ABolsaAmarela - Capítulo VII







TERRÍVEL VAI EMBORA

Acordei com o Afonso apavorado:
— Raquel, o Terrível fugiu!
— Mas como é que pode? A bolsa não ficou fechada de noite?
— Na certa o fecho abriu.
Fiquei danada com o fecho, fui logo desabafando:
— Seu chato! Como é que você deixa o Terrível fugir?
Mas o fecho é um bobalhão, até hoje não aprendeu a falar coisa nenhuma. Só fica naquele tlique-tlique e pronto. E na hora que eu desabafei com ele, a única coisa que ele encontrou pra me dizer foi um tlique com cara de dor. Foi aí que eu vi que ele estava todo arranhado por dentro, coitado. O Terrível na certa tinha lutado com ele e ele não teve outro remédio senão abrir.
O Afonso me mostrou um bilhete que tinha achado no fundo da bolsa. Dizia assim:
Fui brigar a briga que eu tinha que brigar. Pra mostrar que eu ainda posso ganhar.
Terrível
Olhei pro despertador da minha irmã. Eram cinco horas da manhã.
— A que horas ele ia brigar, Afonso?
— Bem de noite.
— A noite tem tanta hora.
— Qual delas eu não sei.
— Mas você sabe onde ia ser a briga?
— Na Praia das Pedras.
— Então vamos lá.
— E se o pessoal acorda e não te vê?
— É cedo: dá tempo de ir e voltar antes de todo mundo acordar.
Mas o Afonso não se mexia.
— Vamos de uma vez, Afonso!
— Eu tô com medo.
— De quê?
— E se ele não ganhou?
— Não adianta ficar pensando, o melhor é ir lá ver.
E a gente foi.
A Praia das Pedras tá sempre meio vazia: é contramão, o mar é ruim, e tem muita pedra na areia. De noite então fica um deserto. Foi por isso que o pessoal fez a briga lá. Era um pessoal muito barra-pesada: eles sabiam que briga de galo é proibida, mas eles sabiam também que fazendo a briga de noite lá na Praia das Pedras ninguém ia ver.
Quando a gente chegou viu a marca de uma roda na areia. O Afonso explicou que o pessoal sentava no chão fazendo roda pra ver a briga e apostar.
A função toda já devia ter acabado há muito tempo porque não tinha nem galo nem gente por perto. Mas no meio da roda tinha uma bagunça danada. Tudo cavado. Risco pra todo lado fazendo desenho de briga. Tinha sangue no desenho. E na praia tinha um jeito de chuva. Pra falar a verdade, já estava pingando. E tinha umas penas no chão.
— São do Terrível?
— São.
Eram duas.
Nessa hora a gente ouviu um gemido:
Bzzzzzzzzzzzzzzzzz((((((((((((((((((((iuiuiuiuí))))))))^)))))))^rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrbvbvbvbvbvbvbvbvbvbvzzzzzzzzzzzzz???zzzzzzzz!!!!hmmmmmmmmmmmmmmmm?tla tlatlatlatlatlatlatlata.
O Afonso tomou um susto:
— Isso na língua da Guarda-Chuva quer dizer socorro.
Abri a bolsa e olhei dentro.
— A Guarda-Chuva sumiu!
Na afobação, no nervoso, ninguém tinha visto o bolso dela vazio.
— Então foi ela mesma que gemeu.
A gente foi correndo espiar atrás das pedras. Acabamos encontrando a coitada da Guarda-Chuva caída na areia, já cansada de pedir socorro. E foi só ela ver o Afonso, que desatou a falar. Falou tanto que eu cheguei a me deitar pra dormir. Mas não dormi não: a cara do Afonso foi ficando tão ruim que eu perdi o sono. Às vezes eu perguntava:
— O que é que ela tá contando?
Mas ele nem ligava, continuava escutando. E a cara piorando. Não era só a cara que piorava: a crista desmoronou, a cabeça ficou baixa e as penas do rabo dele que eram sempre tão animadas, ficaram tão murchas que dava até pena.
Lá pelas tantas a Guarda-Chuva parou de falar. Com muito cuidado o Afonso pegou ela nas asas e me entregou,
— Guarda ela, Raquel. A coitadinha não pode se mexer mais; quebrou as varetas boas que ainda tinha.
Arrumei a Guarda-Chuva no bolso.
— Mas o que é que aconteceu, Afonso?
— Quando ela acordou do desmaio, viu o Terrível fugindo da bolsa amarela. Se agarrou nele e veio junto, o tempo todo falando, falando, querendo convencer o Terrível que ele não tinha nada que brigar. Mas ele nem dava bola. Corria. Voava. Chegou aqui na praia e pulou logo pra dentro da roda. Quando viram a Guarda-Chuva agarrada no Terrível, desataram a rir. Disseram pra ela ir embora senão o Crista de Ferro acabava com ela também. Mas ela nem ligou; continuou falando. Riram mais. Ela continuou não ligando: o que interessava era ajudar o Terrível. Aí o pessoal se zangou, pegou ela de jeito e, zuque!, varejou longe. Ela caiu ali. Quebrou tudo que ainda não tinha quebrado, e o que já tava quebrado ainda quebrou muito mais.
Ele contou aquilo baixinho, enquanto ia andando pra roda. Fui indo atrás.
— Mas ela viu a briga?
Ele parou e ficou olhando as duas penas,
— Viu sim. Deu pra ver.
— E daí?
— Falou que o Terrivel apanhou até dizer chega.
— Não pode ser.
— Foi.
— Mas ele disse que vinha aqui pra mostrar que ia ganhar.
— O Crista de Ferro ganhou.
— Aposto que ela não viu direito, Afonso.
— Viu sim.
— Tava escuro, ela viu mal.
— Ela vê bem.
— E onde é que deixaram o Terrível?
— Levaram embora. Disseram que era pra não ficar nada na areia. Pra ninguém ver que teve briga de galo aqui.
Pegou as penas.
— Mas esqueceram as penas.
Fez festinha nelas devagar.
—Vou guardar de lembrança.
Fiquei olhando a roda. Gente pequena usava roda pra brincadeira: ciranda, jogo de prenda, chicote-queimado… Mas gente grande inventava umas coisas tão esquisitas pra fazer roda. Perguntei:
— Você acha que se não tivessem costurado o pensamento do Terrível com a tal linha bem forte ele tinha vindo aqui brigar?
Mas o Afonso nem escutou. Já ia lá na frente. Numa pressa danada. Andando diferente, olhando pro chão — pra ver se ninguém via que ele estava morrendo de chateação.

Continua...
 
Lygia Bojunga
A bolsa amarela
Rio de Janeiro, Casa Lygia Bojunga Lda., 2004

Um comentário:

  1. tlbtiornvul985ep095u7896549e76ew978654907965y43yghrfdfsgeblecfsyblrigubkfuyeglsuid;u9gldnldhkughd2dlhtJDHQFUufjtk4k3968860285768930292010201ohwjwigieugieiguikgnvydkh gsyfgrlh. fkjvhjghjlhfiksviusfiukg;'[hdjdth4evkigyhty87fy8d8iyrorkbh
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    n sei pq escrevi isso

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