualquer coisa, o pessoal falava logo:
— Ora, Raquel, a tia Brunilda só manda roupa de gente grande, não serve pra você.
— É só cortar, diminuir.
— Não adianta; mesmo diminuindo, tudo fica com cara de roupa de gente grande.
— Roupa não tem cara.
— Tem, sim senhora.
E nunca fiquei com nada. Num instantinho sumiam com tudo, e usavam, usavam, usavam até pifar. Aí, no dia que a roupa pifava, a gente ajeitava daqui e dali, e a roupa ficava pra mim. Eu não dizia nada. Até que uma vez não resisti e perguntei:
— Quer dizer que quando a roupa pifa, pifa também a tal cara de roupa de gente grande?
E o pessoal falou que sim, que era isso mesmo. (É por causa dessas transas que eu queria tanto crescer: gente grande tá sempre achando que criança tá por fora.)
Aí aconteceu uma coisa diferente; de repente sobrou uma coisa pra mim.
— Toma Raquel, fica pra você.
Era a bolsa.
A bolsa por fora:
Era amarela. Achei isso genial: pra mim, amarelo é a cor mais bonita que existe. Mas não era um amarelo sempre igual: às vezes era forte, mas depois ficava fraco; não sei se porque ele já tinha desbotado um pouco, ou porque já nasceu assim mesmo, resolvendo que ser sempre igual é muito chato.
Ela era grande; tinha até mais tamanho de sacola do que de bolsa. Mas vai ver ela era que nem eu: achava que ser pequena não dá pé.
A bolsa não era sozinha: tinha uma alça também. Foi só pendurar a alça no ombro que a bolsa arrastou no chão. Eu então dei um nó bem no meio da alça. Resolveu o problema. E ficou com mais bossa também.
Não sei o nome da fazenda que fez a bolsa amarela. Mas era uma fazenda grossa, e se a gente passava a mão arranhava um pouco. Olhei bem de perto e vi os fios da fazenda passando um por cima do outro; mas direitinho; sem fazer bagunça nem nada. Achei legal. Mas o que eu achei ainda mais legal foi ver que a fazenda esticava: “vai dar pra guardar um bocado de coisa aí dentro”.
A bolsa por dentro:
Abri devagarinho. Com um medo danado de ser tudo vazio. Espiei. Nem acreditei. Espiei melhor.
— Mas que curtição! — berrei. E ainda bem que só berrei pensado: ninguém escutou nem olhou.
A bolsa tinha sete filhos! (Eu sempre achei que bolso de bolsa é filho da bolsa.) E os sete moravam assim:
Em cima, um grandão de cada lado, os dois com zipe; abri-fechei, abri-fechei, abri-fechei, os dois funcionando bem que só vendo. Logo embaixo tinha mais dois bolsos menores, que fechavam com botão. Num dos lados tinha um outro — tão magro e tão comprido que eu fiquei pensando o que é que eu podia guardar ali dentro (um guarda-chuva? um martelo? um cabide em pé?). No outro lado tinha um bolso pequeno, feito de fazenda franzidinha, que esticou todo quando eu botei a mão dentro dele; botei as duas mãos: esticou ainda mais; era um bolso com mania de sanfona, como eu ia dar coisa pra ele guardar! E por último tinha um bem pequenininho, que eu logo achei que era o bebê da bolsa.
Comecei a pensar em tudo que eu ia esconder na bolsa amarela. Puxa vida, tava até parecendo o quintal da minha casa, com tanto esconderijo bom, que fecha, que estica, que é pequeno, que é grande. E tinha uma vantagem: a bolsa eu podia levar sempre a tiracolo, o quintal não.
O fecho:
A bolsa amarela não tinha fecho. Já pensou? Resolvi que naquele dia mesmo eu ia arranjar um fecho pra ela.
Peguei um dinheiro que eu tinha economizado e fui numa casa que conserta e reforma bolsas. Falei que queria um fecho e o vendedor me mostrou um, dizendo que era o melhor que ele tinha. Custava muito caro, meu dinheiro não dava.
— E aquele? — apontei. — Era um fecho meio pobre, mas brilhando que só vendo.
O homem fez cara de pouco caso, disse que não era bom. Experimentei.
— Mas ele abre e fecha tão bem.
O homem disse que o fecho era muito barato: ia enguiçar. Vibrei! Era isso mesmo que eu tava querendo: um fecho com vontade de enguiçar. Pedi pro vendedor atender outro freguês enquanto eu pensava um pouco. Virei pro fecho e passei uma cantada nele:
— Escuta aqui, fecho, eu quero guardar umas coisas bem guardadas aqui dentro desta bolsa. Mas você sabe como é que é, não é? Às vezes vão abrindo a bolsa da gente assim sem mais nem menos; se isso acontecer, você precisa enguiçar, viu? Você enguiça quando eu pensar “enguiça”, enguiça?
O fecho ficou olhando pra minha cara. Não disse que sim nem que não. Eu vi que ele tava querendo uma coisa em troca.
— Olha, eu já vi que você tem mania de brilhar. Se você enguiçar na hora que precisa, eu prometo viver polindo você pra te deixar com essa pinta de espelho. Certo?
O fecho falou um tlique bem baixinho com toda cara de “certo”. Chamei o vendedor e pedi pra ele botar o fecho na bolsa.
Cheguei em casa e arrumei tudo que eu queria na bolsa amarela. Peguei os nomes que eu vinha juntando e botei no bolso sanfona. O bolso comprido eu deixei vazio, esperando uma coisa bem magra pra esconder lá dentro. No bolso bebê eu guardei um alfinete de fralda que eu tinha achado na rua, e no bolso de botão escondi uns retratos do quintal da minha casa, uns desenhos que eu tinha feito, e umas coisas que eu andava pensando. Abri um zíper; escondi fundo minha vontade de crescer; fechei. Abri outro zíper; escondi mais fundo minha vontade de escrever; fechei. No outro bolso de botão espremi a vontade de ter nascido garoto (ela andava muito grande, foi um custo pro botão fechar).
Pronto! a arrumação tinha ficado legal. Minhas vontades tavam presas na bolsa amarela, ninguém mais ia ver a cara delas.

Continua...
Lygia Bojunga
A bolsa amarela
Rio de Janeiro, Casa Lygia Bojunga Lda., 2004

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